#Elenão entendeu: “É ingênuo pensar que quem já decidiu e declarou voto no Bolsonaro vai mudar de ideia porque viu o vídeo de uma manifestação ou uma hashtag na internet”, escreveu Fabricio Pontin no Intercept Brasil, em resposta a um chamado político de uma das autoras desta tréplica, Rosana Pinheiro-Machado.
Pontin está errado em muitos níveis. Mas a maior fragilidade do seu argumento é construir uma crítica cética a partir de algo que demonstra não ter entendido: o #elenão, movimento que descreve com ambivalência, ora como hashtag, ora como guerra de memes.
O que o momento pede é atenção para a participação das mulheres na política.
Ambas categorias nos parecem inadequadas, já que este é um fato político permeado por uma série de ineditismos. Quaisquer inferências sobre os possíveis resultados do movimento, hoje, têm caráter meramente especulativo e parecem estar calcadas num pensamento engessado. O que o momento pede é atenção para a participação das mulheres na política. Como essa dificuldade pode não ser somente dele, achamos importante explicar alguns pontos, os quais, em última instância, dizem respeito às formas como as mulheres estão fazendo política no século 21, que a consciência masculina não parece ter conseguido compreender.
É incontestável que “Bolsonaro está na frente na guerra dos memes [e na guerra cultural]” e nós mesmas viemos alertando sobre isso há alguns anos. No entanto, o que está acontecendo não é uma guerra de memes – a guerra cultural segue em curso –, visto que a hashtag #elenão é cinco vezes maior do que seu contraponto, o #elesim. O feminismo é um movimento ascendente, e a misoginia que dominou as postagens do campo bolsonarista nos últimos 40 dias pode e deve ser entendida como backlash, um contra-ataque antifeminista.
O argumento de Pontin, baseado em uma comparação com os Estados Unidos, ignora o fato de que lá Trump não obteve a maioria dos votos. E ele pontua algo bastante conhecido nas teorias da polarização, que mostram que, nas guerras culturais, toda a propaganda negativa se transforma em propaganda positiva, manipulada pelo lado oposto. Nós concordamos com essa premissa básica, mas salientamos que o #elenão não se trata simplesmente de propaganda negativa, mas de um processo sem precedentes no Brasil.
Pontin parte de uma falsa de equivalência entre o #elenão e o #resistance dos EUA. Mas se existiu alguma movimentação por lá que se assemelhe a nossa – orgânica, suprapartidária e liderada por mulheres – foi a que começou no dia da posse de Trump, e que resultou num aumento expressivo de participação de mulheres nas eleições midterm, que ocorrem em novembro deste ano e contam com o maior número de candidatas na história do país para cargos executivos e legislativos. Algumas delas, socialistas como Alexandria Ocasio-Cortez.
#Elenão não é uma simples hashtag, mas um movimento extraordinário de base, capilar e microscópico, que ao mesmo tempo organiza um ato político e serve de ponto de convergência para outras movimentações de mulheres, online e face a face.
O convencimento de votos tem ocorrido nas conversas francas entre mulheres.
O convencimento de votos não será feito “assistindo vídeos”, como ironizado por Pontin. Ele tem ocorrido nas conversas francas entre mulheres. Nesse sentido, algum lugar de fala é preciso reivindicar aqui: os homens (ou as pessoas que vivem fora do Brasil) não estão conseguindo captar um fenômeno político inovador, que não ocorre só nas redes, mas principalmente no cotidiano, em que mulheres falam umas com as outras para convencer o voto da vizinha, da prima, da amiga ou da tia.
Nós temos acompanhado esse fenômeno como um experimento etnográfico desde que decidimos andar com a camiseta ou adesivo #elenão. Somos paradas por mulheres de todas as classes, raças e credos, que querem nos contar da conversa que tiveram com a avó bolsonarista que mora na cidade isolada, com a amiga de balada, com a chefe. É algo de uma força impressionante, que sequer conseguimos ainda descrever.
Somos nós, entre nós, para nós. E isso tem ocorrido no corpo a corpo, crescendo em uma onda de contágio que ainda não podemos dimensionar, e mobilizando, de forma horizontal e suprapartidária, mulheres que nunca antes se sentiram parte das discussões da esfera pública.
O #elenão, portanto, não é mera hashtag: é um fenômeno de politização das mulheres por meio de um profundo processo de rejeição do eleitorado feminino contra Bolsonaro – 50% de rejeição segundo a última pesquisa Ibope –, que compõe maioria do eleitorado brasileiro. O #elenão é parte de um continuum de ampliação da participação das mulheres no debate público, e pode crescer para muito além da recusa ao candidato do PSL.
Nosso argumento é justamente sobre o quanto o #elenão pode vir a ser esse algo inesperado.
Isso também nos leva a apontar uma falha de interpretação do autor. Pinheiro-Machado escreveu justamente que a chance de um baque na candidatura de Bolsonaro era pequena, mas que poderia existir somente a partir de um fenômeno de milhões de mulheres na rua – e não via bobos memes e hashtag. A história e a teoria dos movimentos sociais estão aí para provar que não existem protestos em massa que não sejam a causa e a consequência de mudanças de estruturas sociais, de abalos sísmicos. Aí Pontin conclui que somente um imponderável poderia desviar a curva de crescimento. Ora, nosso argumento era (e o reiteramos aqui) justamente sobre o quanto o #elenão pode vir a ser esse algo inesperado.
Muitas coisas podem acontecer no dia 29. Não precisamos ir muito longe para lembrar que a solidariedade da população pode mudar de lado por uma faísca que pode desencadear um grande incêndio. Foi o que ocorreu em Junho de 2013, quando a repressão policial foi tanta que imagens da violência geraram comoção e identificação com as jornadas. Agora, mulheres estão profundamente mobilizadas, e qualquer elemento-surpresa pode vir a ser gatilho de um processo maior que pode, sim, ainda que remotamente, reverter em ganhos eleitorais.
A diferença do argumento distanciado de Pontin e do post de Pinheiro-Machado, e que agora se cristaliza nesta tréplica escrita a quatro mãos, é que nós escrevemos, neste momento histórico e político, para imaginar saídas e pavimentar um caminho para sair do buraco em que nos encontramos. O post engajado de Pinheiro-Machado que Pontin criticou era um chamado político, e esta resposta segue na mesma linha. Lembramos aqui que cada uma de nós pode mudar um voto, e que precisamos mostrar nas ruas nossa força contra o conservadorismo e o fascismo, a favor de nossas vidas, nossa liberdade, nossos sonhos. Juntas sonharemos e lutaremos, até o dia 7 (ou 28) de outubro.
Se nada disso se converter em ganho eleitoral, ainda assim não há motivos para pensar diferente ou manifestar nossa indignação de outra forma. Esta luta – que conta com hashtags e memes, mas não só, pois a estamos carregando com nossos corpos – não é sobre percentuais apenas. É sobre como nós, mulheres, estamos ocupando e reinventando a política.
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