Quando me perguntam sobre minhas lembranças de Natal da minha infância, tenho a resposta bem clara: cheiro de bala, som de buzinas e sapatos na janela do quintal. Isso porque eu cresci em Holambra, colônia holandesa no interior de São Paulo, e por lá as tradições são um pouco diferentes daquelas que vemos no resto do Brasil.
Meu primeiro Natal na cidade, em 1998, aos 4 anos, foi marcado por um verdadeiro susto. O que aconteceu foi o seguinte: a partir de novembro, os Zwarte Piet – Pedros Negros em tradução livre – começaram a aparecer nas ruas de Holambra. Eram adultos, normalmente brancos, que se pintavam de preto, usavam peruca afro, fantasias, penduravam brincos de argola nas orelhas, passavam batom vermelho nos lábios e saíam distribuindo doces para as crianças boazinhas e punindo as levadas. Varas e correntes amarradas na cintura também faziam parte da fantasia. Eu saí de lá em 2007, aos 13 anos, mas a tradição segue intacta até hoje.
Naquela época, a imagem sempre me pareceu “normal”, apesar de eu sentir bastante medo deles. Essa cultura surgiu na Holanda e foi trazida para o Brasil com os imigrantes que chegaram em 1948 em Holambra – nome que se deu pela junção de Holanda, América e Brasil. A história que nos contavam (e que ainda segue sendo repetida por aqui) é a de que os Pedros Negros são os ajudantes do São Nicolau, figura que deu origem ao Papai Noel.
Eles vêm da Espanha para acompanhar o bom velhinho e ajudam na distribuição de presentes. No período das festas, os Zwarte Piet passam pelas ruas, casas, restaurantes e escolas distribuindo balas. A chegada deles é anunciada pelo som de buzina dos carros.
As crianças “mal comportadas”, no entanto, não têm essa sorte. Os Pedros Negros andam também com uma vara, usada para dar palmadas naqueles que não foram bonzinhos durante o ano. Os mais rebeldes teriam um destino ainda pior: seriam levados dentro de um saco para trabalhar em colheitas de laranja na Espanha.
Eu não era das melhores alunas da sala, conversava muito e sempre aprontava alguma. De alguma forma, eles sabiam disso e sempre corriam atrás de mim pelo pátio da escola dando varadas. A possibilidade de ser levada para trabalhar na colheita me apavorou durante boa parte da minha infância.
Tenho uma lembrança muito clara, quando tinha por volta de 8 anos, de estar sentada na sala de aula em uma rodinha com todos os alunos da classe e alguns dos Pedros Negros. Eu estava bem nervosa e me recordo que só senti alívio quando vi a tinta preta escorrendo da orelha de um deles. Foi naquele momento que eu entendi que eles não eram de verdade? – eu já morava na cidade havia três anos.
Por mais que eu participasse das festas, nunca senti a empolgação que meus colegas de classe pareciam sentir. Eu ficava apavorada, na verdade. Para piorar, por conta do meu tom de pele mais escuro e do meu cabelo cacheado, também era comum fazerem piadas me comparando a imagem do Zwarte Piet. Eu respondia de volta como um mecanismo de defesa, mas ainda não entendia a gravidade desse tipo de brincadeira.
A grande questão é que eu só percebi como essa tradição é problemática anos depois, quando já havia me mudado para São Paulo e cortado boa parte das minhas relações com a cidade onde passei minha infância. Um pouco antes disso, inclusive, tive amigos que se fantasiaram de Zwaerte Piet, e eu simplesmente não via nada de errado. No entanto, no momento em que eu comecei a estudar mais sobre raça e me deparei com o termo blackface, foi que eu entendi que aquilo tudo era bem racista. E, então, passei a me lembrar da sensação de medo que eu tinha em relação aos Pedros Negros. Eu, uma menina que era lida como parda ou negra, em uma cidade de maioria holandesa e branca, tinha receio de pessoas pintadas de preto.
Mas, naquela época, a imagem do Pedro Negro era incontestável. Nunca houve um debate. Na Holanda, de acordo com Patricia Schor, professora da Amsterdam University College e especialista em pós-colonialismo e racismo, a problematização existe há décadas, mas ganhou destaque na mídia holandesa há cerca de seis anos. Com essas discussões, muito se foi falado sobre a origem do Zwarte Piet, que é bem problemática: apesar do São Nicolau fazer parte das festas de final de ano desde a Idade Média na Holanda, o Pedro Negro só surgiu no século 19, quando a escravidão ainda era presente nas colônias do país.
Sua primeira aparição foi em um livro chamado “São Nicolau e seu servo”, escrito por Jan Schenkman. A história conta que o bom velhinho visitava várias cidades dando presentes para as crianças, ao lado do seu ajudante, o Zwarte Piet. Nas ilustrações, percebe-se que o personagem fazia todo o trabalho duro. Além de carregar todo o peso, ele também era o responsável por punir as crianças com palmadas, ou levá-las para a Espanha em um saco.
Nesta mesma época, era bem comum colocar os negros na posição de escravizado como se fosse algo natural e não imposto, uma identidade – foi a forma que os colonos encontraram de justificar a escravidão e o racismo. O termo blackface caracteriza exatamente isso: pessoas brancas que resolvem “se fantasiar” com estereótipos negros. A boca grande, o rosto pintado de preto, a peruca afro e os brincos de argolas – exatamente como vemos no Zwarte Piet – fazem parte da “fantasia”.
Com essa constatação, a luta de ativistas pelo fim da tradição na Holanda tem se acentuado cada vez mais porque ela é uma alusão óbvia à escravidão em antigas colônias holandesas. Os centros urbanos da Holanda já têm feito alterações na figura tradicional do Pedro Negro. Uma saída foi afirmar que o Zwarte Piet tem essa cor porque ele caiu pela chaminé e, por conta da fumaça, ficou com a pele escurecida.
Mas a pesquisadora Patricia Schor explica que existe uma dificuldade em aderir a essa história e mudar um padrão tão antigo porque, quem contesta, acaba quebrando um vínculo com a maioria que segue acreditando na tradição. Ao criticá-la, a pessoa deixa de fazer parte daquele grupo, o que pode trazer sua exclusão. Como quem se manifesta contra normalmente são os holandeses negros, o grupo majoritariamente branco insiste em defender o que acreditam ser de sua propriedade, a cultura holandesa. Ao mesmo tempo, existe um sentimento de negação em afirmar que a tradição é racista, porque isso implicaria em dizer que eles são racistas também, e ninguém quer ser tachado como preconceituoso.
Em Holambra, a discussão começou a surgir também depois que eu me mudei da cidade, principalmente nas redes sociais. Alguns poucos moradores – não descendentes de holandeses – têm usado suas páginas pessoais para mostrarem suas opiniões contrárias ao Zwarte Piet, mas nada que tenha ido adiante. Gabriela Wagemaker Rodrigues*, integrante da organização Losango, responsável por manter essa tradição na cidade, a reação pública não foi o suficiente para abalar a figura. “As crianças entendem a cor negra no Piet como fuligem. Eles não têm olhos de adulto que enxergam que esses personagens foram na antiguidade escravos. Eu acredito que o preconceito e a maldade estão nos olhos do adulto e não das crianças”, afirma.
Essa mesma história era contada durante a minha infância, mas o rosto dos Pedros Negros era – e ainda é – completamente coberto pela tinta preta. Eles ainda usam a peruca com cabelo afro e pintam a boca de vermelho.
No final das contas, tanto na Holanda quanto na colônia do interior de São Paulo, a maior parte dos moradores não holandesa acaba aderindo as festividades – como era o caso da minha família –, mas hoje já existe um grupo que não quer participar e faz comentários contrários à tradição. A discussão acaba virando uma disputa entre quem pode fazer parte da cultura holandesa, quem pode criar ou mudar as tradições, atiçando um sentimento xenófobo.
Com a Europa se mostrando cada vez mais relutante a aceitar a presença de estrangeiros no continente, insistir nesse tipo de comportamento é uma forma de mostrar quem realmente manda ali, e o mesmo se repete no interior de São Paulo. A chegada de moradores brasileiros vindos de outros estados fez com que os nativos holandeses lutassem para manter suas tradições – algumas delas plausíveis, e outras, nem tanto. O discurso de que tudo isso é “mimimi” e que essas pessoas estão apenas contestando algo “puro e ingênuo” se mantém nos dois países.
Ao comentar toda a questão com meus pais, eles comprovaram exatamente essa análise: os dois achavam a tradição bem estranha, mas deixavam que eu e minha irmã participássemos para que não nos sentíssemos excluídas ou diferentes. Hoje em dia, no entanto, não consigo achar correto insistir em perpetuar a figura deste personagem que, mesmo sem intenções, fere e segrega. Muitas dessas imagens são passadas para crianças, que ficam com essa visão do negro como uma pessoa inferior, caricata e malvada. É claro que nem todas elas vão sair por aí reproduzindo preconceitos e diminuindo pessoas de outras raças ou etnias, mas algumas delas vão, e isso é um problema grave.
Em um momento de ascensão da extrema-direita e da relativização de atitudes claramente racistas, é necessário, sim, entender em que contextos nossas tradições surgiram. Também não dá para lidar com isso de forma maniqueísta, afirmando que quem mantém essa cultura é racista e ponto final. As coisas são complexas e exigem interpretações menos rasas. Mas uma coisa é certa: justificativa de manter uma tradição.
CORREÇÕES, 27 de de dezembro de 2018, 11h:
Uma versão anterior deste texto afirmava que Patricia Schor era pesquisadora da Universidade de Utrecht. Ela é professora da Amsterdam University College. Também dizia que a problematização dos Pedros Negros começou há seis anos na Holanda. Na verdade, existe há décadas e ganhou atenção da mídia holandesa há seis anos.
CORREÇÃO, 3 de janeiro de 2019, 9h50:
O nome de Gabriela Wagemaker Rodrigues estava escrito incorretamente.
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