Se ainda integrasse o serviço ativo do Exército, Jair Bolsonaro teria transgredido a norma que estabelece regras para o gesto de continência nas Forças Armadas. Na quinta-feira, o presidente eleito prestou continência ao visitante John Bolton, assessor de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Mas o capitão reformado é cidadão civil, deputado federal há sete mandatos; não tem obrigação de obedecer aos dispositivos castrenses. Seu ato foi mesmo o que pareceu: mais um retrato para o álbum de imagens picarescas de submissão diplomática na história do Brasil.
O jornalista Merval Pereira escreveu, em O Globo: “A continência é um tipo de ‘saudação’ quando um militar encontra qualquer civil ou autoridade, e tem o significado de um ‘olá’, um bom dia, representando apenas a cortesia de um cumprimento”; “não representou subserviência”.
Não é o que esclarecem as 18.842 palavras, organizadas em 199 artigos, do prolixo decreto presidencial 2.243. Em vigor desde 1997, o documento “dispõe sobre o regulamento de continências, honras, sinais de respeito e cerimonial militar das Forças Armadas”. Determina que também “têm direito à continência” de militar as “autoridades civis estrangeiras”, como é o caso de Bolton.
Com ressalvas, contudo: nas hipóteses “correspondentes às constantes dos incisos III a VIII deste artigo [15], quando em visita de caráter oficial”. Isto é, se o estrangeiro for presidente da República ou vice (ou exercer cargo assemelhado, supõe-se); presidente de Senado, Câmara ou Supremo Tribunal Federal; ministro de Estado ou do Superior Tribunal Militar; governador.
Embaixador dos EUA nas Nações Unidas em 2005 e 2006, John Bolton é assessor de Donald Trump desde abril. Não se enquadra nas condições legais estipuladas pelo decreto assinado 21 anos atrás por Fernando Henrique Cardoso. Ao se deparar com a continência de Bolsonaro, o enviado norte-americano resguardou o protocolo: negou-se a reproduzir o disparate e estendeu a mão direita para o cumprimento cerimonial.
Continência como o “tipo de ‘saudação’” informal para “qualquer civil” é outra coisa, viu-se domingo na celebração de Bolsonaro com o time do Palmeiras campeão brasileiro. Felipão, o técnico admirador de Augusto Pinochet, recebeu-o assim. Felipe Melo, idem, e o torcedor ilustre retribuiu o salamaleque do jogador. Essas continências são coreografia de bloco burlesco. Na Allianz Arena, só faltou o general da banda.
Beijo no muro
A fanfarronice da continência careceria de significado maior se não expressasse a subordinação – e não alinhamento sóbrio – com que o governo vindouro acena para a Casa Branca. Dois dias antes do encontro do futuro presidente com Bolton, o deputado federal Eduardo Bolsonaro perambulou por Washington. O chanceler ad hoc desfilou com um boné de propaganda da candidatura de Trump à reeleição.
Indagado sobre a transferência da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, o recordista de votos para a Câmara respondeu: “A questão não é perguntar se vai; a questão é perguntar quando será”. O projeto de mudança da representação do Itamaraty mimetiza Trump. Em maio, os EUA procederam a troca, sob protestos de países árabes e vastos segmentos da comunidade internacional que reconhecem a reivindicação palestina de controle de parte de Jerusalém.
Depois de Bolsonaro manifestar sua intenção, o Egito cancelou uma viagem do ministro Aloysio Nunes Ferreira Filho e de uma comitiva de empresários. Em 2017, a balança comercial com a Liga Árabe foi favorável ao Brasil em US$ 7,1 bilhões. Macaquear Trump expõe esses negócios a risco.
O presidente de cabeleira ornamental loira anda se bicando com a China, empreendeu escaramuças para uma guerra comercial, por ora contida. Por aqui, na campanha eleitoral, seu papagaio imitador queixou-se: os chineses “estão comprando o Brasil”. Bolsonaro encrencou com o maior importador de produtos do país. Quem se beneficiaria de um conflito fabricado com os asiáticos?
No ano passado, Trump retirou os EUA do Acordo de Paris. Quem o acompanhou, ameaçando com a saída brasileira do pacto de combate aos efeitos daninhos das mudanças climáticas? Seu fã mais estridente ao sul do Equador, Jair Bolsonaro. Só que o Brasil não é a maior potência econômica e militar do planeta. O presidente da França, Emmanuel Macron, reagiu abordando a convenção de livre-comércio que União Europeia e Mercosul buscam: “Não sou a favor de que se assinem acordos comerciais com potências que não respeitem o Acordo de Paris”.
A subalternidade recusa o armário. Trump revogou ações contra o aquecimento global. “Não acredito nisso”, disse, ao menosprezar um relatório alarmante a respeito de perigos ambientais. Bolsonaro interferiu para o Brasil desistir de sediar no ano que vem a COP25, conferência sobre alterações no clima.
Ministro das Relações Exteriores anunciado por Bolsonaro, Ernesto Araújo postou em seu blog que a “causa ambiental” foi “pervertida” pela esquerda, que a transformou em “ideologia da mudança climática”. Seria um “dogma”. Araújo é um trumpista devotado. “Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana”, especulou em artigo na publicação “Cadernos de Política Exterior”. Insinuou, pronunciando o juízo em boca alheia: “Somente Trump pode ainda salvar o Ocidente”.
Com acusações de “hipocrisia” e “viés anti-Israel”, os EUA abandonaram o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Bolsonaro copiou Trump e falou em afastar o Brasil não somente de um conselho, mas da ONU inteira. O embaixador Araújo prega com fervor: “No idioma da ONU é impossível traduzir palavras como amor, fé e patriotismo”.
Yuri Sousa grafitou num muro Maracanaú, na região metropolitana de Fortaleza, um beijo na boca entre Trump e Bolsonaro. Teve gente que se incomodou com a obra do artista conhecido como Bad Boy Preto: apagaram-na, pintando em cima.
Beija-mão
Servilismo na relação com a Casa Branca é comportamento reincidente. “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, proclamou em 1964 Juracy Magalhães, primeiro embaixador da ditadura em Washington.
(Coincidências: o mote de Trump é “América em primeiro lugar”. O de Bolsonaro, “Brasil acima de tudo” – seguido de “Deus acima de todos”. Os nazistas se apropriaram do lema “Alemanha acima de tudo”.)
Em 1947, a administração do marechal Eurico Gaspar Dutra rompeu relações com a União Soviética, atitude extrema que nem os EUA tiveram. Na Guerra Fria, o Brasil foi mais realista do que o rei. Ex-simpatizante da Alemanha nazi, o presidente Dutra se tornou um entusiasta incondicional do governo norte-americano.
A bajulação ganhou uma fotografia antológica em 8 de agosto de 1946. Naquela quinta-feira, Dwight Eisenhower visitou no Rio a Assembleia Constituinte. O general texano havia sido o comandante supremo das forças aliadas na Europa durante a Segunda Guerra (mais tarde presidiria seu país). No Palácio Tiradentes, o vice-presidente da Constituinte, Otávio Mangabeira, homenageou o viajante:
“[…] Direi, ao encerrar este discurso, que, se me fosse lícito, preferiria fazê-lo por meio de uma simples reverência, mais eloquente que quaisquer palavras, inclinando-me, respeitoso, diante do general comandante-chefe dos exércitos que esmagaram a tirania, e beijando, em silêncio, a mão que conduziu à vitória as forças da liberdade!”.
A menção ao beija-mão já era humilhante, porém Mangabeira quis mais. Dirigiu-se até Eisenhower e, numa cena imortalizada pelo repórter fotográfico Ibrahim Sued, beijou a mão do general. (O deputado constituinte curvou-se, mas não se ajoelhou; o futuro presidente dos EUA estava em plano mais elevado, na mesa diretiva dos trabalhos no Palácio Tiradentes.)
Assim caminha o Brasil, maltratado por sabujices mais apropriadas a síndicos de republiquetas: do ridículo do beija-mão ao despropósito da continência.
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