No dia 31 de agosto de 2018, jipes blindados alinharam-se ameaçadoramente ao longo de uma rua da Cidade de Guatemala. No meio da manhã, começaram a circular imagens dos veículos diante do escritório de uma comissão anticorrupção patrocinada pela ONU que havia ajudado a derrubar políticos corruptos. Jipes e soldados também foram vistos nos arredores do Palácio Nacional. Em um país com uma história relativamente recente de golpes militares e massacres, as fotografias e vídeos se espalharam como fogo em mato seco, gerando preocupação em uma população desorientada.
Para Feliciana Macario, essa demonstração de força lembra os piores anos do regime militar guatemalteco, durante os 36 anos de conflito armado entre forças militares e paramilitares apoiadas pelos EUA e guerrilhas de esquerda. Macario é uma das coordenadoras nacionais da Conavigua, uma organização de direitos humanos fundada por mulheres cujos maridos morreram ou desapareceram na guerra.
“É como se estivessem nos ameaçando com uma volta aos anos 1980”, diz Macario, uma mulher quiché (um dos grupos étnicos maias) que trabalha com vítimas e sobreviventes do período de repressão.
O conflito armado deixou mais de 200 mil mortos e 45 mil desaparecidos. Mais de 80% das vítimas eram civis indígenas, e o responsável, na esmagadora maioria dos casos, era o exército. Uma comissão da verdade patrocinada pela ONU e dois tribunais guatemaltecos classificaram os atos do exército no início dos anos 1980 como genocídio. O conflito terminou em 1996 com a assinatura dos Acordos de Paz, mas Macario diz que o atual presidente da Guatemala, Jimmy Morales, está violando os termos do tratado.
“Um dos compromissos que destacamos é o do papel do exército na sociedade. Nos termos do acordo, o exército devia reduzir seu efetivo, orçamento e tudo o mais. Mas Jimmy Morales está indo na direção contrária. Ele está aumentando o orçamento do exército e quer remilitarizar o país”, disse Macario ao Intercept.
Cerca de duas horas depois que os primeiros jipes foram avistados do lado de fora do escritório da Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG), Morales apareceu no Palácio Nacional, rodeado de comandantes militares e policiais, e anunciou a não renovação do mandato da CICIG, o que provocou ações judiciais, protestos e uma crise política ainda em andamento. A mobilização dos jipes aumentou a preocupação de muitos guatemaltecos com Morales – ainda mais depois da revelação, por parte da embaixada dos EUA, de que os veículos haviam sido cedidos para serem usados nas fronteiras, e não na capital. Morales e seus apoiadores vêm tentando obter o apoio do governo Trump e do Partido Republicano contra a CICIG, e o tradicional apoio dos EUA à comissão parece estar enfraquecendo.
“Os veículos foram doados pelos EUA para combater o narcotráfico na fronteira, mas foram usados para intimidar a CICIG, violando completamente a letra do acordo”
Dois meses depois, as justificativas oficiais para a mobilização de veículos blindados do dia 31 de agosto continuam desencontradas: segundo o ministro do Interior, tratava-se de uma patrulha de rotina para combater a criminalidade; segundo documentos da polícia, o objetivo era proteger instituições e repartições públicas; para o presidente, os veículos estavam lá para evitar protestos violentos. A cada declaração ou documento oficial que vem a público, a história dos J8s fica ligeiramente – ou bastante – diferente.
Apesar das explicações cambiantes, uma coisa já está clara: o governo guatemalteco violou o acordo de doação de jipes J8 assinado com os EUA. Tanto o Departamento de Estado quanto o Departamento de Defesa americanos confirmaram ao Intercept que os veículos foram cedidos para operações específicas de combate ao narcotráfico nas fronteiras da Guatemala. Segundo ambos os órgãos, a transferência e emprego dos veículos fora desses parâmetros constituiriam uma violação do acordo de doação. E, segundo documentos da polícia guatemalteca obtidos pelo Intercept, foi exatamente isso que aconteceu no dia 31 de agosto – e nos meses anteriores.
“Os veículos foram doados pelos EUA para combater o narcotráfico na fronteira, mas foram usados para intimidar a CICIG, violando completamente a letra do acordo”, afirma Jordán Rodas, chefe da Procuradoria de Direitos Humanos da Guatemala, que acionou o Tribunal Constitucional do país contra a mobilização de 31 de agosto.
O antagonismo entre Morales e a CICIG vem crescendo há mais de um ano. A comissão atua em conjunto com o Ministério Público há mais de uma década, mas foi nos últimos anos, durante a chefia de Iván Velásquez, um ex-procurador e juiz colombiano, que essa parceria acumulou êxitos em casos de grande notoriedade. Graças às investigações, dezenas de políticos, advogados e executivos do setor privado foram presos por corrupção, incluindo um ex-presidente.
Morales, um ex-comediante de TV apoiado por militares linha-dura de direita, foi eleito presidente no fim de 2015, aproveitando-se de uma onda de fervor anticorrupção e prometendo apoiar o trabalho da CICIG. Um ano e meio depois, contudo, a promessa foi esquecida quando Morales, dois de seus parentes e seu partido viraram alvo de investigações criminais. Em agosto de 2017, Morales tentou expulsar Velásquez do país, mas foi impedido pelo Tribunal Constitucional.
Desta vez, Morales agiu para impedir que Velásquez voltasse ao país, mas o decreto também foi declarado inconstitucional. O presidente e vários membros do governo reclamam de ordens ilegais e manipulação internacional, e dizem que não vão permitir a volta de Velásquez. O Ministério da Defesa e o exército anunciaram que vão respeitar a decisão da Justiça, mas Morales e seus aliados mais próximos continuam desafiando o Tribunal Constitucional. Com o apoio da ONU, Velásquez continua chefiando a CICIG do exterior.
“Jimmy Morales está aumentando o orçamento do exército e quer remilitarizar o país”
Com o aumento da instabilidade e dos protestos, o governo mudou sua versão sobre o envio de carros blindados para o escritório da CICIG no mesmo dia do anúncio do fim do mandato da comissão. Em uma coletiva de imprensa, o ministro do Interior, Enrique Degenhart, a ministra das Relações Exteriores, Sandra Jovel, e outros membros do gabinete de Morales afirmaram que os J8s estavam em uma patrulha de rotina, parte de uma operação de combate ao crime. Um relatório do Ministério do Interior redigido depois do incidente, ao que o Intercept teve acesso, descreve planos de operações que vão de um mês antes até um mês depois do 31 de agosto. No entanto, a operação dos dias 30 e 31 de agosto, segundo o documento, foi diferente das outras. A missão do destacamento teria sido monitorar e proteger instituições e repartições públicas. Membros do governo usaram essa versão dos acontecimentos em declarações posteriores.
Porém, no dia 3 de outubro, em uma entrevista no rádio, Morales contradisse publicamente seus ministros – e relatórios de seu próprio gabinete obtidos pelo Intercept – e declarou que os jipes haviam sido mobilizados para evitar protestos violentos.
Oscar Pérez, porta-voz do Ministério da Defesa, encaminhou o Intercept ao Ministério do Interior para quaisquer perguntas sobre os J8s, recusando-se a comentar a contradição entre as diferentes versões oficiais do ocorrido. Mesmo após a insistência da reportagem, Pérez não quis dizer se havia soldados ou funcionários do exército presentes nas operações do dia 31 agosto. Segundo ele, os jipes e a força-tarefa estariam sob comando civil. O Ministério do Interior e Morales não responderam às inúmeras tentativas de contato da reportagem.
Por e-mail, um porta-voz do Departamento de Estado americano afirmou que o órgão monitora atentamente o uso dos veículos cedidos pelos EUA, acrescentando que a embaixada manifestou sua preocupação em um comunicado público quando os jipes foram vistos pela primeira vez. “O governo dos EUA leva muito a sério toda acusação de uso indevido de material bélico americano, e vai tomar as devidas providências após o término das investigações”, disse o porta-voz.
Segundo outro porta-voz do Departamento de Estado, o acordo determina que os J8s devem ser usados na luta contra o narcotráfico. Além disso, ainda segundo o porta-voz, as operações de combate a atividades criminais, principalmente ao tráfico de drogas, devem ser realizadas nas fronteiras da Guatemala. Já o Departamento de Defesa ressaltou a mesma questão, só que de maneira mais detalhada.
“Os jipes J8 foram cedidos entre 2013 e 2018 para dar apoio às operações de três Forças-Tarefas Interinstitucionais [IATFs, na sigla em inglês] guatemaltecas – Tecún Umán, Chorti e Xinca –, compostas por unidades policiais, militares e aduaneiras e lideradas por um chefe de polícia sob a tutela do Ministério [do Interior]”, disse ao Intercept Johnny Michael, porta-voz do Departamento de Defesa, em um e-mail de resposta a uma série de perguntas.
“Os contratos de cessão desses veículos determinam que as IATFs se concentrem no combate a atividades criminais, principalmente ao tráfico de drogas, nas fronteiras da Guatemala. O emprego dos J8s deve priorizar a segurança das fronteiras e áreas com alto índice de criminalidade. Os documentos determinam que os J8s devem ser usados em operações antidrogas”, escreveu Michael.
Segundo ele, o governo da Guatemala não notificou os americanos de nenhuma transferência ou alteração na missão dos veículos cedidos, mas o Departamento de Defesa dos EUA estaria investigando “comentários que apontam para uma aparente transferência e ampliação dos usos do J8” e consultando o Departamento de Estado sobre futuras providências a tomar.
Não há dúvidas de que essas transferências aconteceram. O Intercept teve acesso a mais de 100 páginas de documentos e relatórios da polícia e do Ministério do Interior da Guatemala entregues ao Tribunal Constitucional, que havia exigido uma explicação para a presença dos veículos em frente ao escritório da CICIG no dia 31 de agosto. Segundo relatórios policiais, os jipes foram deslocados para a Cidade de Guatemala no início de abril de 2018 “com o objetivo de reduzir a criminalidade”.
“Cada país tem três chances antes de sofrer alguma sanção? As ajudas futuras são interrompidas? Não sabemos”
A transferência de quatro J8s das forças-tarefas Chorti e Xinca foi requisitada no dia 23 de abril para uma operação de segurança de dois dias na Cidade de Guatemala. A polícia continuou transferindo mais veículos das forças-tarefas para diversas operações na capital nos quatro meses anteriores ao 31 de agosto.
Essas transferências demonstram que o emprego dos jipes pela Guatemala desrespeitou todos os três itens ressaltados pelo Departamento de Estado e pelo Departamento de Defesa dos EUA: finalidade (combater o narcotráfico), geografia (regiões fronteiriças) e comando (forças-tarefas interinstitucionais).
O acesso a dados sobre o monitoramento das doações de equipamento militar americano a forças de segurança estrangeiras pode ser difícil, segundo Adam Isacson, diretor do programa Defense Oversight, do Washington Office on Latin America. Entre 1990 e 2005, o governo dos EUA impôs restrições às ajudas militares à Guatemala devido ao histórico de violações de direitos humanos no país.
Desde então, segundo Isacson, a maior parte da ajuda recebida pelos guatemaltecos – onde estão incluídas as forças-tarefas interinstitucionais – tem vindo do Pentágono. “Mais especificamente, de um programa do Departamento de Defesa. Antes chamado de ‘Seção 1.004’, ele foi rebatizado de ‘Programa de Combate às Drogas e ao Crime Organizado Transnacional’. Como o nome indica, as ajudas só podem ser usadas para isso”, diz.
Para Isacson, o Departamento de Defesa é menos exigente em termos de prestação de contas do que o governo federal. O único relatório apresentado ao Congresso é uma planilha contendo apenas o nome do país e a categoria, sem entrar em detalhes sobre o conteúdo da ajuda.
“Não temos acesso ao acompanhamento desses acordos. Nunca temos. Essas informações são confidenciais, como de costume”, afirma Isacson. Como resultado, as consequências das violações de contrato são desconhecidas. “Cada país tem três chances antes de sofrer alguma sanção? As ajudas futuras são interrompidas? Não sabemos”, lamenta.
Na tarde do dia 31 de agosto, Rodrigo Batres, pesquisador do grupo de análise política El Observador, compareceu a uma manifestação improvisada na praça principal da capital poucas horas depois do anúncio de Morales.
Não era a primeira vez que a população protestava contra as tentativas do governo de sabotar a comissão anticorrupção, e algumas pessoas já tinham até preparado cartazes de apoio à CICIG. Outras agitavam bandeiras da Guatemala. Foi nesse momento que a embaixada americana emitiu o comunicado sobre os jipes doados. Mais cedo, a representação diplomática dos EUA já havia reagido à notícia de que o mandato da CICIG não seria renovado.
Os EUA estavam “cientes” da decisão, afirmava o comunicado inicial, acrescentando que o governo americano acreditava que a CICIG era “uma parceira importante e eficaz na luta contra a impunidade, melhorando a governança e fazendo com que os corruptos respondam por seus crimes na Guatemala”. Para depois afirmar que os EUA “continuarão a apoiar a luta da Guatemala contra a corrupção e a impunidade”, considerada “parte indissociável” das relações bilaterais entre os dois países. Para muitos guatemaltecos, ao não condenarem inequivocamente a decisão de Morales e continuarem a apoiar a luta do governo contra a corrupção – mas sem a CICIG –, os EUA estavam defendendo o presidente.
“Aquele comunicado foi muito importante. Os EUA disseram que iriam respeitar a decisão do governo e que continuariam a apoiar o combate à corrupção. Acho que foi uma forte declaração de apoio a Morales, e essa mudança foi concomitante à mudança de governo aqui nos EUA”, disse Batres ao Intercept.
Os EUA são o maior financiador da CICIG, tendo contribuído com 44,5 milhões de dólares de 2007 a 2017 – mais de um quarto do orçamento total da comissão. No passado, os EUA faziam coro com os outros grandes doadores – Canadá e União Europeia –, na defesa da CICIG. Mas desta vez o país ficou de fora da declaração conjunta dos financiadores, que lamentava a decisão da Guatemala de proibir a entrada de Velásquez no país. Alguns observadores suspeitam que a mudança de tom seja consequência do intenso lobby de Morales e seus apoiadores, que apresentam o presidente como um aliado fundamental dos EUA na região.
A Guatemala foi um dos únicos países que apoiaram a decisão de Donald Trump de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel. Dias depois da transferência da embaixada americana para a cidade, a Guatemala fez o mesmo. Morales também foi o último líder centro-americano a condenar a política do governo Trump de separação familiar na fronteira. A direita guatemalteca alega que a CICIG é um terreno fértil para agentes estrangeiros radicais, e essa visão tem ganhado força no Congresso dos EUA. O senador republicano Marco Rubio bloqueou 6 milhões de dólares destinados à CICIG em maio (os fundos já foram liberados).
Em sintonia com o primeiro comunicado da embaixada americana, membros do governo Trump têm reiterado seu apoio a Morales. O secretário de Estado, Mike Pompeo, tuitou no dia 1º setembro: “Temos muita admiração pelos esforços da Guatemala na segurança e na luta contra as drogas” – sem nenhuma menção à CICIG. Cinco dias depois, Pompeo ligou para Morales para manifestar o apoio dos EUA à soberania da Guatemala e “o contínuo apoio dos EUA a uma CICIG reformada”. Pompeo prometeu trabalhar com a Guatemala na implementação de uma reestruturação da comissão no que vem, segundo o Departamento de Estado. Mas os detalhes dessa reforma não foram revelados.
Batres acha que os EUA vão continuar apoiando Morales enquanto defendem, da boca para fora, o combate à corrupção e à impunidade. “Embora defendam as instituições, eles não vão deixar de respaldar um dos governos mais submissos da região”, disse ele, levantando a voz em meio aos gritos dos manifestantes.
Tradução: Bernardo Tonasse
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