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Exclusivo: com vestidos a R$ 800, grife Amissima faz roupas com trabalho escravo

Costureiros trabalham 13 horas por dia em oficinas que funcionam como dormitório de famílias. A cada peça, recebem R$ 3.

Marca garante a qualidade das peças pressionando os costureiros: imperfeições geram descontos no pagamento.

Há duas histórias para a trajetória de sucesso da grife feminina Amissima. A versão glamour é a da marca de roupas presente em dois templos paulistanos do luxo (os shoppings Cidade Jardim e JK Iguatemi), liderada pela diretora de estilo da marca, a sul-coreana Suzana Cha. Não é só isso. A Amissima também emplaca vestidos em capas de revistas, viaja com jornalistas a Paris – as fotos estão nas redes sociais da marca – e conta com influenciadoras como @luizabsobral, @lelesaddi e @thassianaves para exibir os modelos da grife para milhares de seguidores no Instagram.

A outra história, desumana e sem sofisticação, é a da empresa que lucrou à base de trabalho análogo ao de escravo.

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O Intercept teve acesso exclusivo a uma investigação de auditores fiscais do trabalho em São Paulo que descobriu que, em pelo menos duas das 25 oficinas de costura que produzem exclusivamente para a marca, os trabalhadores são submetidos à condições análogas à de escravo. Ainda segundo os agentes, as demais 23 oficinas apresentam indícios de condições semelhantes, o que será verificado em desdobramentos da operação.

No dia 6 de novembro, visitei duas delas junto com os auditores da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo, que investigam as irregularidades.

As oficinas terceirizadas que produzem com exclusividade para a marca funcionam em imóveis degradados em bairros periféricos de São Paulo. São contratadas diretamente pela Amissima, sem intermediários. O ambiente é abafado e inseguro. De frente para a rua, em uma sala retangular espaçosa, sete máquinas de costura trabalhavam sob uma lona e um teto de isopor. Nem a nossa presença interrompeu a produção.

A oficina também funciona como casa para muitas famílias que costuram para a marca e dividem o mesmo imóvel. A prática é ilegal. Ali, os trabalhadores aceitam um esquema de divisão de pagamento chamado “um terço”: um terço do valor da peça fica com o trabalhador, outro terço vai para as despesas da casa, divididas igualmente entre todos, e o último terço para o dono da oficina (a pessoa que assume a negociação com a empresa).

Assim, dos R$ 9 que a Amissima paga para a oficina por peça, R$ 3 vão para o costureiro. O resto vai para a casa e para o dono da oficina – em geral, outro migrante nas mesmas condições.

Entre lenços e sem documentos

Nas oficinas, a rotina é sufocante. Os funcionários costumam trabalhar das 8h às 22h, com rápidos intervalos para as refeições – todas feitas no mesmo ambiente. Os pagamentos são feitos de acordo com a produtividade e a qualidade nas entregas.

Nas duas oficinas, 14 costureiros bolivianos foram encontrados entre amontoadas de tecidos e máquinas de costura. Nenhum tinha carteira de trabalho assinada, e dois não tinham sequer documentos brasileiros. Alguns desempenhavam a função há anos – o caso mais antigo é de 2012. Os auditores fotografaram tudo, recolheram documentos e peças piloto: quatro vestidos, um top cropped e uma blusa de cetim.

O Ministério do Trabalho autuou a Amissima por 23 irregularidades depois da operação. A marca terá de pagar R$ 553 mil em indenização aos trabalhadores. Com o fundo de garantia, os trabalhadores receberão perto de 600 mil.

Tecidos, linhas e remédios para dor

“Você não arrematou a roupa? Você viu a foto, ela falou que vai descontar seu prêmio, tá bom?”, diz uma das funcionárias da Amissima em mensagem de WhatsApp enviada para um dos costureiros e interceptada pelo Ministério do Trabalho.

Na marca, “prêmio” não é bônus ou gratificação. Os trabalhadores esclareceram que o “prêmio” é o valor do pagamento integral pela costura da peça e serve para pressionar os oficinistas a entregarem no prazo correto e sem defeitos. Ficar sem “prêmio” significa, portanto, ter descontado cerca de 15% por peça, mesmo depois de refazer o serviço e entregar o produto como o cliente pediu. “Para mim, não tem prêmio. Só desconto”, disse um dos trabalhadores resgatados.

Quem avança nas horas trabalhadas e, assim, costura mais peças, ganha mais. “[Os costureiros] estavam submetidos a uma jornada não menor do que 13 horas de trabalho diárias, mas habitualmente de 14 horas”, diz o relatório dos auditores sobre as jornadas exaustivas, um dos elementos que caracterizam o crime, segundo o Código Penal. Para costurar para a marca, eles eram submetidos a 70 horas de trabalho por semana – no mínimo.

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Migrantes bolivianos não tem registro de trabalho – e muitos não tem nem a documentação brasileira.

Foto: Luiza Mandetta/The Intercept Brasil

Esse sistema de produção os pressiona a trabalhar até a exaustão, de segunda a sábado – incluindo feriados –, o ano todo, “sem condições de repor as forças, de curtir os filhos, de ter lazer, um vazio completo de humanidade”, afirmou o auditor fiscal do trabalho Luis Alexandre de Faria.

Por isso, analgésicos, antiinflamatórios e cintas ortopédicas para aliviar a dor lombar dividem espaço na oficina com linhas e tecidos e cadeiras sem encosto, regulagem e, em muitos casos, quebradas.

Segundo os depoimentos e registros encontrados, cada trabalhador recebia cerca de R$ 900 por mês – o piso da categoria para oito horas de trabalho diárias é de R$ 1.450,02. O salário, além de baixo, era pago sem regularidade – em geral, depois do pagamento da Amissima pelo lote. Os funcionários também não recebiam FGTS, férias com adicional, 13º salários ou adicional por horas extras.

Vida sem escolhas

Na blitz promovida na oficina que presta serviços para a Amissima, um dos casais resgatados vivia em um cubículo onde cabe uma cama, uma máquina de costura e um armário pequeno, sem privacidade ou ventilação, separado da cozinha de uso coletivo por uma cortina de chuveiro. Lâmpadas pendiam do teto, aumentando riscos de incêndio, segundo os fiscais.

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Vestido fotografado pelos fiscais na oficina.

Foto: Luiza Mandetta/The Intercept Brasil

Em uma das oficinas, um sobrado com uma espécie de subsolo, os fiscais encontraram cinco extintores de incêndio vencidos – alguns há 15 anos. Em um longo corredor empoeirado e mal iluminado, ficavam o banheiro, a casa-oficina de um casal que paga aluguel, a cozinha e um estoque de botijões de gás. Ao lado, uma sala onde cinco crianças, todas menores de dez anos, brincavam enquanto os adultos costuravam.

Dois rapazes solteiros dividiam espaço com as famílias. Na parte de cima, outros quartos improvisados e um banheiro de uso comum. “Você tem um risco adicional pelas crianças, expostas a desconhecidos”, disse a auditora Lívia dos Santos Ferreira.

“Moramos apertados. Se a gente recebesse direito, poderíamos ter uma oficina, uma casa grande. Se pagassem pelo menos 10% do valor (vendido ao público) de peça, viveríamos em uma condição melhor”, disse um dos costureiros. Em média, a Amissima paga pouco mais de 1% do valor da peça na loja ou no e-commerce da marca. Ele, como os demais, pediu anonimato por segurança e por medo de perder o contrato. Como outros na mesma situação, migrou da Bolívia para fugir da pobreza. No Brasil, já trabalhou com outras marcas, que pagavam pior ainda, segundo ele.

Isso é trabalho escravo

Tanto a gestão de Michel Temer quanto a de Bolsonaro caminham para afrouxar as regras de combate ao trabalho degradante. O primeiro tentou tornar mais difícil enquadrar um trabalhador como escravo. Também empregou um ministro que tinha um histórico de violações trabalhistas. Mas Bolsonaro vai mais longe: o presidente eleito já anunciou a extinção do Ministério do Trabalho, que é o órgão responsável por coordenar o tipo de fiscalização que flagrou os escravizados da Amissima.

Na semana passada, a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo relatou “profunda preocupação com a política de descontinuidade da política de enfrentamento ao trabalho escravo, especialmente quanto às ações de fiscalização coordenadas pelo Ministério do Trabalho.”

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Marca tem lojas no Shopping Cidade Jardim e no JK Iguatemi, dois templos do consumo de luxo em São Paulo.

Luiza Mandetta/The Intercept Brasil

Durante a campanha, Bolsonaro foi um dos candidatos que não se comprometeram com o combate a regimes de trabalho análogos à escravidão. Na verdade, o presidente eleito já demonstrou que não sabe o que é trabalho escravo, assim como seu antecessor, Michel Temer, que comparou situações degradantes à mera ausência de “uma saboneteira” no banheiro da empresa.

Tecnicamente, para que uma situação seja enquadrada como análoga à escravidão, é preciso que existam graves violações a direitos fundamentais. Jornada exaustiva, condições degradantes e submeter os funcionários a riscos de saúde ou de vida, por exemplo. Além disso, essa prática também dá uma vantagem ilegal à empresa frente à concorrência, explica Giuliana Cassiano, auditora fiscal do trabalho. “O consumidor é quem tem mais poder para coibir esses crimes, porque é ele quem diz sim ou não para um produto que é produzido com trabalho escravo.”

Por telefone, o CEO da Amissima, Jaco Yoo, afirmou que errou ao não fiscalizar as condições de trabalho nas oficinas contratadas pela marca e lamentou pelos migrantes sem documentação. “Meus pais vieram da mesma situação (eram migrantes). Sei das dificuldades, jamais faria isso.”

Disse, ainda, que pagava semanalmente as oficinas, o que os trabalhadores negam, e que eles não “produziam muito”. Também prometeu contratar metade dos costureiros para trabalhar na empresa.

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