Após anos penando com uma grave crise econômica e política, o país chega ao fim do primeiro turno da eleição presidencial mais violenta da história da nova república. Facada, tiros, mentiras em proporções inimagináveis e um completo desrespeito às leis marcaram o período de campanha eleitoral. O Brasil virou um faroeste.
As urnas confirmaram as pesquisas que colocavam Bolsonaro e Haddad no segundo turno. Qualquer que seja o resultado final, a certeza é de que tempos ainda mais sombrios estão por vir. Bolsonaro passou a campanha inteira avisando que não aceitaria qualquer resultado que não fosse a sua vitória. Aceitar a derrota nas urnas é um pressuposto elementar da democracia, algo que Bolsonaro sempre fez questão de desprezar. Caso seja vitorioso, bem, não precisa ser vidente para saber como serão as coisas. As pistas foram dadas por sua campanha. Será um governo trágico sob qualquer ponto de vista de qualquer democrata.
Parte relevante do judiciário brasileiro e integrantes do Ministério Público abandonaram os preceitos básicos de suas funções e entraram de sola no jogo eleitoral. Há uma infinidade de casos que atestam esse disparate. A começar pelo descaramento com que Lula foi alijado da disputa. Ele era o candidato preferido dos brasileiros, com chances de ganhar no primeiro turno. O TRF-4 trabalhou com a agenda eleitoral debaixo do braço, atropelando todos os ritos jurídicos possíveis e imagináveis com o intuito claro de impedir sua candidatura. E não se trata de opinião dizer que o Judiciário atuou para influenciar as eleições, mas da realidade dos fatos. Enquanto outras oito determinações de prisão de réus da Lava Jato do Paraná levaram entre 18 e 30 meses para serem expedidas, a de Lula levou apenas nove.
O judiciário influenciou esta eleição especialmente na reta final. Toffoli e Fux driblaram as regras internas do STF e rasgaram a Constituição para impedir que a Folha entrevistasse Lula na prisão, em um caso evidente de censura prévia à imprensa. Na mesma semana, Toffoli aproveitou também para chamar o golpe militar de “Movimento de 64” — um rebatismo que envergonha qualquer democrata e enche de orgulho qualquer cabo eleitoral de Bolsonaro.
Faltando poucos dias para a eleição, às vésperas do debate da Globo, Sérgio Moro resolveu quebrar o sigilo da delação de Antonio Palocci — aquela que havia sido rejeitada pelo MP por falta de provas. As sucessivas ações estratégicas de Sérgio Moro, com evidente intenção política, não espantam mais ninguém. Quem ousará contestar o juiz de primeira instância que, assim como Bolsonaro, se tornou um dos heróis dos nossos tempos?
Integrantes do Ministério Público também militaram firme nessa eleição. A três dias da eleição, na boca da urna, o MPF pediu a condenação de Lula na ação penal envolvendo o Instituto Lula. O procurador do Power Point Deltan Dallagnol não viu problema em divulgar nas suas redes o site Ranking dos Políticos, uma plataforma que supostamente ajuda a escolher candidatos que não estão envolvidos em corrupção, mas que, como já contei aqui nesta coluna, usa critérios que colocam apenas políticos de direita nas primeiras posições do ranking. A TV Band chegou a veicular uma propaganda do ranking nas vésperas da eleição.
Tudo isso seria tratado como escândalo em qualquer democracia séria, mas nós já estamos acostumados com esse faroeste tropical. Boa parte da mídia, inclusive, trata com naturalidade esse ativismo judicial. O fato inegável é que esse conjunto de ações por parte do Judiciário e do MP na reta final favoreceram de algum modo a candidatura Bolsonaro. Parece que a Lava Jato tem um candidato para chamar de seu. Não deve ser à toa que Marcelo Bretas curte os posts de Bolsonaro, enquanto a esposa de Moro faz uma militância bolsonarista velada, que não engana nem os mais bobinhos.
Major Olímpio, braço direito de Bolsonaro, deputado federal e candidato ao Senado pelo PSL, estava preparando um golpe em conluio com um juiz federal para que as urnas eletrônicas fossem recolhidas na véspera da eleição. O secretário popular de Olímpio propôs uma ação popular questionando a segurança das urnas e pedindo que “seja declarado inválido o atual sistema de votação”. O juiz que participou da armação chegou a ir ao Quartel General do Exército em Brasília para explicar como seria o plano aos militares. O golpe foi descoberto, e o juiz afastado pelo Conselho Nacional de Justiça. O caso era para ter sido tratado como um gravíssimo atentado contra a democracia, mas passou apenas lateralmente na grande imprensa. Em nome de uma suposta neutralidade, boa parte do jornalismo se omitiu diante de tantos absurdos e deixou de defender a democracia. Nós estamos mesmo nos acostumando com isso.
Empresários não pensaram duas vezes antes de descumprir a lei para conseguir votos para o candidato do PSL. Além do caso explícito do dono da Havan, que constrangeu seus funcionários e praticamente os obrigou a votar em Bolsonaro, há diversos outros relatos de prática de voto de cabresto por parte de empregadores em todo o país. Parece que a lei no Brasil existe para ser descumprida. É admirável que o principal argumento desses empresários para apoiar Bolsonaro seja o combate à corrupção.
Depois de ficar um tempo estagnado nas pesquisas, Bolsonaro voltou a crescer a partir do último fim de semana. Ao que parece, essa retomada de crescimento das intenções de voto se deve à intensificação das fake news no WhatsApp — que virou uma espécie de deep web brasileira — e também ao apoio de Edir Macedo, que colocou as igrejas para pedir voto para Bolsonaro e mobilizou a TV Record em seu favor.
Boatos sempre existiram em tempos de eleição, mas a forma com que a candidatura de Bolsonaro se dedicou a isso difere de qualquer outra coisa que já vimos no Brasil. Tendo a campanha de Donald Trump como referência, a campanha bolsonarista não apenas alimentou indiretamente a indústria de fake news contra os adversários, mas os próprios integrantes da campanha foram porta-vozes das notícias falsas, sem nenhum constrangimento de mentir publicamente.
Carlos Bolsonaro publicou em suas redes sociais uma notícia falsa que dizia que o TSE enviou os códigos de segurança das urnas eletrônicas para a Venezuela, colocando uma nuvem de dúvida na cabeça do eleitor sobre a lisura da votação. O filho de Bolsonaro teve tanta certeza da impunidade que nem apagou a mentira. No dia da votação, Flávio Bolsonaro publicou um vídeo que mostrava uma urna votando automaticamente em Haddad. No debate da Rede TV, o senador Magno Malta falou em rede nacional que o filho de Lula é proprietário de uma lancha R$ 32 milhões enquanto falava sobre corrupção. Não estamos falando apenas de robôs virtuais contratados para espalhar mentiras, mas da própria campanha do Bolsonaro que faz isso de forma pública, sem disfarces. São políticos com mandato, candidatos à reeleição, que mentem com a intenção de prejudicar adversários e desestabilizar a democracia.
Um levantamento da Agência Lupa aponta que as 10 notícias falsas mais populares tiveram juntas 865 mil compartilhamentos no Facebook desde agosto. Todas elas são a favor de Bolsonaro ou contra seus concorrentes. Portanto, parece que não houve uma guerra de disseminação de boatos entre as candidaturas, mas um massacre por parte da campanha do candidato do PSL.
O TSE, que devia zelar pela credibilidade do processo eleitoral, se calou diante de todos esses absurdos. Em junho deste ano, o presidente do tribunal Luiz Fux anunciou que seria implacável com os boatos durante a campanha: “Por que fiscais podem tirar propagandas infamantes do meio da rua e nós não vamos combater as fake news? Ninguém tem liberdade de expressão para publicar notícia falsa que cause dano irreparável a uma candidatura”. Ao que parece, o próprio anúncio se trata de uma fake news, já que pouco ou quase nada foi feito para impedir a pororoca de mentiras desta eleição. À época, Fux disse ainda que a eleição poderia ser anulada se ficasse comprovado que “ela foi objeto de massificação de fake news”. Não há dúvidas que ela foi, mas é mais fácil acreditar na declaração de bens de Bolsonaro para a justiça eleitoral do que na anulação do pleito.
Fux foi um leão para impedir a entrevista de Lula, mas dificilmente repetirá a postura quando for tratar da indústria de mentiras que influenciaram o processo eleitoral. É que, ao que parece, nossos togados interpretam a Constituição “em sintonia com o sentimento social”, como diria Barroso. E nós sabemos qual é o espírito dos nossos tempos.
Bolsonaro começou a campanha isolado politicamente, mas terminou o primeiro turno agregando forças importantes da sociedade. A possibilidade cada vez mais real de uma vitória trouxe muita gente para o seu barco. Bolsonaro não é mais o bufão solitário que conta apenas com apelo popular e de meia dúzia de militares. As forças conservadoras que gravitavam em torno do PSDB migraram para ele.
O establishment aos poucos foi abraçando o candidato do antiestablishment. Basicamente as mesmas forças que se uniram para apoiar o golpe de 1964 estão hoje ao lado de Bolsonaro. Fiesp, mercado financeiro, igrejas, Forças Armadas e setores da mídia estão apoiando a candidatura que se vendia como a única com condições morais de lutar contra tudo-o-que-está-aí. É mais uma fake news. Bolsonaro é, entre todos os candidatos, o que tem a carreira política mais marcada pelo fisiologismo. O cara que se apresenta hoje como o messias que nos livrará do fantasma do comunismo já defendeu Hugo Chávez, apoiou um comunista no comando das Forças Armadas e já pediu voto para Ciro e Lula. Tudo em nome de interesses partidários. Trata-se de uma farsa com alto potencial para destruir o que resta da nossa já combalida democracia.
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