Em uma noite abafada de meados de agosto, um comboio de mineiros e policiais em picapes 4×4 voltava de uma mina de ouro canadense em Boungou, no leste de Burkina Faso. Poucos quilômetros depois de partir, o grupo passou por cima de uma mina terrestre. Saídos da mata fechada que margeia a estrada de terra, um grupo de homens abriu fogo contra o comboio, matando cinco policiais e um mineiro.
Dois meses depois, em Inata, perto da fronteira com o Mali, no norte do país – outra zona de extração de ouro –, policiais caíram em uma emboscada ao raiar do dia. Os terroristas mataram um agente e fugiram levando armas e equipamentos. As autoridades militares de Burkina Faso pediram ajuda às tropas francesas posicionadas no Níger, que enviaram dois caças Mirage para atacar os combatentes em fuga. Era mais uma frente de batalha na já sobrecarregada missão militar francesa na região do Sahel, reforçando ainda mais a impressão de que, seis anos depois da intervenção da França no Mali, a segurança na região está se deteriorando.
Desde janeiro de 2016, mais de 200 ataques terroristas mataram ao menos 263 pessoas em Burkina Faso, segundo dados fornecidos por Héni Nsaibia, pesquisador do projeto Armed Conflict Location & Event Data. “A violência criou uma espécie de psicose securitária, principalmente no norte [do país]”, diz Bénéwendé Sankara, vice-presidente do parlamento burquinabê. “As consequências são graves, com escolas e postos de saúde fechados e moradores em fuga. A região virou terra de ninguém”, lamenta. Os incidentes de Boungou e Inata – de natureza e similar e praticados por grupos desconhecidos – são um sintoma da desestabilização do Estado burquinabê.
Os ataques são um grande mistério. Quem são seus autores? Qual é a motivação deles?
Alguns dos maiores atentados foram reivindicados por grupos jihadistas locais, como a Al Qaeda do Magreb Islâmico (AQIM), o Estado Islâmico do Grande Saara e o Al Mourabitoun. O Ansar al Islam, fundado pelo já falecido clérigo radical Malam Ibrahim Dicko, também reivindicou a autoria de alguns ataques. Porém mais de 90% deles – inclusive os atentados de Boungou e Inata – não foram reivindicados por ninguém, e sua autoria permanece um mistério, pelo menos para a opinião pública. “Por trás de um ataque terrorista sempre há uma motivação política e religiosa”, me disse o comissário de polícia Anihifahata Yacoub Sié Rachid Palenfo quando visitei o país recentemente. “No caso de Burkina Faso, não encontramos nenhuma motivação religiosa. Então qual era o recado?”, se pergunta o policial.
O que está acontecendo em Burkina Faso parece ser, pelo menos em parte, uma consequência da estratégia antiterror americana. Isso porque uma unidade militar de elite treinada pelos EUA e já desmobilizada pode estar por trás dos ataques.
Há várias teorias para explicar a repentina crise de segurança do país, e todas elas giram em torno da revolução de 2014, que derrubou o ex-ditador Blaise Compaoré e ameaçou a temida guarda presidencial, conhecida pela sigla francesa RSP e comandada pelo general Gilbert Diendéré. Ao depor o presidente e extinguir essa estratégica unidade militar um ano depois, a revolução deixou um vazio na segurança do país. Enquanto entidade separada do exército convencional, com cerca de 1.300 homens, casernas, equipamentos e treinamento próprios, a guarda presidencial protegia os interesses do partido do governo, e não os do país como um todo. A RSP era uma tropa poderosa, que contava com uma unidade de contraterrorismo treinada pela França e pelos EUA.
A instabilidade vivenciada por Burkina Faso parece demonstrar que apoiar uma tropa de elite que sustenta o poder de um ditador corrupto pode causar ainda mais terrorismo e insegurança. Esse tipo de erro é uma marca da chamada “guerra ao terror” e foi repetido, sob várias formas, no Iraque, Afeganistão, Somália, Iêmen e vários outros países. Em Camarões, por exemplo, a Brigada de Intervenção Rápida, unidade de elite parceira dos EUA na luta contra o Boko Haram no norte do país, foi acusada de várias violações de direitos humanos no combate aos separatistas anglófonos do oeste do Camarões.
Embora o primeiro governo verdadeiramente democrático da história de Burkina Faso tenha assumido em janeiro de 2016, “a existência do Estado ainda é incerta”, diz Méleguem Traoré, ex-presidente do parlamento e confidente íntimo de Compaoré. Em março, um duplo atentado atingiu o quartel-general do exército e a embaixada da França no coração de Uagadugu, deixando 16 mortos. E, depois do ataque da AQMI contra dois restaurantes de uma das ruas mais movimentadas da capital, um esquema de segurança similar ao dos aeroportos foi implantado em vários estabelecimentos da cidade. Na praça principal de Uagadugu, a Place de la Nation – onde manifestantes se reuniram para exigir a queda de Compaoré em 2014, e onde os homens de Diendéré tentaram um golpe de estado em 2015 –, soldados sobressaltados vigiam atentamente os passantes.
Por estranho que pareça, a solução para os atentados misteriosos pode estar, não em distantes campos de batalha, mas em um espetáculo público que acontece todo dia de semana no norte de Uagadugu.
O ritual começa às 10h da manhã em Ouaga 2000, bairro de classe média alta da capital. O trânsito é interrompido em uma importante avenida, endereço de uma série de embaixadas e um grande hotel. É nesse bairro, em um centro de convenções, que o ex-comandante da guarda presidencial Gilbert Diendéré, o ex-ministro das Relações Exteriores Djibril Bassolé e outras 82 pessoas estão sendo julgados por sua participação, em 2015, na tentativa de derrubar o nascente governo de transição e devolver o poder aos aliados de Compaoré. Um após o outro, ex-soldados da RSP, alguns deles vestindo a farda do exército regular, respondem às perguntas de juízes militares e promotores. Diendéré, que está sendo mantido em uma prisão militar de segurança máxima e enfrenta acusações de traição, atentado à segurança do Estado e agressão e assassinato de manifestantes, deve ser chamado a depor em breve.
Poucas pessoas acreditavam que algum dia alguém tão temido e poderoso como Diendéré pudesse sentar no banco dos réus e responder por crimes tão graves, o que faz desse processo um marco na luta contra a injustiça e a impunidade em Burkina Faso. Dezenas de jornalistas comparecem às audiências, passando toda manhã por um rígido esquema de segurança e relatando integralmente os detalhes do processo para todos os jornais do país.
Antes de caírem em desgraça, Diendéré, Bassolé e o consultor mauritano com quem trabalhavam, Moustapha Limam Chafi, eram aliados-chave dos EUA na África Ocidental francófona. Burkina Faso, que significa “País dos Homens Íntegros”, nunca havia tido um ataque terrorista. Por exemplo, em 2012, o então presidente Compaoré enviou Diendéré em uma missão para Timbuctu, no Mali, para conseguir a libertação da suíça Beatrice Stockly, que havia sido sequestrada nove dias antes pela Al Qaeda do Magreb Islâmico. Em um encontro regado a refrigerantes e cordeiro grelhado com um dos líderes mais procurados da Al Qaeda do Magreb Islâmico, Diendéré negociou o pagamento de milhões de dólares em troca da missionária suíça.
Compaoré, que chegou pela primeira vez ao poder através de um golpe que matou o líder revolucionário Thomas Sankara em 1987, estabilizando o país na base do autoritarismo, foi uma peça fundamental nas negociações para a libertação de vários ocidentais capturados na região. Mas isso teve um preço. Apelidado de pompier-pyromane (“bombeiro incendiário” em francês), seu papel como mediador na região – como na negociação entre rebeldes tuaregues e o governo do Mali, realizada em Uagadugu em 2012 –, foi manchado por indícios de sua atuação nada pacificadora em outros conflitos, armando rebeldes na Costa do Marfim e vendendo armas em troca de diamantes ao ex-presidente da Libéria, Charles Taylor.
Em 2014, milhões de pessoas cansadas do “bombeiro incendiário” foram às ruas e conseguiram derrubá-lo. Compaoré fugiu em um helicóptero francês para a Costa do Marfim, onde está até hoje. Uma das medidas mais ambiciosas do governo de transição foi tentar dissolver completamente a RSP. Em 2015, porém, antes que o governo pudesse colocar o plano em prática, Diendéré e a RSP tentaram tomar o poder. As tropas do general foram derrotadas pelo exército legalista e pelas manifestações de rua. A RSP foi extinta imediatamente após a restauração do governo de transição.
Mas isso deixou um perigoso vácuo. “O nosso sistema de inteligência baseava-se em estruturas tanto da polícia quanto da guarda presidencial”, diz Traoré, confidente do presidente deposto. “Essas estruturas sofreram uma ruptura brusca, e o homem que estava no centro de tudo, Gilbert Diendéré, foi retirado de cena”, acrescenta.
No governo Compaoré, rebeldes tuaregues aliados da Al Qaeda puderam entrar e sair livremente de Burkina Faso durante as negociações de paz com o governo do Mali, levantando suspeitas de que Compaoré tinha um acordo tácito com os rebeldes para evitar atentados. O novo governo decidiu cortar o acesso do grupo ao país. “Eles poderiam ter mantido os mesmo contatos, mas acho que a opção política foi romper com esses grupos e retirá-los de Burkina Faso”, diz Sankara, vice-presidente do parlamento. “Acho que os ataques ao nosso país são um resultado dessa decisão”, acredita.
Algumas pessoas em Burkina Faso acreditam que a RSP e o governo anterior são no mínimo parcialmente responsáveis pela crescente instabilidade do país. “Os terroristas que agem na África Ocidental e o grupo político que não está mais no poder têm interesses em comum”, diz Guy Hervé Kam, cofundador do Balai Citoyen, um dos maiores coletivos que organizaram os protestos contra Compaoré e um dos promotores do julgamento de Diendéré e seus cúmplices. Anihifahata Yacoub Sié Rachid Palenfo, comissário de polícia, diz que não há provas de que ex-membros da RSP sejam os autores dos ataques, embora alguns ex-soldados, expulsos da guarda depois de um motim em 2011, tenham cometido crimes e atentados pouco depois de deixarem a tropa.
“Colocar a culpa em Diendéré, Bassolé, Compaoré e na RSP é muito conveniente para o atual governo”, diz o pesquisador Héni Nsaibia. Ele acredita que grande parte dos ataques seja obra de militantes do Ansar al Islam e do Estado Islâmico do Grande Saara, que não estariam reivindicando sua autoria porque “os dois grupos ainda não têm um braço midiático” e também “por motivos de sobrevivência, para não atrair atenção indesejada, o que inclui operações militares e de inteligência por parte de forças internacionais que poderiam prejudicar as comunicações de longa distância dessas organizações”.
Corroborando a tese de Nsaibia, um porta-voz do exército francês afirma que, além do ataque aéreo contra os terroristas de Inata – que, segundo a França, poderiam pertencer ao Ansar al Islam –, os soldados franceses também dão apoio a patrulhas burquinesas no leste do país para combater “grupos armados que cometem atos predatórios contra as forças de segurança”.
Um relatório da Human Rights Watch criticou a reação violenta do exército burquinabê às ações dos jihadistas, que só teria piorado a situação. Segundo o documento, “as forças de segurança de Burkina Faso realizaram operações de contraterrorismo em 2017 e 2018 que resultaram em inúmeras denúncias de execuções extrajudiciais, prisões arbitrárias e maus-tratos a suspeitos detidos” – muitos desses abusos foram dirigidos contra a etnia peul. Para a entidade, a violência desenfreada das forças de segurança causou ainda mais desordem, e os moradores agora estão mais dispostos a colaborar com os jihadistas do que com o exército.
O advogado de Diendéré, Mathieu Somé, diz que seu cliente é inocente de todas as acusações – ele também responde por sua suposta participação no assassinato de Thomas Sankara e pela morte de manifestantes durante a revolução de 2014 – e que o julgamento é uma perda de tempo. “Quem não sabe como governar um país sempre coloca a culpa nos outros. Por que continuar dividindo a nação com esse absurdo?”, critica.
Guy Hervé Kam, no entanto, diz que a promotoria dispõe de gravações de áudio (em francês e em árabe) nas quais ex-membros da RSP e do governo anterior planejam um ataque a Burkina Faso com jihadistas do Mali. Os recentes atentados lembram uma gravação divulgada em 2015, que supostamente mostra o presidente do parlamento da Costa do Marfim, Guillaume Soro, sugerindo uma estratégia para desestabilizar as forças armadas de Burkina Faso depois do golpe fracassado de Diendéré. “Vocês atacam uma cidade no norte. Nós tomamos uma delegacia. Eles vão fugir, não têm como resistir”, ouve-se a voz de Soro, ao telefone com Djibril Bassolé, que responde “sim, OK.” Soro, aliado próximo do antigo regime burquinabê, é um ex-rebelde das Forças Novas da Costa do Marfim, que recebeu armas de Compaoré e Diendéré para lutar contra o então presidente marfinense Laurent Gbagbo.
O clima em Burkina Faso é de preocupação. Kam, que teme por sua própria segurança, acredita em novos ataques ainda mais violentos para desestabilizar o país na reta final do julgamento. Já tentaram resgatar Diendéré da prisão em pelo menos três ocasiões. “Não estamos com medo de eles voltarem ao poder, e sim do que eles, como animais feridos, são capazes de fazer se tiverem a oportunidade”, explica Kam. “Um dos oficiais acusados esteve no poder a vida inteira. Ele sabe que pode pegar 20 anos de prisão e perder tudo. O que ele tem a perder causando desordem?”, completa.
A esperança de uma nova democracia, que tomou conta da nação depois da queda do ditador, deu lugar ao medo e à apreensão. À crise de segurança em Burkina Faso, a resposta dos EUA parece ser mais do mesmo. O exército americano está cooperando com unidades de contraterrorismo no país novamente. “Estamos dando assistência às forças antiterroristas em Uagadugu e ajudando Burkina Faso a desenvolver unidades de contraterrorismo para combater as organizações extremistas do Mali”, diz a porta-voz do Comando Militar dos EUA para a África, Becky Farmer.
O governo de Burkina Faso promete continuar com o julgamento de Diendéré e com as operações militares contra os jihadistas. Recentemente, o parlamento aprovou o aumento do pequeno orçamento militar do país, mas isso pode não ser suficiente. Diferentemente dos vizinhos Mali e Níger, há pouca presença militar estrangeira em Burkina Faso, embora isso possa mudar em breve. “É como uma panela de pressão apitando. Temos que encontrar uma solução, porque ela tem tudo para explodir”, diz Sankara, vice-presidente do parlamento burquinabê. “Estamos lutando contra eles. Estamos pagando caro por isso, todo dia há mortes, mas acredito que podemos erradicá-los”, afirma.
Contribuíram Nadoun Coulibaly e Claude Romba.
Tradução: Bernardo Tonasse
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?