Poucos dias antes do natal de 2017, exatamente um ano atrás, no dia 22 de dezembro, o marceneiro Nelson Neves de Souza Jr., de 29 anos, recebeu uma ligação de uma tia no meio do expediente. A polícia procurava por ele. Naquele dia, Nelson foi do trabalho direto para casa, na favela Vila Sônia, em Praia Grande, no litoral paulista, para “entender o que estava acontecendo”. Ao chegar, foi imediatamente levado para uma delegacia por agentes da Polícia Civil. Só voltou para casa seis meses depois.
“Eu estava numa cadeia e não sabia por quê. Perguntava, buscava respostas, mas só me diziam que alguém da justiça iria falar comigo. Mas ninguém nunca foi”, conta, ao descrever o processo digno de Kafka a que foi submetido – no livro do escritor tcheco, um homem acorda e descobre que está sujeito a um longo e incompreensível processo sem que seja especificado em que crime estaria envolvido.
O crime pelo qual era acusado, descobriu depois, havia acontecido três anos antes. Segundo o inquérito policial, dois homens haviam abordado uma pessoa em Praia Grande e roubado seu dinheiro e um cartão de crédito, em frente a uma agência bancária.
Na hora do roubo, às 16h15, Nelson não poderia estar em Praia Grande, já que havia saído às 16h de seu emprego, no Porto de Santos, como comprova o cartão de ponto mostrado pela sua defesa. O porto fica a cerca de 20 quilômetros e mais de 30 minutos do local do crime.
O Ministério Público havia acatado a indicação de Souza como um dos autores do crime baseado em uma fotografia. O problema é que a pessoa na foto é um homem completamente diferente dele, fichado em 2011, três anos antes do crime acontecer. Esse foi, segundo os advogados Paulo de Jesus e Érico Lafranchi, que o defenderam, um dos muitos erros do processo.
A lentidão para avaliar o caso também chama atenção: o ofício enviado pelo advogado pedindo a soltura do marceneiro data de 17 janeiro de 2018, quatro meses antes da soltura do acusado, em 7 de maio.
“Claramente, o suspeito não é o meu cliente: a cor de pele e o cabelo são diferentes, os traços do rosto também não convergem com a imagem atribuída a ele. Bastava fazer a comparação da foto, que dizia ser o Nelson, com o próprio, que apresentou sua documentação, para constatar que havia um erro”, afirma Jesus.
Ele contou sua história ao Intercept.
Moro em Vila Sônia, em Praia Grande, desde muito criança. Sou marceneiro por profissão, mas há algum tempo já trabalho com carteira assinada no Porto de Santos, na área de serviços gerais. Eu tinha um emprego estável e estava realizando alguns planos de vida, como construir uma casa para mim, minha mulher e agora meus três filhos. Na época que esse crime contra mim aconteceu ela estava grávida e eu perdi o nascimento do meu filho.
Quando a polícia chegou lá em casa no dia 22 [de dezembro] com a ordem judicial, eu não acreditei. Achei que era um engano, como tinha acontecido no dia 14, quando eles me abordaram na rua, em frente à minha casa, enquanto eu esperava o transporte para trabalhar. E eu fui para a delegacia e mostrei documentação e só. Achei que ia ser igual. Esclarecer tudo e voltar para casa. Mas não. Cheguei na delegacia e fui algemado. Eu perguntava o que estava acontecendo, por que eu estava sendo preso, mas ninguém falava nada. Parecia um pesadelo. Os policiais só diziam que alguém, algum oficial da justiça, ia entrar em contato comigo para me dizer, mas nunca recebi ninguém. Só fui descobrir qual era o crime depois que a minha família, com a ajuda dos parentes e dos amigos, contratou um advogado particular.
Antes de irem na minha casa, eles primeiro ligaram para a minha tia falando que precisavam falar comigo sobre uma assinatura que esqueci de fazer por conta de uma pensão. Mas eu não devia pensão nenhuma e no dia anterior eles já haviam ido na casa de meus avós, porque eu morava lá antes de me casar, e aí minhas tias falaram com ele. Quando eles chegaram lá, falamos normalmente. Quem não deve não teme, né? Como eu não devia pensão nenhuma, eles iam resolver. Mas agora eu vejo que era mentira, eles já estavam com a ideia de me prender na cabeça.
‘Nem pra cachorro eu daria a comida da prisão. Tem de tudo: pedaço de barata, pêlo de bicho. Qualquer pessoa pensando, não come. Mas lá ou você come ou passa fome.’
Eu nunca cometi um crime na minha vida, nos meus 29 anos, nunca. A gente é de comunidade, mas não é bandido, sou trabalhador. Passei quase seis meses na cadeia, sabendo que era inocente. Passei por um monte de coisas, mas a minha inocência me dava tranquilidade. Eu tinha certeza que ia conseguir provar e sair dali. Mas também sentia um sentimento de injustiça muito grande, o tempo todo. Eu passava a maior parte do dia trancado na cela. Lá, não tinha cama, nem colchão para todo mundo, tinham várias pessoas e só seis colchões, a gente dormia no chão mesmo, na pedra. Tem até uns presos que ficam mais tempo soltos, mas eu não. Ficava o dia todo trancado, pensando. Eles só abriam a cela para a gente sair para comer.
Depois que a gente entra na prisão, é tratado como se fosse um qualquer, eles cortam o seu cabelo, você se sente um lixo. Logo que entrei, peguei conjuntivite. A gente divide a cela, que é pequena, com um monte de outras pessoas. Eu com aquele vírus, aquele incômodo, e demorei três dias só para conseguir passar um colírio no olho. Pedia, pedia e pedia, mas depois que você entra na prisão, não importa o crime de que é acusado, você é tratado como um nada. Três dias só para pingar um colírio.
Lá dentro, a gente vive um regime controlado, rígido. É obrigado a acordar às 5h, aí toma café, que parece água de peixe com pão dormido. Aí, volta pra cela. Depois tem almoço, que você só come porque não tem outra opção, porque senão vai ficar com fome. Acho que nem cachorro come aquela comida. Nem pra cachorro eu daria. Tem de tudo: pedaço de barata, pêlo de bicho. É uma lavagem mesmo, não tem outra palavra. É irracional comer aquilo. Qualquer pessoa que esteja pensando, não come. Mas lá não tem essa opção. Ou come ou passa fome.
Um dos maiores problemas é que para a polícia todo mundo ali é bandido igual. E tem gente que cometeu um monte de crime mais grave, diferente, mas eles tratam igual. Quando o GRI, o Grupo de Intervenção Rápida, entra, eles saem batendo em todo mundo. Eles dizem que é pra controlar [os presos], mas é para assustar. E você pensa em se esconder, mas aí, não tem pra onde correr, né? É cadeia. Você tá preso.
‘Depois dessa experiência eu não julgo mais ninguém, pode estar acontecendo o mesmo que aconteceu comigo.’
O que me deu forças para passar por isso foi a minha certeza de ser inocente. Eu perdi muita coisa nesse tempo: Natal, Ano Novo, nascimento do meu filho, meu próprio aniversário. Só consegui ver minha mulher depois de dois meses, e só ela. Perdi meu emprego. Hoje estou temporário, mas aquele fixo mesmo, não tem. Tive que adiar muitos planos. E muitas pessoas me julgam como a justiça me julgou, como culpado, mesmo eu tendo provado minha inocência. Tem muito preconceito porque fui preso. Até para o meu filho mais velho precisei explicar o que tinha acontecido várias vezes, porque no começo ele não queria entender. Ele chegou a acreditar que o pai dele era um criminoso.
A gente vai superando, eu estou superando. Mas ainda não consigo dormir a noite toda, não. Acordo de madrugada todo dia, como se tivesse lá na prisão, que é a hora que a gente é acordado.
Sinto revolta, decepção, tristeza. Tenho medo de voltar para aquele lugar. Não por conta dos outros. Até fiz amizade lá, porque depois dessa experiência eu não julgo mais ninguém, pode estar acontecendo o mesmo que aconteceu comigo. Mas nunca mais quero viver o que passei lá, é muita violência física e psicológica, a gente não tem nem espaço direito pra deitar, as celas estão sempre lotadas. Sempre. Somos tratados de qualquer jeito. Eu vou fazer sim alguma coisa contra isso, vou entrar com um processo já no começo do ano que vem, correr atrás dos meus direitos, contra essa injustiça. Mas a verdade é que tudo só para compensar mesmo. Porque o tempo que eu perdi, e as coisas que eu vivi, não tem como mudar. Não tem como voltar atrás, né? Nem apagar.
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