Todo mundo sabe que Bolsonaro tem concepções toscas e rudimentares sobre assuntos sensíveis como a homossexualidade, a violência, a esquerda e a liberdade de imprensa. A julgar pelas últimas façanhas do presidente eleito, o Planalto não vai estancar sua verve autoritária.
O capitão tentou impedir que jornalistas entrassem no plenário do Congresso na comemoração aos 30 anos da Constituição Federal, trocou os pés pelas mãos em temas de política externa e anunciou, como um cacique arteiro, o fim do Ministério do Trabalho.
Também deu a luz ao Superministério da Justiça e da Segurança Pública, trazendo para a barra de sua saia o juiz que condenou, prendeu e tirou Lula da corrida eleitoral.
De qualquer forma alçado à condição de herói nacional pelo que fez na Lava Jato, Sérgio Moro, prestes a debutar na política depois de negar sua pretensão em pelo menos sete oportunidades, pode ser um muro de contenção aos disparates do novo governo. Para isso, precisa colocar em prática medidas do livro que empunhava durante o voo que o levou ao Rio de Janeiro para selar a sua indicação ao Ministério da Justiça.
A cartilha “Novas medidas contra a corrupção”, de iniciativa do portal Transparência Internacional e da Fundação Getulio Vargas, contém 70 proposições divididas em 12 blocos. Algumas delas, destacadas abaixo, parecem mais sensíveis à futura atuação do Sérgio Moro como ministro da Justiça. Se conseguir implementá-las apesar do ambiente em que ele próprio, Moro, foi gestado, já teremos algum avanço.
Medida 24: Lei de abuso de autoridade
Como é hoje: uma lei de 1965 regulamenta a matéria, mas possui baixíssima eficácia. Prevê, dentre outras sanções, pena de dez dias a seis meses de detenção. É comum que os crimes apurados de acordo com essa lei prescrevam.
O que propõe a cartilha: estabelece a responsabilização de agentes públicos que cometem atos de excesso de poder ou desvio de finalidade. Prevê como possíveis sanções, além da prisão e multa, o dever de indenizar o dano causado pelo crime, a perda do cargo, mandato ou função pública, a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública por prazo de um a cinco anos, e penas restritivas de direito, incluindo a suspensão do exercício do cargo, mandato ou função pública e a proibição de exercer função de natureza policial ou militar em prazo de um a três anos.
Medida 25: Extinção da aposentadoria compulsória como pena
Como é hoje: as Leis Orgânicas da Magistratura Nacional e do Ministério Público da União e dos Estados preveem a aposentadoria compulsória como uma das punições aos seus membros por infrações funcionais. Na prática, isso significa que, por exemplo, o juiz ou promotor de Justiça que cometer ato de corrupção pode ser aposentado e continuar recebendo remuneração.
O que propõe a cartilha: elimina a hipótese da aposentadoria compulsória como sanção e confere maior celeridade aos processos que investigam e punem membros do Judiciário e do Ministério Público.
Medida 26: Unificação do regime disciplinar do MP
Como é hoje: o Ministério Público foi um dos grandes protagonistas nas operações que, nos últimos anos, trouxeram à tona casos escandalosos de corrupção nacional. Mas há gente que reclama que seus poderes não conhecem barreiras e que precisam ser limitados para que não haja excessos.
O que propõe a cartilha: cria um regime disciplinar para o Ministério Público, prevendo condutas irregulares, sanções cabíveis e regras do processo administrativo disciplinar a ser seguidas.
Medida 29: Transparência na seleção de ministros do STF
Como é hoje: de acordo com a Constituição, o Supremo Tribunal Federal possui 11 Ministros, escolhidos entre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Depois de sabatinados e aprovados pela maioria absoluta do Senado, eles são nomeados pelo presidente da República.
O que propõe a cartilha: confere maior transparência ao processo de seleção de ministros do STF e impõe uma quarentena prévia, vedando a indicação de ocupantes de determinados cargos para a Suprema Corte, e posterior, proibindo que ministros concorram a cargos eletivos no prazo de quatro anos após saírem do tribunal.
Medida 41: Regulamentação do Lobby
Como é hoje: a prática do lobby é uma realidade inegável, mas sua imagem é negativa. No cenário obscuro e malvisto das relações entre governo e iniciativa privada, o lobista é geralmente associado a alguém que se aproxima do Estado para corromper os agentes políticos e agir por baixo dos panos.
O que propõe a cartilha: a regulamentação profissional do lobby para conferir a maior transparência e mecanismos adicionais de controle social. A proposta busca ainda oferecer maior equilíbrio nas interações de diferentes interesses econômicos e sociais com autoridades públicas.
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Na concepção dos seus idealizadores, as Novas medidas constituem uma política de Estado pautada em abordagem técnica. Ataca em frentes simultâneas e conta com a participação da sociedade civil para fomentar a atividade legislativa anticorrupção. É uma agenda pela qual o país anseia e da qual necessita.
Mas Bolsonaro já dá sinais de que se arrependeu de ter dado carta branca a Moro. Conforme o Valor Econômico, ele se antecipou e já puxou as rédeas do juiz, colocando o General Heleno Pereira, militar da reserva de su confiança, no comando do Gabinete de Segurança Institucional, que agora coordena os serviços de inteligência da Polícia Federal. Além disso, manteve a Controladoria-Geral da União como pasta separada da Justiça.
Sérgio Moro está pisando em ovos. Ele já não está mais no silêncio de seu gabinete, a sós com sua consciência jurídica. Sua metamorfose – de juiz herói da nação a político de um governo de extrema-direita – vai cobrar a conta.
Quando isso acontecer, o superministro precisará mostrar ao Brasil a que veio. Mesmo com a sombra do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra à espreita.
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