Em seu discurso da vitória, Jair Bolsonaro afirmou que iria libertar “o Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico”.
Pois bem.
“Ideologia” é dessas categorias difíceis de definir. De modo simplificado, podemos dizer que uma ideologia é uma espécie de lente através da qual o indivíduo enxerga e explica o funcionamento e as transformações do mundo social, político e econômico.
O contrário de “ideologia”, portanto, deveria ser o “pragmatismo”, ou seja, uma ausência de compromisso com quaisquer crenças ancestrais ou simpatias políticas.
O fato é que as declarações de Bolsonaro quanto às relações exteriores do Brasil passam longe de qualquer pragmatismo.
O fato é que as declarações de Bolsonaro quanto às relações exteriores do Brasil passam longe de qualquer pragmatismo.
Por exemplo. Bolsonaro cogita romper relações diplomáticas com Cuba. Que pragmatismo há nisso? Que ganho político ou econômico pode haver nessa decisão?
Na gestão Dilma Rousseff, o Brasil financiou via BNDES a modernização do porto de Mariel, através de empresas nacionais, ao custo de mais de US$ 680 milhões.
Essa foi uma decisão “ideológica” dos governos petistas, aparentemente contrárias às recomendações dos técnicos.
Inês, todavia, é morta. É do interesse do Brasil, no mínimo, reaver o dinheiro de tais empréstimos.
Cuba, por conta de suas dificuldades econômicas perenes e de gastos extraordinários realizados após a destruição provocada por um furacão em 2017, encontra-se com parcelas em atraso com o Brasil.
Romper relações não ajudaria em nada nesse processo.
Vale lembrar que Donald Trump, com quase dois anos de mandato e reversões no processo de aproximação com Cuba, iniciado por Obama, não rompeu relações diplomáticas com aquele país. A embaixada americana em Havana segue funcionando normalmente.
Argumentos similares podem ser usados no caso da Venezuela.
O BNDES também liberou, a partir de 2004, créditos para exportação através da Odebrecht, para obras como a de expansão do metrô de Caracas.
Ainda que o país fosse politicamente instável, o preço do barril do petróleo – que responde por 95% das exportações venezuelanas – passou de US$ 53 em 2005 para mais de US$ 100 em 2014. Como petróleo é quase tão bom quanto dólar, o negócio parecia viável.
Parecia.
Com o caos político e econômico instalado naquele país e a queda vertiginosa do preço do petróleo nos últimos anos, a Venezuela também está inadimplente com o Brasil.
As cifras aqui são bilionárias. Logo, se não por razões humanitárias, as razões econômicas do mais amargo pragmatismo recomendam o permanente diálogo com esses dois países.
Além desses créditos, o comércio bilateral com a Venezuela sugere pragmatismo por parte do Brasil. Ainda que em 2017, por conta do colapso econômico daquele país, as nossas exportações para lá tenham sido de apenas US$ 470 milhões, em 2012 elas foram de quase US$ 5 bilhões.
O Brasil não tem legitimidade, tampouco capacidade para derrubar o regime de Maduro. Qualquer proposta de intervenção militar naquele país seria vetada no Conselho de Segurança da ONU por China e Rússia.
Se Bolsonaro se inspira tanto nos EUA, poderia aprender que os americanos seguem fazendo comércio com Caracas.
Caberia ao Brasil tentar contribuir para amenizar o sofrimento do povo venezuelano, bem como uma solução pacífica da tragédia econômica, social e política que se desenrola por lá. Uma Venezuela de volta aos trilhos interessa à economia brasileira. Se o tom de Bolsonaro é de fato o pragmatismo, é para isso que ele precisa olhar. Se ele se inspira tanto nos EUA, poderia aprender que os americanos seguem fazendo comércio com Caracas porque, afinal, isso é pragmatismo. Outro exemplo: mesmo sob bloqueio, mais de 100 país fazem comércio com a Coreia do Norte. Pragmatismo.
Essa retórica agressiva e infantil contra Cuba e Venezuela só serve para agradar os elementos transtornados de uma certa direita anticomunista paranoica nacional.
Já Paulo “Posto Ipiranga” Guedes, em um momento de fúria despropositada, querendo replicar o comportamento “machão” de seu chefe, afirmou a uma jornalista argentina que “o Mercosul não é prioridade”.
O bloco econômico originalmente formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai (a Venezuela faz parte, mas está suspensa), é abrigo de mais de 260 milhões de pessoas, tem PIB da ordem de US$ 2,78 trilhões, o que o coloca como a 5ª maior economia do mundo.
Isso já mostra a ignorância de Paulo Guedes.
Em 12 meses, o Brasil exportou US$ 22 bilhões para os países do Mercosul, tendo um superávit comercial de U$ 10,7 bilhões. Isso representa quase 16% do superávit comercial do Brasil naquele ano.
Para se ter uma ideia, em 2017 o Brasil exportou US$ 26,8 bilhões para os Estados Unidos, importando US$ 24,8 bilhões, o que torna nosso comércio bilateral superavitário* em US$ 2 bilhões. Entre 2009 e 2016, porém, nós fomos sistematicamente deficitário com eles, isto é, compramos mais dos EUA do que eles da gente.
Para Israel, as exportações em 2017 foram de apenas US$ 466 milhões.
Renegar ou desprezar o Mercosul é, sim, um viés ideológico, e dos mais estúpidos.
Nenhum indivíduo pragmático diria que tais parceiros não são prioritários.
E mais: ao longo de 2017, o Brasil exportou US$ 20 bilhões em produtos manufaturados para o bloco,e US$ 1,8 bilhão em produtos primários. Ao contrário do padrão das nossas exportações – somos conhecidos mundialmente como vendedores de bens primários tipo soja ou carne, cujo valor é muito menor do que vender automóveis, por exemplo – o Mercosul é um cliente das nossas fábricas.
Só na rubrica “automóveis de passageiros”, o Brasil vendeu US$ 4,7 bilhões para a Argentina. Em “veículos de carga” a cifra foi de US$ 1,82 bilhão.
O mercado argentino é crucial para a indústria nacional. A Argentina foi a terceira colocada no ranking das origem das importações e do destino das exportações brasileiras em 2017. Renegar ou desprezar o Mercosul é, sim, um viés ideológico, e dos mais estúpidos.
Mas talvez a mais despropositada das medidas anunciadas por Bolsonaro seja a de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém.
De acordo com o plano de partilha da Palestina de 1947, Jerusalém deveria ter um status especial, graças à sua importância para cristãos, judeus e muçulmanos.
Já em 1948, após uma guerra, Israel apropriou-se de uma parte da cidade. Em 1967, após novo conflito, as tropas israelenses ocuparam o resto da “cidade sagrada”. De maneira unilateral, o estado de Israel declara Jerusalém como sua capital.
O Direito Internacional não reconhece essa declaração, porque não reconhece o direito de um país expandir seu território através de conquistas militares. Assim, apesar de estar sob o controle de fato de Israel, Jerusalém não é reconhecida pela comunidade internacional como capital legítima daquele Estado.
Os países liderados por pessoas com um pingo de juízo preferem ficar de fora desse imbróglio, mantendo suas representações diplomáticas em Tel Aviv, o que deixa o enorme mercado do oriente médio e de muçulmanos em geral aberto. Estamos falando de um bilhão de pessoas.
Das 88 embaixadas em Israel, só 2 ficam em Jerusalém: a dos Estados Unidos e da Guatemala.
Um presidente brasileiro macaquear o tresloucado gesto de Trump é tragicômico.
Primeiro, existe o ônus político.
O Brasil tem historicamente ótimas relações tanto com Israel assim como com os países árabes. Reconhecemos o direito de Israel de existir como país, reconhecemos o direito da criação de um estado palestino (há inclusive uma embaixada da Palestina no Brasil), defendemos uma solução negociada para o conflito. Bolsonaro quer jogar tudo isso no lixo em troca de quê? Não é por pragmatismo, não. É por ideologia.
Agradar sua base evangélica fanática? Satisfazer o desejo de “lacração” de seus seguidores que papagueiam a direita radical americana? Receber um tapinha de “bom garoto” de Trump? Isso tudo ao custo de esgarçar nossas relações com todos os países árabes e mulçumanos, e penalizar o PIB do nosso país.
O governo do Egito já adiou uma visita oficial ao Brasil programada para este mês, gesto que no mundo diplomático sinaliza uma clara insatisfação. O motivo declarado pelo Egito foi, nominalmente, as declarações de Bolsonaro sobre Israel.
O Egito foi responsável pela compra de US$ 2,42 bilhões em produtos brasileiros em 2017.
O quadro acima mostra que os ruralistas que apoiaram Bolsonaro têm razões para controlar os impulsos do presidente eleito. Não por ideologia, mas por pragmatismo.
Cremos ter sido o alerta dos próprios ruralistas que levaram o futuro presidente a desdizer o que havia dito que iria fazer, recuando (por enquanto?) de sua decisão de transferir a embaixada para Jerusalém
O Irã, outro país que pode ficar insatisfeito com a postura de Bolsonaro, comprou US$ 2,5 bilhões do Brasil em 2017, com a pauta dominada pelos produtos do nosso agronegócio.
Israel, por sua vez, comprou apenas US$ 460 milhões em produtos brasileiros em 2017, e ao contrário do que ocorre com Egito e Irã, somos deficitários no comércio bilateral com esse país, ou seja: gastamos mais dinheiro comprando produtos deles do que vendendo o que produzimos. Ou seja, nem nos princípios elementares do nacionalismo econômico hoje em moda, faz sentido esse movimento.
Até este momento, as declarações de Bolsonaro sobre política externa são de um simplismo abissal. Tomara que os funcionários do Itamaraty, os ruralistas e industriais pragmáticos, sejam capazes de controlar os impulsos de nosso Trumpinho tropical e sua política externa ideológica.
*Correção, 12/11, às 12h21: Escrevemos erroneamente “deficitário”. Em 2017, a balança comercial com os EUA foi superavitária para o Brasil, contrariando uma tendência histórica.
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