O cara da periferia na USP: o meu primeiro ano como cotista na Faculdade de Direito mais elitista do Brasil

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O cara da periferia na USP: o meu primeiro ano como cotista na Faculdade de Direito mais elitista do Brasil

A Sanfran resistiu até o fim contra o ingresso de negros e periféricos. Mas agora nós estamos lá vivendo a “síndrome do impostor”.

O cara da periferia na USP: o meu primeiro ano como cotista na Faculdade de Direito mais elitista do Brasil

Entrei em Direito na USP. E, como em todos os anos, as tradicionais atividades da semana de recepção aos calouros são patrocinadas por escritórios de advocacia cobiçados pelos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a Sanfran. Em 2018, porém, a festa foi diferente: ela incluiu 138 cotistas pela primeira vez. Eu estava entre eles. E foi durante uma visita a um desses escritórios que tivemos uma prévia do racismo que viveríamos ao longo do primeiro semestre.

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Num prédio estilo neoclássico forrado de mármore na imponente avenida Faria Lima, em São Paulo, percebi rapidamente os padrões sociais do mundo jurídico. Entre lanches e recados tipo “veja como somos legais, temos happy hour às sextas”, um rosto negro em tom questionador finalmente fez a pergunta que todos queríamos fazer: “por que não tem negros trabalhando aqui?”

E nós, que pela primeira vez ocupamos em números expressivos a mesma faculdade que há 167 anos impediu o advogado negro Luiz Gama de obter o seu diploma, recebemos como resposta um rosto branco assustado e a fatídica resposta: “talvez seja porque os negros não tenham interesse”.

Hoje, menos de 1% dos advogados são negros, segundo um levantamento feito em mais de mil escritórios no Brasil. Isso sem falar das diferentes oportunidades aos negros e negras de pele clara, como eu, e aos de pele retinta, que têm ainda mais dificuldade de se inserir no mercado de trabalho. Então será mesmo que as pessoas negras não querem trabalhar em nenhum desses escritórios? Eu garanto que não.

‘Tentou e não conseguiu’

A vida na faculdade é uma prévia exata do que encontramos nos grandes escritórios elitistas. Há uma dificuldade da comunidade acadêmica de entender a diversidade social que agora ocupa a primeira faculdade brasileira.

Dá para entender: a USP foi a última das 10 maiores universidades brasileiras a adotar as cotas. E só o fez após sofrer pressão do movimento negro, com a intenção de se afastar da imagem negativa de ser a única grande instituição pública do país a não aderir ao bem-sucedido modelo que inseriu 150 mil negros nas universidades públicas.

Eu sou um destes alunos. Negro, da periferia e cotista da Sanfran. Nasci e vivi toda a minha vida no Itaim Paulista, último bairro do extremo leste de São Paulo. No ensino fundamental, frequentei uma escola que já foi considerada uma das piores do estado. Tive um ensino médio conturbado. Foi em 2016, quando ocupamos a nossa escola exigindo a instauração da CPI da merenda na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que abri os meus olhos para as universidades públicas e tive o sonho de um dia estar entre os melhores, os da classe média, os filhos dos ricos, os futuros dirigentes do país.

Mas a minha condição ficou nítida na Cervejada do XI, evento realizado no dia do aniversário da Sanfran, em 11 de agosto. É uma comemoração tradicional entre os alunos, que ocupam o Largo São Francisco, onde fica a faculdade, em uma festa cercada por grades para não ser acessada por quem está de fora. O ritmo da bateria da faculdade embalava o ufanismo das tradições e, de cima de um trio elétrico, alunos puxavam o canto:

“Essa é a escola que todos desejam, mas poucos conseguem entrar. Mostra que tentou, e não conseguiu, então vai para a puta que pariu.”

Imediatamente senti que, mesmo sendo hoje aluno da Sanfran, a música me doía muito. Me machucava porque ela não foi simplesmente criada para provocar os ricos que foram para as universidades concorrentes, como PUC ou Mackenzie, mas para deixar nítido que a USP jamais deve ser popular. A música cantada por poucos privilegiados era um ataque a todos os meus amigos que choraram por não poder viver um sonho como esse e a todos aqueles que nem se chegaram a sonhar.

Síndrome do impostor

Logo no início do ano, passei a morar na Casa do Estudante da São Francisco, um prédio na Av. São João que desde 1949 recebe alguns dos estudantes da faculdade. A moradia, que pertence ao Centro Acadêmico XI de Agosto, tem um passado imponente. Ela recebia os estudantes das famílias mais ricas do interior – entre eles o presidente Michel Temer. Hoje, porém, a Casa enfrenta a deterioração de anos de abandono e está superlotada. Nós – os cotistas – precisamos dividir quartos com outros quatro calouros, enquanto os estudantes mais velhos ocupavam quartos individualmente.

Na Sanfran, assim como no resto da sociedade, basta você ser um homem branco para ser ouvido. São várias as situações em que alunas foram taxadas de problematizadoras ao questionarem as frequentes interrupções que as suas colegas sofrem quando falam. E nós, cotistas, somos chamados de “radicais”: quando, por exemplo, cobramos uma retratação pública de um caso de racismo ocorrido durante uma assembleia dos estudantes. Em casos assim, somos nós que temos que nos explicar para a faculdade – e não o racista.

Dentro da sala de aula, a minha autoestima foi colocada à prova já no primeiro semestre: a USP criou uma comissão para acompanhar o desempenho dos alunos cotistas. A existência dessa comissão só contribuiu para que a minha insegurança nutrisse a inevitável “síndrome do impostor”. Será que dou conta de participar dos debates? Será que tenho inglês suficiente para entender essa bibliografia do curso? Será que estou pronto pra tudo isso depois de tanto esforço para entrar? Foram inúmeras as vezes em que me senti – e ainda me sinto – receoso em participar dos debates ou em simplesmente aproveitar o sol das arcadas que limitam o prédio.

Mas eu burlei as estatísticas. A primeira vez que subi ao palco foi cheio de inseguranças para apresentar um seminário. Na segunda, foi para deixar fora dele o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, que também é professor da São Francisco. Desta vez, era o filho da diarista que pedia o microfone. Assumi a fala para divulgar a campanha da reforma da Casa do Estudante e desafiei o ministro a abrir mão dos seus privilégios do Judiciário para ajudar a custear a Casa. O STF, vale lembrar, autorizou um reajuste de 16,38% sobre seus próprios salários, que subiram de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil com a sanção do aumento pelo presidente Michel Temer, gerando um custo de até R$ 4 bilhões para o país.

Pedi ao ministro que entregasse três meses de seu auxílio-moradia, de mais de R$ 4 mil, para o fundo que custeará a reforma da Casa do Estudante. Enquanto gesticulava para que eu parasse de falar, Lewandowski começou a se aproximar de mim até o instante em que ficamos frente à frente. No momento, então, falei: “mas o mais importante mesmo, Vossa Excelência, é que você não está mais dando aula apenas para os filhos dos seus colegas juízes. Hoje, você também dá aula para o filho e filha do porteiro e da empregada”.

O ex-presidente do STF, então, usou todo o tempo que restava de aula para defender os penduricalhos, pois, segundo o magistrado, “um juiz não pode ter salário de fome”.

O cara da periferia na USP

A minha breve experiência como ‘franciscano’ não traz nenhuma novidade. Ela mostra que os processos racistas e elitistas estão enraizados, tanto nos alunos quanto nos professores.

Mas, claro, há avanços. Um deles é a fundação do jornal da faculdade, o Chico, que está sendo germinado ao mesmo tempo por mim, filho da diarista e por um colega que é filho do professor, além de outras estudantes. Será o espaço para envolver todo o tipo de conhecimento e experiência que a academia não costuma dar voz: o meu. O jornal será um território livre, diferente dos julgamentos dos professores e de alguns alunos. Também há o Coletivo Negro Quilombo Oxê, criado pelos alunos negros da faculdade em 2014. Diante das novas caras negras presentes no dia a dia da universidade, é possível perceber a animação de alguns dos veteranos.

Em um encontro do Quilombo no início do ano, ouvi de um membro já formado: “se na periferia você é o cara da USP, na USP você é o cara da periferia”. Não precisei completar o primeiro ano para perceber que é verdade. Uma vez na USP, ser negro e ter consciência do que somos e representamos, ao mesmo tempo que procuramos nos encaixar nos espaços, seja qual for o tom de pele negra que me veste, é uma tarefa mais difícil do que tentar decifrar os jargões do Direito.

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