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Um amigo marcou minha arroba no Twitter com um notícia do Correio da Bahia: “Polícia Federal busca suspeitos ligados a mafioso preso em Salvador”.
Cliquei, olhei para a foto e vi um senhor muito velho, com semblante levemente melancólico e olhar perdido. Não o reconheci. Foi só quando li a legenda que me dei conta de que era alguém que eu julgava estar morto há décadas.
Lelio Paolo Gigante foi personagem do meu livro. Já no começo dos anos 1970, ele se envolveu com mafiosos italianos e franceses no Brasil e se enredou em uma trama rocambolesca e perigosa de tráfico internacional de heroína. Nascido em São Paulo em 1934, Gigante havia sido criado na Itália, para onde seus pais se mudaram em 1935. Girou por diversos países até se estabelecer como comissário de bordo da Avianca na Colômbia, de onde voava para os Estados Unidos e para a Europa. Complementava o salário com a venda de relógios falsificados transportados de um país ao outro até descobrir que podia lucrar muito mais com pequenas cargas de heroína.
Quando Lelio conheceu o mafioso Tommaso Buscetta – personagem central do livro e que lhe abriu as portas do submundo – ele estava quase congelado.
No inverno de 1969, Gigante se encontrava apreendido para averiguação em um posto aduaneiro na fronteira do Canadá com os Estados Unidos. Ele tentava imigrar para a América. Com medo de ser deportado, abriu a porta dos fundos do edifício e fugiu. Depois de acalmar o passo, ele imaginou uma rota de fuga e andou por mais de 50 quilômetros sobre a neve. Eram pouco mais de oito horas da manhã quando avistou Montreal. Estava à beira de uma hipotermia.
Entrou tremendo em um táxi e desembarcou em uma pizzaria de referência a imigrantes ilegais, onde pediu ajuda. Foi colocado no banco de trás de um carro por dois indivíduos, levado a uma casa e acomodado em um quarto antes de dormir por dois dias, mantendo apenas curtas vigílias para comer. Na terceira manhã, ao abrir os olhos, deu de cara com Tommaso, que o esperava em silêncio ao lado da cama.
Masino estava preocupado com um documento. Gigante deveria entrar nos Estados Unidos fingindo ser Roberto Cavallaro, um dos tantos nomes falsos usados por Tommaso Buscetta. No passaporte dado a Gigante estavam impressas as digitais de Tommaso, e ele temia que, ao checar aquelas digitais, a polícia americana tivesse certeza de que o mafioso se escondia nos Estados Unidos.
Lelio disse que o documento havia ficado com os agentes. Masino resignou-se, saiu do quarto e pediu que o dono da casa cuidasse de Lelio até que ele se recuperasse. “Nos veremos um dia”, disse Tommaso antes de desaparecer.
Ele voltaram a se encontrar no Brasil, onde Tommaso veio morar, casou, montou um esquema de tráfico de heroína, envolveu muita gente nele – inclusive Gigante – até ser preso e deportado. Desde aquela época, o Brasil empreendeu uma das mais absurdas guerra às drogas do mundo, queimando uma fortuna que poderia ser usada em outras áreas (saúde, educação) – um sistema que só serve para empilhar mortos pelas calçadas, jogar gente na cadeia para alimentar as fileiras do crime, subornar policiais corruptos, aumentar o lucro de empresas de segurança privada, enriquecer empresários inescrupulosos e fazer carreira de agentes da lei que usam a prisão de traficantes de médio e baixo escalão como troféu e atalho para promoções.
Quem se importa com os 60 mil homicídios anuais no Brasil deveria ser contra a guerra às drogas, já que a maioria dos assassinatos acontece justamente por causa dela. Mas nós sabemos como gira a roda da política.
A Polícia Federal acredita que Lelio Paolo Gigante, em 2018, aos 84 anos, trabalhava para o PCC, testando a pureza da cocaína antes de ser enviada para fora do país. Nos anos 1970, ele havia trabalhado para a Cosa Nostra e para os franceses da Unione Corse. No futuro, se a idade avançada lhe permitir, Lelio certamente terá emprego no atacado das drogas assim que se livrar mais uma vez da Justiça. A máquina não para.
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