Na manhã de 9 de novembro de 2016, milhões de americanos acordaram como numa névoa. Em New Holland, no estado da Pennsylvania, Annie Weaver parou na loja de conveniência Wawa no caminho para a escola onde dá aula, e não conseguia olhar as pessoas nos olhos. Brandi Calvert, uma corretora de imóveis em Wichita, no estado do Kansas, só conseguiu sair da cama porque precisava levar o filho de 11 anos para a escola. Antes de sair, ela contou a ele o que tinha acontecido, mas ele se recusou a acreditar.
Levei minha filha a pé para a escola naquela manhã em Washington, D.C., e entrei com ela para a aula aberta quinzenal da salinha do jardim de infância. Um aluno do terceiro ano tinha sido sorteado para a tarefa de ler as notícias do dia no alto-falante, e começou com uma breve história da expansão do direito ao voto. Ingressou então em assuntos mais recentes: “Em 2008, Barack Obama foi o primeiro afro-americano a ser eleito presidente. Este ano, em 2016, Hillary Clinton foi a primeira mulher candidata à presidência. Numa eleição surpreendente, ela foi derrotada por Donald Trump”, disse ele. “Passem pela sala 308 para ver nossa linha do tempo. Tenham um bom dia.”
Minha filha – que estava “torcendo para a menina ganhar” e tinha descoberto que Trump era um canalha e um valentão ofensivo – permaneceu excepcionalmente quieta, e sua professora, que vestia um jeans preto e um hijab verde-oliva, virou o rosto para esconder as lágrimas.
Não havia nada a dizer, nada que pudesse ser dito, para consertar a realidade nua e crua de que, depois de uma campanha virulenta e cheia de ódio, um número suficiente de pessoas nos Estados Unidos tinha votado em Donald Trump para torná-lo o 45º presidente do país.
De volta a Wichita, Brandi dirigiu até em casa e ligou para sua mãe. “Eu alternava entre as emoções de chorar e sentir raiva e não acreditar, certamente tinha sido um erro e seria corrigido” – recorda-se.
Depois de elaborar seu luto, um processo que, segundo ela, levou duas semanas, Brandi Calvert, como milhões de outras pessoas em todo o país, foi consumida pela necessidade de “fazer alguma coisa”. Não havia nada a dizer, mas havia algo a fazer. E o que seria esse algo?
Os últimos dois anos de construção partidária e resistência pertencem a um grupo multiétnico, multigeracional e multifacetado de ativistas.
A maior parte dessas pessoas, até então, tinha pouca experiência com ativismo político, mas muitos já haviam se envolvido bastante em eventos comunitários, nas escolas locais ou em ações de caridade. Elas ainda não sabiam, mas já eram organizadoras políticas. Convencidas de que não era possível que Trump pudesse realmente ser o presidente, elas lidaram com a destruição iminente do país partindo para o tudo ou nada. Mais de 160 mil pessoas doaram, conjuntamente, 7 milhões de dólares para que Jill Stein, candidata do Partido Verde, financiasse uma recontagem, na esperança de que Hillary tivesse obtido votos suficientes para sair vencedora. Quando essa estratégia não funcionou, os recém-criados ativistas se voltaram para os membros do Colégio Eleitoral, pressionando incessantemente para que mudassem seus votos e elegessem alguém, qualquer um, que não fosse Trump. Se os membros do Colégio Eleitoral não podiam fazê-lo, insistiram os ativistas, eles poderiam pelo menos encaminhar a eleição à Câmara dos Deputados, não? Talvez o Presidente da Câmara, Paul Ryan, pudesse cumprir seu dever de estadista e salvar a União. Com certeza os líderes do Partido Democrata em Washington conseguiriam evitar que o pior acontecesse.
Logo ficou claro que não viria ninguém ao resgate, e que as pessoas que queriam fazer algo precisariam fazê-lo por conta própria. Não havia garantia de que surgiria uma resistência ampla e potente ao governo Trump, ou que em menos de dois anos os Democratas pudessem representar uma ameaça plausível ao controle dos Republicanos sobre a Câmara. A bem da verdade, as lideranças do Partido Democrata estavam tendentes a aderir a uma solução de compromisso, mesmo depois que pessoas próximas a Trump elogiaram o ex-presidente Franklin D. Roosevelt e seu uso de campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
Os últimos dois anos de construção partidária e resistência pertencem a um grupo multiétnico, multigeracional e multifacetado de ativistas, liderado principalmente por mulheres que apoiam mulheres, e ativado por uma eleição catastrófica que libertou uma força latente que há muito tempo permanecia inativa no cenário político. Candidatos e voluntários disseram repetidamente que a última vez em que haviam visto uma mobilização tão ampla e apaixonada fora em prol da campanha presidencial de Barack Obama, em 2008. Porém, diferentemente de 2008, este ano não há uma liderança centralizada. Isso significa que, mesmo depois de computados os votos na terça-feira, não há ninguém para mandar as pessoas de volta para casa. O Partido Democrata está preso a elas.
Montando um Exército
Quando chegou o Dia de Ação de Graças em 2016, a maior parte dos liberais já tinha saído do estado de choque eleitoral e entrado em modo de organização. Ezra Levin e Leah Greenberg, ex-funcionários do Legislativo federal, que então trabalhavam para organizações progressistas sem fins lucrativos, estavam visitando suas famílias no feriado quando se encontraram com uma amiga da faculdade em um bar em Austin, no Texas.
A amiga contou a eles que estava administrando um grupo no Facebook de resistência a Trump. O grupo Dumbledore’s Army [A Armada de Dumbledore, da série de livros Harry Potter] tinha 3 mil membros entusiasmados, mas sem um direcionamento claro, confessou a amiga. “Eles estavam indo às manifestações, mandando cartões-postais a Paul Ryan e ligando para os eleitores” – o pessoal do Colégio Eleitoral – “e de certa forma sentiam que estavam batendo a cara na parede”, Levin contou ao Intercept.
Levin e Greenberg então explicaram à sua amiga como, exatamente, os manifestantes do “tea party” [a ala de extrema-direita do Partido Republicano] tinham conseguido sacudir o Congresso em 2009 e 2010, e explicaram que tipo de pressão funciona sobre um parlamentar, e, mais importante, o que não funciona – por exemplo, mandar cartões-postais para o presidente da casa. A amiga estava mesmerizada: isso era exatamente o que ela e seu grupo precisavam saber.
Na época, apareceram inúmeros guias de resistência ao fascismo, mas nenhum deles dava orientações práticas para as pessoas que buscavam o que fazer de forma cotidiana ou muito frequente.
Levin e Greenberg, marido e mulher, condensaram seus pensamentos em um documento de texto que foi compartilhado com amigos de Washington entendidos em política, e começaram a refinar o guia aos poucos. Quando chegou a hora de publicar o documento, no entanto, nenhuma das pessoas do grupo queria que seu nome aparecesse nele.
Afinal, eles trabalhavam para os Democratas, e o conteúdo do guia provavelmente não seria bem recebido por sua chefia. Metade do problema dos ativistas, segundo o guia, era o próprio Partido Democrata, que não se poderia presumir que integraria a resistência contra Trump, e que precisava ser empurrado e instado a agir.
O documento, que foi chamado “Indivisible Guide” [Guia Indivisível] foi publicado em dezembro de 2016. Logo na sequência, representações do movimento Indivisible começaram a aparecer pelo país. Os Socialistas Democráticos da América, por sua vez, atraíram os apoiadores do senador Bernie Sanders, o mais conhecido socialista democrático assumido, que engrossaram em peso as fileiras da organização. Um grupo chamado Our Revolution [Nossa Revolução] nasceu das cinzas da campanha presidencial de Sanders. Em algumas regiões, ativistas de base criaram suas próprias organizações, como a Lancaster Stands Up [Lancaster Se Levanta] na terra de Annie Weaver em Lancaster, Pennsylvania.
Havia rumores sendo espalhados no Facebook e na imprensa nacional sobre uma Marcha das Mulheres em Washington, D.C. no dia seguinte à posse de Trump. Weaver resolveu ir da Pennsylvania até lá, mesmo que precisasse ir sozinha. Brandi Calvert, recém-saída da tristeza pós-eleição, também planejava comparecer, mas acabou tendo outra ideia: por que não organizar uma marcha em Wichita?
Ela contou que nunca tinha organizado nada além de uma excursão de campo, mas percebeu que sabia o suficiente para colocar as coisas no lugar. Dentre as 5 milhões de pessoas que se estima terem participado de manifestações em diversas cidades dos EUA em 21 de janeiro de 2017, aproximadamente 3 mil manifestantes estavam nas ruas de Wichita.
James Thompson, um veterano militar e advogado de direitos civis, estava entre eles, e o tamanho da multidão lhe deu uma ideia. O representante local no Congresso, Mike Pompeo, havia acabado de ser nomeado diretor da CIA, o que significava que haveria uma eleição especial para substituí-lo. Por que não concorrer?
O pico de energia se traduziu em milhares de pessoas interessadas em se candidatar, e milhares de outras buscando se filiar ao moribundo Partido Democrata.
O pico de energia se traduziu em milhares de pessoas interessadas em se candidatar, e milhares de outras buscando se filiar ao moribundo Partido Democrata. “Eu estou ocupado este ano como estive ao longo de todo o ano passado, no meio de uma eleição enorme”, foi o que me disse no começo do ano Mark Fraley, presidente do Partido Democrata de Monroe County no estado de Indiana, quando as representações locais do partido em todo o país começaram a precisar de espaços maiores para realizar suas reuniões, antes modorrentas, agora cheias até o teto. “O que está muito diferente é que o partido ficou mais jovem”, disse ele. “Os jovens nunca quiseram ser parte significativa da infraestrutura do Partido Democrata. Agora isso parece ter mudado.”
Concorrendo a um Cargo Eletivo
Tão logo Thompson anunciou sua candidatura para a eleição especial no 4º Distrito Congressional, a representação local da Indivisible, fundada pela amiga de Calvert, tomou a iniciativa de conduzir sua campanha. Embora Trump tenha levado o distrito por quase 30 pontos, o exército popular de Thompson foi à luta, espantando os comentaristas ao perder por apenas sete pontos. (Ele anunciou de imediato que concorreria novamente ao cargo em novembro de 2018.)
A temporada das eleições especiais começou em dezembro de 2017. O Partido Democrata do Delaware havia indicado Stephanie Hansen para concorrer numa eleição especial em fevereiro em uma vaga no legislativo estadual que decidiria o controle da casa. O candidato Republicano, um policial aposentado de Nova York, tinha concorrido em 2014 e perdido por apenas dois pontos.
Enquanto fazia sua campanha porta a porta, Hansen assistiu de camarote a um despertar histórico. “O que vi pessoalmente, começando em dezembro, foi que os Democratas da comunidade estavam deprimidos, muito tristes. Havia muita angústia, de 21 de dezembro até mais ou menos a data da posse”, ela me disse à época.
“Tão logo [aconteceram] a posse e as Marchas das Mulheres, os Democratas e todos aqueles que pensam de forma semelhante sentiram muita raiva”, contou ela, recordando a indignação que cercou a proibição de ingresso de muçulmanos e outros decretos que foram disparados da mesa do então assessor da Casa Branca, Steve Bannon. “Eu acompanhei desenrolar do processo. Aquela raiva se transformou em algo diferente. Ela se transformou em determinação.”
Uma inundação de voluntários e pequenas doações veio de todo o país, e Hansen trucidou seu adversário por 16 pontos. Quando conversei com ela, quase dois anos depois, ela me disse que a energia que sente quando vai às ruas só tem aumentado desde então. Ela disse que ainda recebe volumes esporádicos de doações de pequeno porte, e que consegue saber por sua página de captação de recursos na ActBlue quando Trump fez algo especialmente horrível.
Os doadores comunitários, movidos pela necessidade de “fazer alguma coisa”, investiram milhões na disputa, e efetivamente empurraram o partido adiante.
Naureen Akhter, uma jovem mãe da cidade de Nova York, sentiu-se compelida a agir depois da eleição de Trump, e seu primeiro telefonema como voluntária de campanha foi em prol do Democrata Jon Ossof na eleição especial de 2017 no 6º Distrito Congressional do estado da Georgia. O Comitê de Campanha Congressional Democrata [DCCC], o órgão do partido responsável por vencer eleições, não queria competir lá, preocupado com a baixa probabilidade de vitória de um Democrata, muito embora Trump tivesse vencido no distrito por apenas 1,5 pontos. Mas os doadores comunitários, movidos pela necessidade de “fazer alguma coisa”, investiram milhões na disputa, e efetivamente empurraram o partido adiante.
Akther se decepcionou quando Ossof teve pouco menos de 50% no primeiro turno de votação e perdeu no segundo turno, mas ainda queria se filiar ao Partido Democrata local. Isso se revelou um desafio, pois os detalhes de data e local das reuniões eram mantidos em segredo, e os membros do partido nunca lhe davam essas informações, embora prometessem que o fariam por e-mail. Ela finalmente descobriu um evento organizado por um senador estadual da região [o Legislativo estadual é bicameral nos EUA]. Ela compareceu e descobriu que ele era membro da Conferência Democrática Independente [Independent Democratic Conference, IDC], um grupo de Democratas que fazia convenções com os Republicanos. (O IDC foi formalmente extinto em 2018). Nada muito inspirador.
Por um acaso, porém, ela se deparou com um evento de campanha de uma candidatura diferente. O nome da jovem candidata era Alexandria Ocasio-Cortez, e ela estava concorrendo em uma disputa quixotesca contra o deputado Joe Crowley, que se esperava vir a ser o próximo presidente da Câmara depois de uma virada Democrata. Akhter decidiu que, se não podia se filiar ao partido, iria derrotá-lo. Ela se tornou uma das principais voluntárias de Ocasio-Cortez, e posteriormente diretora de organização da candidata de 28 anos – nas eleições do dia 6, ela se tornou a mulher mais jovem já eleita ao Congresso.
“If something needs fixing, then lace up your shoes and do some organizing,” @BarackObama
Gathering petition signatures for candidate we believe in here in NY-14! @Ocasio2018 pic.twitter.com/KOpPxJjrzE— Naureen Akhter (@NaureenAkhter) 10 de março de 2018
Organização Vale a Pena
Toda essa energia difusa bateu de frente com a estrutura oficial do Partido Democrata, que não estava preparada e, em alguns casos, nem disposta a recebê-la. O partido, gerido de cima para baixo pelas lideranças em Washington, avaliou sua performance e decidiu manter todos os mesmos líderes, dando inclusive ao deputado Ben Ray Luján um segundo mandato como presidente do DCCC.
Enquanto isso, o deputado Sean Patrick Maloney, um Democrata conservador de Nova York, recebeu a tarefa de conduzir uma autópsia do que teria dado errado para os Democratas na Câmara. O relatório que ele elaborou no primeiro semestre de 2017 foi imediatamente enterrado, e até hoje não foi divulgado.
Os líderes nacionais do partido tinham uma estratégia em mente: recrutar candidatos centristas com capacidade de captar recursos de grandes doadores. Por essa razão, ignoraram ou rejeitaram todas as recomendações para combater Trump que envolvessem uma alternativa progressista forte – como as que foram feitas pelas representações da Indivisible, pela Lancaster Stands Up, pelo Partido Democrata local, pela Swing Left, ou pelos Socialistas Democráticos da América [DSA].
Era confuso lutar contra o Partido Democrata oficial, mas o Guia Indivisível havia preparado milhões de pessoas, e os 50 mil (e em crescimento) membros de carteirinha dos DSA estavam prontos para entrar na batalha. Usando força bruta, despontaram nas primárias por todo o país, vencendo diretamente algumas delas e puxando os candidatos para seu lado em outras.
As lideranças nacionais do partido ignoraram ou rejeitaram todas as recomendações para combater Trump que envolvessem uma alternativa progressista forte.
O ato de organizar, de lutar por alguma coisa, se tornou terapêutico. A energia, em vez de se dissipar, se retroalimentou, formando e fortalecendo conexões. Houve uma transformação fundamental na esquerda: milhões de pessoas reconheceram que a organização e o ativismo não são necessariamente um ônus, nem são atos exclusivamente altruístas, e podem ter um efeito rejuvenescedor e ajudar a encontrar sentido num mundo cada vez mais sombrio. No último fim de semana, voluntários da organização Swing Left, fundada depois da eleição de 2016, fizeram contato, batendo de porta em porta ou telefonando, com 2 milhões de pessoas em 84 distritos. Um representante declarou que aproximadamente 4 de cada 10 dos voluntários mais ativos nunca tinham participado de organização política antes das eleições de 2018. Desses, três quartos eram mulheres.
O que mostram praticamente todas as pesquisas e entrevistas feitas com os eleitores do país é que os rompantes racistas de Trump podem até ser eficazes para seus apoiadores – talvez aumentando seu nível de ódio de 11 para 12 – mas produzem o efeito oposto sobre eleitores com nível superior nos subúrbios e zonas rurais, em especial sobre as mulheres.
Representações da Indivisible que eram organizadas essencialmente por mulheres com ensino superior agora podiam atrair novos eleitores abertos à persuasão. As discussões que aconteceram no Facebook e em encontros presenciais contribuíram para um êxodo em massa dessas mulheres em relação ao Partido Republicano. As mulheres brancas com ensino superior votaram confortavelmente no candidato Republicano à presidência em 2012, Mitt Romney, mas mudaram para Hillary em 2016 com pequena margem. Em 2018, elas estão prontas para votar nos Democratas com pelo menos 15 pontos de vantagem.
Pesquisas de boca de urna mostraram, em 2016, que Trump venceu com 52% do voto das mulheres brancas, um número que contribuiu para a intensa demonização dessa categoria em todo o espectro político. Esse dado, porém, ignora uma distinção fundamental, a religião, e vem sendo usado para produzir uma narrativa amplamente equivocada. Evangélicos brancos representaram um quinto dos votantes em 2016, e entre eles Trump venceu com uma impressionante maioria de 80% dos votos. Segundo o instituto Pew, cerca de três quartos dos evangélicos não têm ensino superior, o que significa que, se olharmos para as mulheres brancas não evangélicas, elas votaram maciçamente em Hillary Clinton, independentemente de terem ensino superior ou não. Esse grupo de mulheres tende a se agarrar com mais força ainda aos Democratas em 2018, embora a relevância desse realinhamento se perca quando as mulheres brancas são todas agrupadas e o foco recai sobre a estatística de 52%.
No mínimo, esse realinhamento permite dar aos Democratas o controle não apenas das áreas urbanas em expansão no país, mas também dos subúrbios mais elegantes, o que deixa os Republicanos apenas com as regiões rurais e os exúrbios – território das classes trabalhadoras que enfrentam longos trajetos até o centro, onde não há uma identidade orgânica, onde as escolas públicas são apenas razoáveis, e onde se concentra uma crescente população de imigrantes.
Mas até mesmo esse último reduto se encontra sob ameaça, agora que há grandes chances de que ativistas e candidatos Democratas que ignoraram a recomendação do partido de que era impossível vencer nas áreas rurais obtenham importantes vitórias na terça-feira.
O DCCC pode ter ocultado a autópsia de Maloney, mas ele mostrou uma prévia do trabalho para o Washington Post. Sua análise era de que os Democratas simplesmente não conseguiriam vencer em certos distritos rurais, embora alguns distritos suburbanos se mostrassem como oportunidades de retomada. Esse segundo ponto era uma extensão do consenso de 2016, e se mostrou acertado neste ciclo. O primeiro, porém, era um engodo. Os dois distritos rurais que ele usou como exemplo foram o 2º de Minnesota e o 1º de Iowa. O DCCC acabou investindo recursos em ambos, e foi uma decisão sábia: os Democratas foram eleitos nos dois distritos, antes considerados impossíveis de vencer.
Não era esperado que Thompson vencesse no 4º distrito do Kansas (e ele realmente perdeu), mas sua candidatura teve alguns benefícios complementares. Uma voluntária de sua campanha original concorreu à Câmara Estadual, mas acabou derrotada, e outra concorreu a comissária do condado de Sedgwick – Lacey Cruse acabou se tornando a única mulher eleita no condado, derrotando o republicano que buscava reeleição ao cargo. Além disso, há uma onda de eleitores se registrando. Essas novatas deram impulso à Democrata Laura Kelly, que se elegeu governadora na disputa contra Kris Kobach, secretário de Estado do Kansas em fim de mandato. Os Democratas também tiveram chance na disputa pela sucessão de Kobach, com o co-fundador do Google Earth, Brian McClendon, concorrendo a secretário de Estado. Embora derrotado, ele construiu uma ferramenta simples de registro de eleitor com o objetivo de expandir o direito de voto, numa tentativa de desfazer o legado de Kobach de supressão de eleitores.
A candidatura de Thompson teve alguns benefícios complementares.
Duas outras cadeiras na Câmara, juntamente com o palácio de governo, estão ao alcance dos Democratas no Kansas, e, em Oklahoma, os Democratas se valeram das eleições especiais para virar quatro cadeiras do legislativo estadual em distritos profundamente Republicanos. Na esteira da greve de professores, eles conseguiram o governo do Estado.
Nas regiões rurais de Iowa, Virgínia, Pensilvânia, Virgínia Ocidental e na Península Superior de Michigan, os Democratas progressistas estão ganhando terreno em distritos há muito considerados fora de alcance. Toda a região do Cinturão da Ferrugem e do Meio-Oeste está se revoltando contra Trump, e os Democratas ameaçavam ganhar todos os assentos de Iowa na Câmara e até o governo do Estado – no fim, perderam apenas uma das disputas legislativas, mas o governador Republicano conquistou a reeleição.
Em Michigan, Illinois, Wisconsin, Kansas, Iowa, Oklahoma e Ohio, os Democratas entraram no dia das eleições com chances de tomar dos Republicanos o governo estadual – e ganharam nos quatro primeiros.
Doações Comunitárias
Uma característica definidora do crescente ativismo liberal é o tratamento dado à captação de recursos. Em vez de cortejar doadores ricos, como o Partido Democrata fez por muito tempo, os candidatos que pretendem tomar das mãos dos Republicanos os governos estaduais e o Congresso buscaram os doadores de pequeno porte, as pessoas que só poderiam contribuir com menos de 200 dólares para uma única campanha. As doações em frações de 3, de 5 e de 27 dólares se tornaram a marca registrada das campanhas progressistas em todo o país.
O partido em geral só adotou essa estratégia de captação de recursos por meio de consultores de Washington que bombardearam as caixas de entrada com e-mails que pareciam cobrança de dívidas. Porém, a despeito de ter praticamente deixado de lado as doações corporativas pelos PAC [Political Action Committees, os Comitês de Ação Política], os candidatos Democratas à Câmara captaram um total recorde de 250 milhões de dólares, apenas no terceiro trimestre de 2018. Mais de 60 candidatos captaram acima de um milhão de dólares no trimestre. Quando as pesquisas mostraram que o deputado nacionalista branco Steve King poderia ser derrubado no 4º distrito de Iowa, ativistas comunitários enviaram, em dois dias, 641 mil dólares ao ex-arremessador de beisebol da série B, J.D. Scholten, mesmo ele não estando na Lista “Red to Blue” [Vermelho para Azul, Republicano para Democrata] do DCC.
Em janeiro, a ActBlue, plataforma sediada em Boston que arrecada e distribui doações de pequeno porte para candidatos Democratas, celebrou a marca de 2 bilhões de dólares arrecadados desde sua fundação em 2004, quando a campanha presidencial de Howard Dean abriu espaço para a era das pequenas doações.
No final de outubro, essa marca chegou a 3 bilhões.
Republicanos, perplexos com essa corrida do ouro, insinuam que possa se tratar de alguma trama nefasta. “O outro lado de alguma forma conseguiu que as pessoas mandem dinheiro a esse grupo em Massachussets, para ser encaminhado ao outro lado do país”, declarou um confuso Pete Olson, deputado Republicano em exercício há cinco mandatos que teve dificuldade para manter sua cadeira da Câmara em um distrito no subúrbio de Houston que, embora produto de rearranjos na composição dos eleitores [conhecidos como “gerrymandering”], está em rápida mudança.
O oponente de Olson, um ex-funcionário do serviço de pessoal estrangeiro, Sri Preson Kulkarni, fez campanha telefônica em pelo menos 13 línguas, buscando atingir comunidades asiáticas e africanas existentes nas subdivisões do distrito. Kulkarni não trouxe ninguém de avião de Massachussets para isso – quem fez suas ligações foram voluntários que analisaram a lista de eleitores para categorizar os residentes por origem étnica, e então fizeram contato de forma personalizada, muitas vezes em suas próprias línguas. “Nós vemos que os verdadeiros líderes comunitários são as forças organizadores nas comunidades específicas”, disse Ali Hasanali, parte de um batalhão de jovens organizadores que aprimorou essa técnica na campanha de Kulkani. “Não dá para ter uma representação apenas simbólica. Isso não oferece o conhecimento sobre a comunidade que alguém de dentro dela tem.”
Qual Terceira Via?
Se você conversar com o bando de operadores de campanha, planejadores de mídia, estrategistas, e mandarins políticos que controlam a ala centrista do partido, eles explicarão como dominaram o ciclo de 2018, canalizando a energia anti-Trump para candidatos moderados com perfil de negócios, que devolverão a Washington um equilíbrio bipartidário. Em setembro, a Third Way [Terceira Via], a mais eloquente defensora do centro político, liberou uma análise preliminar, mostrando que os candidatos apoiados pelo DCCC e pelo NewDemPAC, o braço político da coalizão de centro da Câmara, a New Democrat Coalition [Nova Coalizão Democrata], venceram um número extraordinário de disputas, enquanto grupos de esquerda como Brand New Congress [Congresso Totalmente Novo], Justice Democrats [Democratas da Justiça], e Our Revolution [Nossa Revolução] tiveram um índice muito mais baixo de vitórias. Jim Kessler, cofundador da Third Way, tem brandido esses números como uma arma. Ele se gabou de que “20 milhões de Democratas não podem estar errados” em um e-mail enviado internamente para alguns Democratas e encaminhado ao Intercept.
Um mergulho nos números mostra que esses sucessos foram francamente exagerados.
Mas um mergulho nos números, como fez o Progressive Change Institute [Instituto Mudança Progressista], mostra que esses sucessos foram francamente exagerados. Por exemplo, as estatísticas da Third Way alegam que 32 dos 37 candidatos do NewDemPAC incluídos nas listas de acompanhamento da organização antes das primárias venceram suas disputas. Mas em oito dessas disputas (9º distrito de Arizona, 2º distrito do Kansas, 2º distrito de Minnesota, 22º distrito de Nova York, 6º distrito da Pensilvânia, 4º distrito de Utah, 5º distrito de Washington e 6º distrito de Wisconsin), o candidato apoiado pelo NewDemPAC não teve oponente na primária. Em outras 17, a disparidade de captação de recursos entre o candidato NewDem e a alternativa foi tão absurda – 2,4 milhões de dólares contra zero, em um caso – que é possível dizer que eles foram virtualmente incontestes. Assim, em mais de três quartos das vitórias o candidato do NewDem não tinha concorrência real.
Usando a lista da própria Third Way, permanecem 12 primárias competitivas para avaliar.
O NewDemPAC, porém, também reivindica para si candidatos da Califórnia como Harley Rouda e Katie Hill, ambos tão favoráveis à proposta de um sistema de saúde “Medicare para Todos” que receberam apoio do PAC Medicare para Todos, da deputada Pramila Jayapal. Isso não casa com a tímida proposta do NewDem de “promover maior cobertura de seguro”, e com a insistência da Third Way de que defender essa política seria a morte para os Democratas.
No caso de Rouda, ele tem apoio de grupos comunitários locais, inclusive a representação Indivisible do distrito, que se uniram ao DCCC para apoiá-lo. Curiosamente, o NewDemPAC colocou em sua lista tanto Rouda quanto seu oponente nas primárias, Hans Keirstead, o que garante a vitória na disputa. Duas outras disputas (2º distrito de Arizona e 11º distrito de Nova Jersey) não envolviam nenhuma alternativa progressista ao candidato do NewDem.
Isso reduz a lista da Third Way a oito disputas.
Quando você se limita às disputas em que há uma efetiva batalha ideológica entre candidatos viáveis e bem financiados, o NewDemPAC perdeu cinco, e ganhou apenas duas ou três, dependendo de como o resultado for caracterizado. Katie Porter, uma especialista em fraudes de hipoteca apoiada por Elizabeth Warren, derrotou David Min, ex-membro da equipe de Chuck Schumer e apoiado pelo NewDem, na disputa pelo 45º distrito da Califórnia. R.D. Huffstetler, apoiado pelo NewDem, foi derrotado de forma tão acachapante por Leslie Cockburn nas convenções locais do 5º distrito da Virgínia, que desistiu da disputa e declarou apoio a ela. Josh Butner (50º distrito da Califórnia), Jay Hulings (23º distrito do Texas), e o ex-deputado Brad Ashford (2º distrito do Nebraska) também perderam para adversários mais progressistas. Uma ausência intrigante na lista do NewDem é a disputa no 14º distrito de Nova York, onde Ocasio-Cortez derrotou Crowley, o presidente da New Democrat Coalition de 2009 a 2013.
Fora do restrito enquadramento do NewDem, os progressistas derrotaram os centristas em diversas disputas importantes das quais o NewDemPAC não participou ativamente. A progressista Jahana Hayes derrotou Mary Glassman, que tinha o apoio da Câmara de Comércio dos EUA e da máquina partidária local, em Connecticut. Jess King em Lancaster, Pensilvânia, estava perto de derrotar sua adversária da situação, Christina Hartman, quando Hartman desistiu da disputa e se mudou para outro distrito. O oponente da situação a Richard Ojeda na Virgínia Ocidental, o prefeito de Huntington, desistiu depois que Ojeda decolou. Dana Balter derrotou a candidata apoiada pelo DCCC, Juanita Perez Williams, em Syracuse. O candidato do DCCC Colin Allred de fato venceu uma disputa contra a progressista Lillian Salerno no Texas, mas isso foi depois que o favorito original do partido, o consultor político de Hillary Clinton, Ed Meier, não participou.
Lauren Baer (que captou bem mais recursos que seu adversário no 18º distrito da Flórida), Abigail Spanberger (7º distrito da Virgínia), e Lizzie Pannil Fletcher (7º distrito do Texas) saíram vitoriosas em batalhas diretamente ideológicas – muito embora Pannil Fletcher só tenha vencido porque o candidato preferido do DCCC também não participou dessa prévia. E, mesmo então, o NewDemPAC só apoiou Fletcher depois da primária (onde ela foi a mais votada) e antes da disputa no Texas com Laura Moser, que se tornou uma heroína do movimento de resistência contra Trump em 2017, como criadora da ferramenta de mensagens de texto Daily Action, que canalizou a raiva progressista em uma dose diária de ativismo. O DCCC atingiu Moser com uma campanha de difamação antes da primária, atribuindo a ela a pecha de “infiltrada de Washington” (o que é um pouco contraditório vindo de uma operação de campanha sediada em Washington). E a ala centrista não se orgulha de uma de suas vitórias de mais alto nível, quando Donna Shalala foi impulsionada em uma primária em Miami contra a oposição progressista. A aprendiz do governo Clinton, de 77 anos, correu riscos de perder a disputa, mas acabou se elegendo com 51,7% dos votos.
O maior problema com a promoção que a Third Way faz da “proporção de vitórias” é o próprio conceito, que encoraja a forjar números e a evitar a concorrência em disputas em que o resultado seja mais incerto. Se o grupo Justice Democrats estivesse preocupado em primeiro lugar com sua taxa de vitórias, nunca teria investido com tudo em uma candidata “millennial” que não podia fazer campanha em tempo integral porque ainda estava trabalhando em um bar quatro dias por semana.
Tornar-se um Partido do Povo, Financiado pelo Povo
Para além das divisões na cúpula do partido, no entanto, os ativistas perceberam que entre as pessoas que estavam nas ruas, aquelas que haviam apoiado Hillary Clinton e aquelas que haviam apoiado Bernie Sanders queriam essencialmente as mesmas coisas: “Medicare para Todos”, um salário mínimo de 15 dólares por hora, universidade sem dívida (ou gratuita), um New Deal Ecológico. Até os candidatos apresentados como moderados ou centristas se manifestavam em prol de várias dessas causas.
O fatalismo dos primeiros dias da era Trump, combinado com o discurso que propunha um acordo com o presidente, foi afastado no meio desse ano pela esperança de que, havendo pressão pública suficiente, o Affordable Care Act [Lei de Cuidado Acessível, o ‘Obamacare’] poderia ser salvo.
Mesmo sofrendo vários reveses, a energia dos liberais permanecia em alta porque os ataques de Trump à dignidade do público não cessavam. Cada vez que Trump se sentia encurralado, ele encontrava novas formas de reunir o público “MAGA” [“Make America Great Again”]. Ele nunca abandonou seu veto aos muçulmanos, até conseguir que uma versão fosse aceita pela Suprema Corte. Ele anunciou o fim do programa Deferred Action for Childhood Arrivals [Ação Diferida para Ingressos Infantis], que oferecia proteção legal aos “Dreamers”, os filhos dos imigrantes (embora a extinção do programa tenha sido suspensa pela justiça). Ele desencadeou uma crise na fronteira com o México, separando pais e filhos e colocando todos eles atrás das grades.
A incessante demonização dos inimigos de Trump fomentou o ódio: supremacistas brancos encorajados fizeram manifestações em Charlottesville e em outras partes, e extremistas de direita iniciaram e executaram planos de terrorismo doméstico. Apenas 10 dias atrás, 11 fiéis foram massacrados numa sinagoga em Pittsburgh.
O etno-nacionalismo de direita com um toque autoritário está em ascensão em todo o mundo, mas há também uma esquerda fortalecida que resiste.
O risco para os Republicanos de abraçar a “Southern Strategy” (a “Estratégia Sulista” de atrair eleitores brancos recorrendo ao racismo contra os afro-americanos) sempre foi o de restringi-los, bem, ao Sul. Mas a exploração da questão racial tem alcance nacional, e é possível dizer que isso os levou ao domínio nacional que agora possuem.
O etno-nacionalismo de direita com um toque autoritário está em ascensão em todo o mundo, da Rússia à Índia e ao Brasil. Mas há também uma esquerda fortalecida que resiste. No começo do ano, Andrés Manuel López Obrador, concorrendo com uma plataforma populista- progressista, conquistou o poder no México; os socialistas ascenderam na Espanha; Jeremy Corbyn continua muito popular no Reino Unido.
Os anos 1930 na Europa, e os anos 2010 no Brasil mostraram que os movimentos de centro-esquerda sem base popular não são capazes de enfrentar o desafio do fascismo em tempos de crise econômica. O Partido Democrata em 2017 e 2018 começou uma transição para se tornar um Partido do povo, cada vez mais ligado a doadores e ativistas comunitários. Mais de 2 milhões de pessoas se envolveram na organização dos Democratas nos últimos dois anos.
Na manhã de 7 de novembro, ganhando ou perdendo, eles acordaram novamente.
O conteúdo jornalístico desta matéria foi baseado no livro prestes a ser lançado de Ryan Grim, “We’ve Got People: Resistance and Rebellion, From Jim Crow to Donald Trump” [“Nós Temos o Povo: Resistência e Rebelião, de Jim Crow a Donald Trump”, ainda sem tradução no Brasil]. Inscreva-se aqui para receber um e-mail avisando do lançamento.
Tradução: Deborah Leão
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.
Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.