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Emprestou seu wifi a um amigo crítico do Doria? Cuidado, ele processou até o dentista de quem falou mal dele.

Nem dentista escapou: candidato a governador de SP caça conteúdo crítico a ele nas redes e processa os autores, seus conhecidos, amigos e familiares.

Emprestou seu wifi a um amigo crítico do Doria? Cuidado, ele processou até o dentista de quem falou mal dele.

Eleições 2018

Parte 9



Esta reportagem foi financiada por nossos leitores


Tamires Morgado* passou a madrugada de 27 de junho em claro. Na noite anterior, havia descoberto que João Doria, candidato a governador de São Paulo, a estava processando. “Eu soube pela Folha de S.Paulo”, lembra. “Mas não fazia ideia do que a repórter estava falando.” A ação por danos morais aberta contra seis réus, no valor de R$ 100 mil, foi motivada por um post de Facebook contra o político tucano – que Morgado nunca escreveu. O que a colocou na mira de Doria? Ter deixado uma amiga usar o wifi de casa.

Faz meses que o ex-prefeito de São Paulo, que se vende como um empresário e gestor liberal, e não como político, promove uma verdadeira cruzada jurídica contra seus críticos virtuais. O multimilionário tem à sua disposição 20 advogados do renomado escritório de direito digital Opice Blum, que monitoram o que sai sobre ele na internet, e o candidato se tornou campeão em pedidos de remoção de conteúdo. Ao ler a íntegra de três processos e confirmar a existência de um quarto, correndo em sigilo, o Intercept descobriu que os alvos não se restringem aos autores dos posts que o desagradam. Do provedor de internet da casa de uma prima até o dentista do autor de uma postagem, identificamos nove pessoas processadas por emprestarem o wifi a um conhecido, amigo ou familiar que criticou o candidato, além de duas microempresas de serviços de tecnologia.

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Quando Morgado hospedou Fernanda Saboia em sua casa, entre outubro e novembro de 2017, a amiga sequer havia criado a página em que foi publicado o post alvo de dois processos de Doria – um por danos morais e o outro por difamação. A página “Marcio França 2018”, de apoio ao governador de São Paulo e concorrente de Doria, foi ao ar em 4 de dezembro de 2017. Já o post, que caracteriza o tucano como “réu no maior caso de corrupção da história de São Paulo”, foi publicado em 13 de abril de 2018, mesma data em que a imprensa noticiou que Doria virou réu por suspeita de corrupção. Mesmo assim, Doria resolveu processar a jovem.

Caça às bruxas

Para chegar aos nomes dos 13 réus, a equipe de Doria e seu partido teve, antes, que processar um peixe bem maior: o Facebook. Além de solicitarem a retirada dos posts, os advogados exigiram que a empresa quebrasse o sigilo dos administradores das duas páginas citadas nos processos para descobrir a identidade dos autores das postagens. A juíza Andrea de Abreu e Braga, da 10ª Vara Cível de São Paulo, e os juízes Mauricio Fioroto e Afonso Celso da Silva, do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, aceitaram prontamente o pedido – os dois últimos, seguindo respectivamente a avaliação dos procuradores Osvaldo Capelari Junior e José Ricardo Meirelles. Os três magistrados ordenaram que o Facebook revelasse os nomes.

Advogados conseguiram acesso aos dados de conexão e chegaram em quem nada tinha a ver com a história.

A rede social forneceu os dados de que dispunha, como o nome, e-mail e telefone de Saboia e de Felipe de Lima Silva, um dos alvos das ações na Justiça Eleitoral. Mesmo com essas informações em mãos, a defesa de Doria e do PSDB não se deu por satisfeita. “Após criada a conta, o responsável pode passar seu login e senha para terceiros”, argumentam em uma das ações. Por isso, defenderam ser “indispensável o fornecimento dos dados de conexão destes usuários”.

Foi assim que os advogados conseguiram acesso aos endereços de IP usados pelos autores dos posts para logar no Facebook. Em seguida, pediram à Justiça que intimasse os provedores de internet e companhias telefônicas a quebrar o sigilo dos donos desses IPs. O pedido foi acatado pelos juízes Raquel Machado Carleial de Andrade, da 20ª Vara Cível de São Paulo, e Afonso Celso da Silva. Já o juiz Mauricio Fioroto aceitou a intimação das companhias telefônicas, mas não dos provedores de internet. Com isso, os advogados chegaram às pessoas que nada tinham a ver com os posts – fato comprovado pelos próprios dados de conexão, que mostravam de início que os usuários estiveram logados no wifi de conhecidos em datas diferentes daquelas das postagens. Uma exceção é o caso do proprietário do apartamento de Saboia. Ela estava usando seu wi-fi ao fazer o post.

Medo de retaliações

Elena Moraes*, também amiga de Saboia, conta que ficou em choque ao saber que estava sendo processada. “Ele é uma pessoa rica, que tem dinheiro e bons advogados. Eu venho de uma família bem pobre e fiquei com medo de ter que pagar alguma coisa. Tenho medo do poder dele sobre o meu.” O ex-prefeito de São Paulo tem mais de R$ 189 milhões em bens declarados, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.

Moraes, que era funcionária do governo França, largou o posto ao saber que a mãe, moradora do Ceará, estava com suspeita de câncer. De volta a São Paulo, ela tem feito bicos como cerimonialista. “Ele vai atrás principalmente de pessoas pequenas. Eu me sinto desprotegida, porque até provar que não sou [culpada], vou ter gastos”, lamentou. “O pai de um amigo meu falou que fazia [a defesa] pra mim por R$ 3 mil. É um advogado de causas populares e me deixou pagar em duas vezes.”

Jornal acusou opositores de Doria de ‘criarem fake news’. Foi por uma repórter que eles souberam do processo.

A angústia financeira é acompanhada pelo medo de retaliações – motivo pelo qual pediu que seu nome não fosse colocado na reportagem. Se antes Moraes se sentia confortável para expressar suas opiniões políticas em suas redes pessoais, hoje, ela se sente intimidada. “Por eu não ter conhecimento jurídico, fiquei muito preocupada, abalada, mesmo. De lá para cá eu me policiei mais.”

A reportagem da Folha de S.Paulo, que foi ao ar quando os envolvidos sequer sabiam do que se tratava o processo, foi outro baque. Os seis réus foram acusados pelo jornal, com base nas alegações do processo, de criarem fake news por quatro deles serem filiados ao PSB, partido do governador. “Eu hospedei uma amiga na minha casa, não tem nada a ver. E ser filiado a partido político não é vergonha para ninguém”, rebate Elena. “Primeiro que eu não tenho nada a ver com essa postagem, segundo que, se ele tem raiva da minha opinião, tem que lidar com isso como político.” Já Tamires, que evita expressar suas opiniões políticas até em suas redes pessoais, conta ter ficado muito triste e tensa com a reportagem. “Sempre tomei muita precaução com esse tipo de coisa. A gente usa as redes sociais também como meio de se relacionar com as pessoas profissionalmente”, explica. “Isso [a reportagem] afeta negativamente minha reputação profissional.”

Publicado um dia depois de os advogados de Doria entraram com o processo, o texto da Folha não menciona o fato de que, à exceção de Fernanda Saboia, nenhum dos réus tinha acesso à página em que foi feito o post. Além de três amigos pessoais de Saboia, foram processados ainda o proprietário do imóvel que a moça aluga e um técnico de informática que sequer a conhecia. Ele foi erroneamente colocado como titular de um IP da Câmara dos Deputados, de onde ela acessou sua conta de Facebook três meses antes do post.

O técnico acabou excluído do processo por danos morais, mas também foi alvo de uma ação por calúnia e difamação que envolve, além dos seis réus do primeiro processo, a mãe e uma tia de Saboia. Os dois ainda estão correndo na justiça.

‘Nem envolve mais minha família’

Um dia antes de Doria processar Saboia e seus conhecidos, o PSDB havia entrado com uma representação na Justiça Eleitoral para conseguir a remoção de um post sobre Doria na página “Tucanos com Marcio França”. A defesa pedia ainda que os três réus – Felipe de Lima Silva, o administrador da página, sua prima e seu dentista – fossem condenados ao pagamento de uma multa por “propaganda eleitoral negativa e antecipada”. No início de julho, o partido entrou com uma segunda ação, junto com Doria, acusando novamente os três por propaganda eleitoral antecipada, além de uma microempresa de manutenção de celulares e o provedor de internet da prima de Silva.

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Um dos posts caracterizados como propaganda eleitoral antecipada, por conta da frase “quem conhece, não vota”. A postagem e a página foram tiradas do ar a pedido da Justiça Eleitoral.

Foto: reprodução

Filiado ao PSDB durante anos, Silva conta que ainda se considera tucano, mas saiu do partido por conta de Doria, que “começou um processo de desconstrução política no PSDB”. Criou, então, uma página em que propagava as ações de Geraldo Alckmin e Marcio França e “a verdade” sobre Doria.

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Conversa apresentada pela defesa da prima de Felipe nos dois processos a que responderam na Justiça Eleitoral.

Foto: reprodução

Condenado pelos juízes Mauricio Fioroto e Afonso Celso da Silva a uma multa de R$ 5 mil em cada ação, Silva afirma ter prometido à prima e ao dentista custear seus gastos com advogados ao longo dos processos. Os dois foram excluídos da ação pela Justiça depois de provarem não ter ligação com a página criada por Silva – mas o processo desgastou suas relações pessoais. Questionado se poderia passar o contato da prima à reportagem, ele foi enfático: “Nem envolve mais minha família. Chega desse assunto, doutora, você vai me desculpar. Esse assunto já me causou problema demais na minha família.” Procurado, o dentista não retornou nossos contatos.

Dados vazados

Nessa caça às bruxas, houve até quem tivesse seus dados pessoais expostos sem nem saber disso. Ao se deparar com um IP da Câmara dos Deputados, a defesa tucana exigiu os dados de todos os servidores da casa que se conectaram ao Facebook por meio dele. O juiz Afonso Celso da Silva acatou rapidamente o pedido, e a Câmara tornou públicos dados de 12 funcionários, como nome, endereço, telefones, CPF e RG. No caso de seis deles, ainda foram incluídas fotos 3×4. Outros cinco tiveram seus dados bancários divulgados.

Nenhum deles foi incluído no processo. Mas, porque usaram o wifi da Câmara para dar aquela espiadinha nas redes sociais, todos tiveram seus dados mais sensíveis vazados. Procurados pelo Intercept, três funcionários confirmaram não ter conhecimento da existência do processo e da divulgação de seus dados. Os demais não retornaram nossos contatos.

*Nomes alterados a pedido das entrevistadas.

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