O interminável silêncio do motorista Queiroz não deixa dúvidas de que ele não tem como explicar as mutretas no gabinete de Flávio Bolsonaro, que envolvem o presidente eleito da República e sua esposa.
Há mais de duas semanas, a família Bolsonaro vem tentando se esquivar do assunto, limitando-se a dizer que é Queiroz quem deve ser questionado. Mas o amigo íntimo de quase 40 anos do presidente sumiu do mapa. Na última sexta-feira, ele faltou pela segunda vez a uma convocação para prestar depoimento no Ministério Público do Rio alegando doença. Essa dificuldade em explicar os desvios nos leva a supor que os envolvidos no caso ainda não combinaram uma boa desculpa.
O motorista mora numa casa simples e leva uma vida incompatível com a de um criminoso que liderava um esquema que desviava quantia milionária dos cofres públicos.
Já a família Bolsonaro, que multiplicou seu patrimônio na política, hoje conta com pelo menos R$ 15 milhões só em imóveis.
“Tudo funciona dentro do meu gabinete. Vocês estão criando uma história no imaginário das pessoas que não é verdade. Nós sempre trabalhamos super direitinho, super bem”, mentiu Flávio Bolsonaro. A sua família está longe de trabalhar “super direitinho” quando se trata da administração dos seus gabinetes.
Pouco se tem lembrado que o clã Bolsonaro tem larga tradição na distribuição de tetas públicas para amigos e parentes e no funcionalismo fantasma. É um costume de família. Com atuações parlamentares tímidas, para não dizer irrelevantes, a promiscuidade entre o público e o privado sempre foi uma das grandes marcas dos gabinetes dos Bolsonaro. Não foram poucas as vezes em que se descobriu que gente próxima da família recebia um salário público sem aparecer para trabalhar.
O caso Queiroz é só mais um entre tantos. Resolvi relembrar alguns casos antigos que mostram como o clã mais poderoso do país tem utilizado seus mandatos para abrigar amigo e parentes no serviço público. Nem todos os casos são ilegais, mas demonstram que o zelo pelo dinheiro público nunca foi um princípio caro dentro dos seus gabinetes.
Todos os casos citados abaixo já foram publicados na mídia. Portanto, não há novidades. O intuito é colocar o caso Queiroz sob perspectiva e registrar o uso do dinheiro público para favorecimento particular como uma tradição familiar.
Ana Cristina Valle – é aquela ex-mulher que negou ter sido ameaçada de morte por Jair Bolsonaro durante a campanha mesmo depois de aparecer um documento oficial do Itamaraty em que ela relatou a ameaça. Antes de virar candidata à deputada federal usando o sobrenome do ex-marido, e não se eleger, Ana Cristina conseguiu emprego nos gabinetes da família Bolsonaro não apenas para ela, mas também para seus parentes.
No fim de 1998, quando seu filho com Jair Bolsonaro ainda não tinha completado um ano, Ana Cristina foi trabalhar no gabinete da liderança do PPB, a sigla pela qual Bolsonaro acabara de ser eleito.
Em 2000, se mudou para o Rio de Janeiro para trabalhar no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro, onde ficou por seis anos. Em 2018, foi ser chefe de gabinete do vereador Renan Marassi que, vejam só que coincidência, é de Resende — base eleitoral dos Bolsonaro — e um grande aliado político. No mês seguinte à contratação, mais uma nova coincidência: o vereador foi com o prefeito de Resende até Brasília para agradecer Bolsonaro pelas emendas que destinaram verbas para o município.
Andrea Valle – a ex-cunhada de Bolsonaro estreou no serviço público ganhando uma tetinha no gabinete de Jair Bolsonaro em 1998, mesmo ano em que sua irmã deu a luz ao filho de Bolsonaro. Ela foi nomeada assessora na Câmara, onde ficou até 2006.
Dois anos depois, uma semana após o STF proibir a contratação de parentes de até terceiro grau para cargos de confiança, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro nomeou a ex-cunhada do pai para trabalhar em seu gabinete.
Durante 10 anos, Andrea recebeu R$ 7,3 mil entre salário e gratificações, além de mais R$ 1,1 mil em auxílio escolar. Há um ano, reportagem do O Globo foi procurá-la no gabinete por duas vezes, mas os funcionários nunca haviam ouvido falar dela. Flávio garante que ela não era funcionária-fantasma. Segundo ele, ela não aparecia no gabinete porque ficava em Resende organizando reuniões e fazendo divulgação e panfletagem das atividades parlamentares.
José Cândido Procópio Valle – é pai de Ana Cristina e Andrea. O ex-sogro de Jair foi nomeado como assessor do seu gabinete também no mesmo ano em que Renan Bolsonaro nasceu. Mas não foi para Brasília, ficou no Rio de Janeiro prestando assessoramento parlamentar. Em 2003, foi trabalhar no gabinete de Flávio Bolsonaro, onde ficou durante cinco anos. Foi exonerado no mesmo dia em que sua filha Andrea foi contratada para o mesmo cargo.
Renato Antônio Bolsonaro – o irmão de Jair Bolsonaro mora em Miracatu, interior de São Paulo. Já foi candidato a prefeito da cidade, é dono de quatro lojas de móveis na região e trabalhou como assessor especial no gabinete do deputado estadual André do Prado (PR). Reportagem do SBT acompanhou a rotina do irmão de Bolsonaro e constatou que ele não só não aparecia no gabinete do deputado como também não exercia nenhuma atividade ligada ao parlamentar em sua cidade. O irmão de Jair Bolsonaro sugava cerca R$ 17 mil dos cofres públicos por mês, totalizando aproximadamente R$ 230 mil por ano. Foram três anos nessa mamata. Após a revelação do caso, Renato foi exonerado.
Assim como a filha do Queiroz, que ganhava salário como funcionária do gabinete de Jair Bolsonaro, mas atuava como personal trainer de celebridades no Rio, Renato se dedicava exclusivamente à administração das suas lojas.
Waldirene dos Santos Conceição – conhecida como Wal do Açaí, ela constava como funcionária do gabinete de Jair Bolsonaro desde 2003, mas jamais exerceu o cargo público. Wal trabalhava vendendo açaí em Angra dos Reis, na mesma rua em que Bolsonaro tem uma casa de veraneio. Segundo moradores da cidade, Wal prestava serviços na casa de Jair, onde seu marido trabalhava como caseiro. Ou seja, durante mais de uma década, Bolsonaro usou dinheiro público para pagar uma funcionária particular.
Depois que a Folha revelou o caso, Jair exonerou a funcionária, assinando o atestado de culpa. Preocupado com a campanha eleitoral, entrou com pedido no TSE para que as reportagens a respeito fossem retiradas do ar.
Enquanto baixo clero, a família Bolsonaro tratou a coisa pública como se fosse um puxadinho da sua casa. Distribuiu cargos para amigos, parentes e fantasmas. Mesmo assim, uma das palavras de ordem que impulsionou o bolsonarismo foi: “a mamata vai acabar!” Nada indica que essa família muito unida e ouriçada vá se emendar quando papai subir a rampa do Planalto. O Brasil anda numa fase tão surrealista, que é capaz de Jair Bolsonaro desfilar no Rolls Royce presidencial no dia da posse tendo Queiroz como motorista.
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