Estamos na primavera de 2043, e Gina acaba de se formar na faculdade. Ela teve uma infância relativamente estável. Seus pais tiraram alguns meses do ano de licença-família a que tinham direito e depois a matricularam em uma creche pública.
O jardim de infância e o ensino básico também foram gratuitos, é claro, assim como a universidade, que ela começou depois de um ano de serviço comunitário – foram seis meses na restauração ecológica de pântanos e outros seis como voluntária em uma creche como a que ela mesma havia frequentado.
Agora que se formou, ela precisa decidir o que fazer da vida. Sem empréstimo estudantil para lhe tirar o sono, suas opções são muitas. Ela também não precisa se preocupar com os custos de um plano de saúde, pois agora todos estão incluídos no Medicare. Como a maioria das pessoas, Gina não é muito rica e mora em um apartamento público, alugado a preços controlados – e não nos conjuntos habitacionais precários que estamos acostumados a ver nos Estados Unidos. Os melhores arquitetos disputaram o privilégio de projetar esse e muitos outros prédios país afora, com áreas verdes exuberantes, creches e até bares e restaurantes. As contas também não são motivo de preocupação. A banda larga e a água tratada são gratuitas e de responsabilidade do governo, e os painéis solares espalhados pelos telhados geram mais energia do que o conjunto habitacional consome.
Gina estudou para ser engenheira em uma fábrica de painéis solares, e alguns de seus amigos estão começando a carreira como enfermeiros ou professoras. Todas essas profissões recebem bons salários, são sindicalizadas e consideradas essenciais na transição dos combustíveis fósseis para a energia limpa – que a população acompanha pelo noticiário noturno. Seja como for, não vai demorar até ela achar um emprego. Nos vários Centros Americanos de Emprego (AJC, na sigla em inglês) espalhados pelo país, ela conta com orientadores profissionais para encontrar um bom trabalho em alguma iniciativa que ajude sua cidade a lidar com as consequências do aumento do nível do mar e da força das tempestades, em algum projeto de história oral, ou então para mudar de área e fazer uma formação para trabalhar no próspero setor de energias renováveis.
Os AJCs são só uma pequena parte da Lei do New Deal Verde, promulgada em 2021, um programa que foi ganhando força nos anos seguintes. Parecia que a Suprema Corte dos EUA iria mutilar a lei, mas, mas o plano de aumento do número de juízes ganhou a opinião pública, e os membros da Corte recuaram.
Gina também pode abrir o próprio negócio. Sem ter que se preocupar com o preço da creche nem do plano de saúde, ela pode investir o seu dinheiro na realização de seus sonhos. E o custo da mão de obra para os empregadores – que não precisam mais gastar uma nota em planos de saúde empresariais – é baixo o suficiente para que ela possa pagar bons salários aos funcionários necessários para suprir a demanda da clientela.
Independentemente do caminho que escolher, Gina não vai trabalhar mais do que 40 horas semanais – talvez menos –, tendo tempo suficiente para viajar de trem (de alta velocidade e zero emissões de carbono), visitar amigos e passar uns dias na praia. Ela também terá tempo para almoçar com calma – com alimentos produzidos localmente – e ir ao parque ver shows de músicos financiados por generosos incentivos públicos à arte. Quando envelhecer, o plano de saúde dela não será um problema, pois todas as consultas, exames, medicamentos e cuidadores serão cobertos pelo sistema de saúde pública, e sua aposentadoria será suficiente para pagar aluguel, contas e opções de lazer até o fim da vida.
Esse é o futuro que o “New Deal Verde” pode trazer, e vários políticos e ativistas estão tentando fazer com que ele seja votado no Congresso dos EUA. Liderados pela deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, 17 congressistas já se mobilizaram para criar uma comissão especial cuja tarefa seria elaborar, no prazo de um ano, um abrangente plano de transição energética, que prevê o abandono dos combustíveis fósseis até 2030 e sete metas para a descarbonização da economia.
No dia 30 de novembro, Ocasio-Cortez e seus colaboradores se reuniram do lado de fora do Capitólio para falar sobre esse programa cada vez mais popular. “Não estamos fazendo campanha pelo New Deal Verde só por causa dos recursos naturais e dos empregos”, disse a deputada democrata Ayanna Pressley. “Nossa preocupação é com o nosso recurso mais precioso: pessoas, famílias, crianças, o nosso futuro. Queremos uma matriz energética 100% renovável e a eliminação dos gases do efeito estufa. Queremos garantir que nossas comunidades litorâneas tenham recursos e ferramentas para construir infraestruturas sustentáveis e lidar com o aumento do nível do mar, resistir a desastres naturais e mitigar os efeitos das temperaturas extremas”, explicou.
Na manhã do dia 3 de dezembro, o senador independente Bernie Sanders e Ocasio-Cortez organizaram uma audiência pública sobre o assunto dentro do Congresso.
Então fica a questão: o que seria exatamente o New Deal Verde?
Assim como o New Deal dos anos 1930, o New Deal Verde não é um conjunto específico de programas, e sim uma doutrina sob a qual diversas medidas podem ser implementadas, sejam elas estritamente técnicas ou politicamente transformadoras. Como o consenso científico vem deixando cada vez mais claro, o volume de transformações necessárias para enfrentar as mudanças climáticas é gigantesco, exigindo a mobilização de toda a economia – uma mobilização que não é vista nos EUA desde a Segunda Guerra Mundial. Embora a ideia de um novo New Deal evoque aqueles tempos, o desafio atual vai muito além da mera geração de empregos verdes e das velhas imagens de jovens arregaçando as mangas para trabalhar nas obras públicas dos Estados Unidos de Roosevelt. O New Deal Verde é muito mais amplo do que o antigo New Deal.
“Fala-se muito que é preciso investir em infraestrutura e novas tecnologias, mas também precisamos de um planejamento industrial para a criação de indústrias totalmente novas. É como o homem na Lua. Quando John Kennedy falou que os EUA iriam pisar na Lua, nada do que era necessário para realizar a viagem existia. Mas nós tentamos e conseguimos”, diz Saikat Chakrabarti, chefe de gabinete de Ocasio-Cortez. “O New Deal Verde envolve todos os setores. É basicamente um upgrade geral da economia”, acrescenta.
De maneira geral, isso é o que governantes de outros países chamam de “política industrial”, na qual o Estado desempenha o papel essencial de direcionar a economia para a realização de objetivos específicos. Isso não quer dizer que o governo controle todos os setores da economia, como no sistema soviético. Trata-se, em vez disso, de um tipo de planejamento econômico praticado pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e, atualmente, por muitas das maiores empresas do mundo. Se a iniciativa de Ocasio-Cortez der certo, a comissão especial vai reunir políticos, acadêmicos e representantes do setor privado e da sociedade civil para discutir quais serão os próximos passos. Resta saber qual será a abrangência do New Deal Verde definida pela comissão e se ela terá espaço para atuar dentro do Congresso – os parlamentares favoráveis à iniciativa se reuniram em Washington na semana passada para tentar incluir a comissão no regimento da próxima legislatura. Ou seja, o conteúdo exato do New Deal Verde dependerá dessa comissão. Porém, com base na proposta em si, na história americana e nas pesquisas atuais, podemos ter uma ideia do que ele pode significar na prática.
O plano em si – ou melhor, o plano do plano – estabelece sete metas, a começar pela atualização do sistema energético americano e a transição para uma geração de energia 100% renovável em solo americano.
Como indicam os dois primeiros itens da iniciativa, um dos maiores objetivos do New Deal Verde deve ser o aumento da participação da eletricidade na demanda de energia dos EUA, fazendo com que equipamentos baseados na queima de combustíveis fósseis – como sistemas de aquecimento, ar-condicionado e automóveis – passem a consumir energia elétrica. A Comissão de Transição Energética calcula que 60% da energia dos EUA terá que ser distribuída pela rede elétrica até a metade do século – muito mais do que os 20% atuais. Para que isso seja possível, é preciso desenvolver novas tecnologias e reformular a rede elétrica atual, permitindo que pessoas e empresas que geram a própria energia possam alimentar o sistema mais facilmente. Uma rede moderna – ou “inteligente”, nos termos da proposta de Ocasio-Cortez – também abriria caminho para microrredes, sistemas autossuficientes de energia renovável, como pequenos bairros ou hospitais, que podem continuar com acesso a eletricidade mesmo durante um apagão (no caso de um furacão ou um incêndio florestal, por exemplo). Partindo do pressuposto de que não seria viável importar todos esses equipamentos, investir em energias renováveis também significaria expandir a indústria manufatureira do setor para produzir mais infraestruturas solares e eólicas, cujos componentes atualmente vêm em grande parte do exterior.
“Fabricamos muita coisa aqui em Detroit e em Michigan. Temos muita gente capacitada para trabalhar na indústria que estão sendo prejudicadas pela ganância dos empresários. Nesta semana mesmo, ficamos sabendo que a GM, uma empresa que recebeu bilhões de dólares do contribuinte, está planejando fechar vários postos de trabalho aqui. Então é muito animador poder discutir a construção rápida de uma infraestrutura de energia renovável, pois são esses empregos que deveriam vir para nossos trabalhadores aqui em Michigan”, afirma Rashida Tlaib, deputada recém-eleita pelo Partido Democrata e uma das primeiras apoiadoras do New Deal Verde. “Nós éramos o ‘Arsenal da Democracia’. Ajudamos a salvar o mundo da escuridão décadas atrás, e não vejo por que não poderíamos ser um dos centros da infraestrutura verde dos EUA e salvar o mundo mais uma vez”, diz.
Para aumentar a geração de energia limpa, talvez seja preciso ampliar programas que já existem em nível estadual, mas que, via de regra, não são muito rigorosos. Certos estados já exigem uma participação mínima de energia solar ou eólica aos fornecedores de energia elétrica. Em Nova York, por exemplo, a meta para 2015 era de 29%. O prazo passou sem que a meta fosse respeitada, e pouco se falou de como se conseguiria atingir o objetivo seguinte: 50% até 2030.
Essas metas teriam que ser muito mais rigorosas para eliminar a dependência dos combustíveis fósseis até 2035. “Temos que chegar e falar: ‘Ou você atinge a meta e reduz suas emissões em 10% ao ano, ou vai para a cadeia’”, diz Robert Pollin, economista do Instituto de Pesquisa de Economia Política da Universidade de Massaschusetts Amherst. “Assim eles prestariam atenção”, acredita.
Isso pode parecer severo demais nos tempos atuais, mas não seria nada de novo em um país que já enfrentou outras ameaças à sua existência. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo era em grande medida responsável pela administração de preços, salários e abastecimento de setores estratégicos para os Aliados. A produtividade e os lucros dispararam com a demanda por petroleiros e munições, mas as empresas que se recusavam a cumprir as encomendas da Junta de Produção de Guerra e de outros órgãos de planejamento eram passíveis de intervenção federal. Um dos casos mais emblemáticos dessa mudança nas relações de poder foi o de Sewell Avery, presidente da Montgomery Ward. Durante a Segunda Guerra, essa empresa de vendas por correspondência produzia de tudo – de uniformes a munições – para as tropas americanas. Em 1944, a Junta de Trabalho de Guerra mandou que Avery, um simpatizante do nazismo, permitisse que seus funcionários se sindicalizassem para evitar uma greve e a consequente interrupção da produção. Quando ele recusou, o presidente Franklin D. Roosevelt ordenou que a Guarda Nacional o retirasse de seu escritório, com cadeira e tudo, e confiscou a principal fábrica da empresa, em Chicago. O governo assumiu as operações da Montgomery Ward em várias outras cidades até o fim do ano. No fim do conflito, cerca de um quarto das fábricas americanas haviam sido nacionalizadas em nome do esforço de guerra.
Os defensores do New Deal Verde não estão pedindo medidas assim tão drásticas, mas, dada a incompatibilidade da indústria de combustíveis fósseis com a nossa qualidade de vida futura, será preciso não só aumentar a geração de energia renovável como também restringir as fontes de energia suja. “Como a indústria dos combustíveis fósseis está ajudando a criar uma situação insustentável para bilhões de pessoas no mundo todo, o governo deveria intervir para colocá-la do lado dos perdedores, o que já aconteceu antes nos Estados Unidos”, diz Waleed Shahid, diretor de Comunicação do comitê de ação política progressista Justice Democrats, que apoia o New Deal Verde. Nesse sentido, uma das propostas da iniciativa é proibir a participação na comissão especial de políticos que aceitarem doações de empresas de carvão, petróleo e gás.
Em uma coletiva de imprensa convocada para anunciar novos partidários da iniciativa, Ocasio-Cortez foi categórica ao falar sobre os conflitos de interesse envolvidos na questão: “Se continuarmos permitindo que as grandes corporações tenham todo o poder de ditar a qualidade do nosso ar, (…) enganando-nos, dizendo que podemos continuar queimando combustíveis fósseis, pessoas vão morrer. E pessoas já estão morrendo”, alertou.
Evan Weber, do Movimento Sunrise, segue um raciocínio parecido. “Para enfrentar as mudanças climáticas de maneira eficaz, não basta implementar uma série de medidas para interromper as causas da mudança climática e preparar a sociedade para as mudanças já irreversíveis. Também é preciso mudar a nossa concepção do que é e a quem serve o governo”, acredita.
No governo Trump, principalmente, muitas medidas foram adotadas para favorecer a indústria de combustíveis fósseis. Segundo uma análise de 2018 da Oil Change International, o governo americano gasta cerca de US$ 20 bilhões anuais em subsídios diretos ou indiretos para essa indústria. As nações mais ricas do G7 gastam, juntas, cerca de US$ 100 bilhões. Isso não deixa de ser uma política industrial, e o New Deal Verde poderia ao menos redirecionar esses incentivos para o setor de energias limpas. A energia eólica e solar recebem subsídios muito menores através de incentivos fiscais à produção e ao investimento, respectivamente.
Como observa o texto da proposta de Ocasio-Cortez, outro ponto importante do New Deal Verde será o investimento em pesquisa, desenvolvimento e capacidade produtiva para possibilitar a transição energética de setores altamente dependentes de combustíveis poluentes – como a aviação e a siderurgia – nas próximas décadas. No caso da indústria do aço, seria preciso desenvolver um processo ainda experimental chamado eletrólise, e o governo poderia subsidiar as pesquisas do ramo. Na audiência pública organizada por Bernie Sanders, Ocasio-Cortez fez uma referência ao trabalho da economista Mariana Mazzucato, que defende investimentos públicos em pesquisas em estágio inicial cujos riscos afastam os fundos de capital privados. Ocasio-Cortez e membros da sua equipe já se encontraram com Mazzacuto.
“Já demos dinheiro demais à Tesla – e a muita gente –, mas esse investimento público em novas tecnologias não nos trouxe nenhum retorno. Essas tecnologias inovadoras foram financiadas com dinheiro público”, diz ela.
Além da descarbonização das atividades poluentes, outra coisa que pode caber na doutrina do New Deal Verde é o desenvolvimento de setores que já têm pouco impacto ambiental, mas que são essenciais para uma economia saudável, como o ensino e a enfermagem. Uma política federal de garantia de empregos, mencionada pelo texto da iniciativa e tema de debate entre os possíveis candidatos a presidente em 2020, pode oferecer trabalho na recuperação de pântanos ou em jardins comunitários como alternativa aos empregos de baixos salários de setores intensivos em carbono. O Walmart, por exemplo, é o maior empregador de 22 estados americanos, pagando um salário inicial de US$ 11 por hora. Estima-se que o McDonald’s, outro grande empregador, já tenha dado trabalho a 1 em cada 8 trabalhadores americanos, mas a empresa se recusa a instituir um salário mínimo de US$ 15. Um programa nacional de garantia de emprego acabaria criando, na prática, um piso salarial, obrigando redes de varejo e de fast-food a aumentar salários, sob risco de perder funcionários para projetos benéficos para as comunidades e voltados para a prevenção dos efeitos das mudanças climáticas.
Para os trabalhadores das indústrias extrativistas, cujos salários são mais altos graças a décadas de militância sindical, US$ 15 dólares por hora pode não ser muito atraente. Portanto, pode ser necessário financiar programas de transição para garantir o futuro da mão de obra de setores que precisam ser eliminados – como carvão, petróleo e gás – e diversificar a economia das comunidades dependentes dessas atividades. Recentemente, o governo social-democrata espanhol colocou em prática uma versão menor dessa ideia, investindo, com o apoio dos sindicatos, a quantia relativamente pequena de US$ 282 milhões para ajudar os operários do carvão na transição para outros setores antes de fechar as últimas minas do país.
Com os investimentos certos, não será difícil gerar novos empregos. Segundo uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho, uma transição controlada para energias renováveis poderia acabar com até 6 milhões de empregos nos setores intensivos em carbono no mundo, mas também gerar outros 24 milhões de postos de trabalho – um saldo positivo de 18 milhões –, além de evitar os piores efeitos das mudanças climáticas sobre o mercado de trabalho.
Não é difícil imaginar republicanos e democratas vociferando contra os custos de tal programa e os riscos de explosão do déficit do Estado. Mas isso não seria nada comparado aos custos de não fazer nada, prognosticados por 13 órgãos federais em um relatório sobre as consequências das mudanças climáticas nos EUA, divulgado na sexta-feira de Ação de Graças. Até 2100, as mortes ligadas ao aumento da temperatura podem custar US$ 141 bilhões aos EUA; o aumento do nível do mar pode causar um rombo de US$ 118 bilhões, e os danos infraestruturais podem chegar a US$ 32 bilhões. Segundo os autores do relatório, as mudanças climáticas podem resultar em perdas financeiras duas vezes mais severas do que as causadas pela Grande Recessão do fim da década passada.
Robert Pollin diz que o New Deal Verde pode custar de 1 a 2% do PIB americano, uma ninharia se comparado ao desastre econômico previsto acima, sem contar o aumento da arrecadação fiscal e do consumo ocasionado pela criação de milhões de novos postos de trabalho. Pollin chama isso de “crescimento verde equitativo”, aliado a um “decrescimento total da indústria de combustíveis fósseis”. Além do mais, as fontes de combustível atuais – particularmente o carvão – não estão fazendo ninguém economizar dinheiro. Uma análise recente do grupo Carbon Tracker revelou que 42% da capacidade instalada mundial de geração elétrica a carvão já não é rentável, uma cifra que pode chegar a 72% até 2030.
“A questão é que política implementar para aumentar o investimento público e incentivar o privado? Não basta apenas ter programas de incentivo ao setor privado. Não é o suficiente”, diz Pollin.
Como observado por vários defensores da proposta, custos são raramente um problema quando se trata de defender os interesses nacionais, seja para sair de uma recessão ou empreender uma guerra. “Se o país fosse ameaçado por um invasor, mobilizaríamos todos os recursos à disposição para nos defender”, diz a economista britânica Ann Pettifor. “E nessas circunstâncias não podemos depender apenas do setor privado”, completa.
Pettifor foi uma das primeiras a pensar seriamente em um New Deal Verde logo depois da crise financeira. Na época, ela trabalhava na New Economics Foundation, um think tank progressista, e ajudou a organizar uma série de reuniões na sala de sua casa que acabaria dando origem ao Green New Deal Group. O grupo produziu vários relatórios sobre o tema, mas, como a crise da dívida pública empurrou os governos europeus para a histeria da austeridade, não havia espaço para discutir um grande pacote de expansão de gastos como aquele. A eleição de Jeremy Corbyn para a liderança do Partido Trabalhista britânico ajudou a mudar isso. E foi no último mês de março que Chakrabarti, que então trabalhava na campanha de Ocasio-Cortez, apareceu na casa dela querendo saber mais sobre o New Deal Verde.
Pettifor, assim como muitos defensores do New Deal Verde nos EUA, acha que a questão do financiamento depende mais da reconfiguração dos objetivos econômicos do país do que de encontrar espaço no orçamento para diferentes projetos. Em outras palavras, a solução não é simplesmente fazer o PIB crescer a uma determinada taxa todo ano.
A obsessão de economistas e governantes com o crescimento ilimitado como medida da prosperidade econômica é uma invenção recente, oriunda em grande parte dos retornos cada vez maiores do setor financeiro. “Se eu trabalho duro noite e dia, ganho um salário semanal. Se vou ao cassino e ganho muito dinheiro, fico rico rápido. Então essa passou a ser a prioridade do setor financeiro, em vez de investir na atividade produtiva”, explica a economista. Essa fixação com o crescimento acima de tudo substituiu o foco no pleno emprego dos anos 1960, e o objetivo da economia passou a ser multiplicar o lucro e o consumo em vez de cobrir as necessidades básicas das pessoas. Como resultado, as emissões de carbono dispararam.
É por isso que Pettifor rejeita a premissa dos debates entre ambientalistas sobre crescimento e decrescimento. Para a economista, o movimento verde falar de crescimento é “aceitar a visão da OCDE sobre como a economia deve ser” e “adotar um ponto de vista neoliberal sobre a economia”. Ela prefere priorizar o pleno emprego.
Isso não quer dizer que certas questões orçamentárias básicas não possam ser facilmente resolvidas. Diferentemente dos governos estaduais, que dependem em grande medida de receitas fiscais, o governo federal dos EUA tem várias ferramentas à sua disposição para financiar o New Deal Verde – ferramentas essas que foram muito eficazes contra a crise financeira. O governo pode criar um banco nacional de investimentos para abrir linhas de crédito para o investimento verde. Um imposto sobre poluentes – ou taxa de carbono – também poderia gerar alguma receita, mas serviria principalmente para punir desvios do setor de energia. Garantias de financiamento como as oferecidas pelo pacote de estímulo de 2009 poderiam ajudar a geração de energia limpa, como já acontecia antes de os republicanos assumirem o controle da Câmara em 2010. (Embora a Solyndra, a mais infame beneficiária daqueles empréstimos, tenha ido à falência, em geral o programa teve um retorno de investimentos maior do que o da maioria dos fundos de capital de risco.)
Em um artigo assinado por Greg Carlock – autor de um relatório sobre o New Deal Verde encomendado por um novo think tank chamado Data for Progress – Andres Bernal, assessor de Ocasio-Cortez, e Stephanie Kelton, ex-economista-chefe da Comissão do Orçamento do Senado dos EUA, os autores explicam: “Quando o Congresso autoriza um gasto, isso dá início a uma série de procedimentos. Órgãos federais (…) assinam contratos e dá-se início ao projeto. Então o Banco Central dos EUA paga as contas com transações digitais diretamente para a conta dos fornecedores. Em outras palavras, o Congresso pode aprovar qualquer orçamento, que o governo vai pagar de qualquer maneira”.
Além do mais, um New Deal Verde “vai ajudar a economia estimulando a produtividade, a geração de empregos e o consumo, como os gastos do governo sempre fizeram. O New Deal Verde pode criar empregos com bons salários e ao mesmo tempo resolver nossas desigualdades econômicas e ambientais”, acrescentam os autores.
Os partidários do New Deal Verde sabem que o New Deal original era falho no que diz respeito às desigualdades, tendo deixado intocadas as leis de segregação racial. “Foi uma traição contra negros e pardos”, diz Chakrabarti, lembrando que Roosevelt abandonou sua plataforma de defesa dos direitos civis para conseguir o apoio dos supremacistas brancos do Partido Democrata dos estados do Sul. Um dos exemplos mais infames dessa dinâmica foi a Federal Housing Administration (FHA, a agência federal de habitação dos EUA), que garantia financiamentos para a compra da casa própria e subsidiava grandes projetos habitacionais para brancos, mas apenas se negros não pudessem morar neles. Recusava-se crédito a negros que solicitassem financiamentos em bairros predominantemente brancos. Foi assim que surgiu o termo “redlining”, em referência aos mapas de planejamento da época do New Deal, onde as áreas que podiam ou não receber financiamento eram demarcadas com uma linha vermelha.
“Desde o início, temos tentado consertar as injustiças praticadas contra as comunidades negras e pardas”, diz Chakrabarti sobre o New Deal Verde. “Se não investirmos nas comunidades cujas riquezas foram subtraídas durante gerações inteiras, vai ser muito difícil que as comunidades com histórico de segregação possam prosperar economicamente”, avisa.
Os vestígios da discriminação da FHA vão dificultar a transição, mas precisam ser superados para que o novo New Deal dê certo. Cidades mais compactas e munidas de bons transportes públicos são mais sustentáveis do que um modelo centrado em carros particulares, como é o caso do sistema de subúrbios espalhados ao redor das metrópoles, resultado de planos de desenvolvimento de meados do século passado, políticas segregacionistas e do medo da miscigenação. Apesar disso, o mercado da energia solar está mais voltado a instalações em telhados, o que cria uma barreira para quem mora em prédios de apartamentos, que têm menos vantagens para a instalação de painéis solares. A Autoridade de Habitação da Cidade de Nova York (NYCHA, na sigla em inglês), responsável por cerca de um quinto das unidades de habitação de interesse social dos EUA, poderia ser um modelo para a reformulação da política habitacional do país, mas enfrenta atualmente uma dívida de US$ 17 bilhões e seus imóveis precisam urgentemente de reparos e modernizações.
Como destaca o sociólogo Daniel Aldana Cohen, a densidade por si só não faz uma cidade ser mais ecológica. Embora se gabem de comprar comida orgânica e viajar de trem, os moradores de prédios de luxo – com seus produtos importados, casas de veraneio e voos em primeira classe – têm a maior pegada de carbono dos centros urbanos, que por sua vez são responsáveis por cerca de três quartos das emissões mundiais de carbono. “Manhattan, por ser o distrito mais rico de Nova York, é a campeã da cidade no quesito emissões de carbono relacionadas ao consumo”, escreve Cohen. A pegada de carbono dos ricos do West Village é equivalente à dos subúrbios de todo o país, apesar da densidade do bairro”, compara. Além de Manhattan, a Oxfam International descobriu que os 10% mais ricos do planeta são responsáveis por cerca da metade das emissões mundiais de carbono. “Apenas os moradores das áreas menos valorizadas de Manhattan têm uma pegada de carbono pequena”, continua Cohen. “Essas pessoas moram no noroeste e no sudeste da ilha, áreas de forte presença de habitações sociais. (…) Habitação de interesse social, boas bibliotecas, transportes acessíveis, parques exuberantes: essas comodidades são democráticas e de baixo impacto ambiental. E são uma conquista política da classe trabalhadora nova-iorquina”, escreve.
Moradias densas e acessíveis são fundamentais para diminuir o impacto ambiental das cidades. E, com os investimentos certos, a NYCHA poderia reduzir três quartos ou mais de suas emissões de carbono, “aproveitando o processo de renovação para limpar o mofo, aumentar a superfície verde da cidade e consertar rachaduras e fendas que hoje são um prato cheio para pragas. Com essas e outras medidas, as moradias pelas quais a NYCHA é responsável poderiam constituir a maior – embora descentralizada – cidade verde do mundo”, acrescenta Cohen. O New Deal Verde poderia incentivar melhorias similares em outros municípios do país, deixando as cidades mais verdes, mais igualitárias e com uma qualidade de vida infinitamente maior.
Além de retificar alguns dos problemas do New Deal original, os defensores da nova edição do programa também priorizam as pessoas que mais podem ser prejudicadas tanto pelas políticas climáticas quanto pela própria crise ambiental. “Sabemos que, para podermos enfrentar os próximos anos e décadas, precisaremos de um governo que se importe com as pessoas, um governo do povo e para o povo, que proteja os mais marginalizados”, diz Evan Weber, do Movimento Sunrise. “Em um cenário de desastres naturais e de aumento da migração devido às mudanças climáticas, precisamos de uma abordagem mais humanitária do que a do governo atual, que só quer construir muros e trancar seres humanos em jaulas”, afirma.
Nas próximas décadas, as mudanças climáticas podem produzir as maiores ondas migratórias da história da humanidade, tanto internas quanto externas. O Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos já estima em 21,5 milhões o número de pessoas obrigadas a migrar devido a questões climáticas. A guerra civil na Síria, que obrigou muita gente a abandonar o país, se deve em parte a secas causadas pela mudança climática e a uma crise agrícola. A maioria dos governos dos países desenvolvidos têm tratado esse fluxo migratório como um problema. Mas o New Deal Verde poderia ter uma abordagem diferente.
“Vamos precisar de dezenas ou centenas de milhares de trabalhadores”, diz Chakrabarti, que acredita numa possível escassez de mão de obra. “Como resultado, além de investirmos na mão de obra americana já existente, provavelmente teremos que implorar por mais imigrantes”, afirma. Sua previsão se baseia no número de trabalhadores que foram necessários para construir o sistema de estradas interestaduais nos anos 1950. “Não só tínhamos uma política de imigração aberta como também estávamos recrutando trabalhadores no exterior”, lembra. O pai de Chakrabarti imigrou para os EUA depois de visitar um centro de recrutamento em Bengala Ocidental. “Eles falavam sobre o sonho americano para tentar atrair as pessoas para os EUA, para que elas ajudassem a construir o país”, conta.
Embora a questão da imigração esteja em voga, a mudança climática não conhece fronteiras. Os EUA respondem por cerca de 15% das emissões globais de carbono, então não chegaremos muito longe agindo sozinhos. O carvão está em declínio na América do Norte, mas a Ásia é responsável por cerca de três quartos do consumo mundial desse combustível, e a demanda vem aumentando nos últimos dois anos. A China tem o mais ambicioso plano de investimentos verdes do mundo, mas continua financiando usinas a carvão em seu próprio território e nos países em desenvolvimento, incentivando outras nações a usarem um combustível que o consenso científico insiste em dizer que deveria ser eliminado. A iniciativa de Ocasio-Cortez faz alusão a esse problema, propondo transformar as “tecnologias, indústrias, know-how e serviços verdes em um produto de exportação americano, com o objetivo de fazer dos EUA o líder mundial absoluto na transição para economias neutras em carbono e na internacionalização do New Deal Verde”.
Além de transformar os EUA em um grande exportador de energia limpa – em vez de vender petróleo, por exemplo –, o capital americano também pode abrir um caminho para o desenvolvimento de outros países, baseado em energias renováveis, da mesma forma que o Plano Marshall norteou a reconstrução e o desenvolvimento econômicos do pós-guerra. Essa política não seria tão diferente da postura americana atual – o governo Trump afirma constantemente que gostaria de levar o carvão para o resto do mundo, inclusive na Conferência do Clima da ONU, em Bonn, na Alemanha, o que deve se repetir esse ano na COP 24. Mas, para levar o New Deal Verde para além das fronteiras americanas, também seria preciso acabar com a tradição americana de obstruir as conferências internacionais sobre o clima, boicotando projetos e resoluções vinculantes. Como Naomi Klein destacou na semana retrasada, se os EUA começarem a levar a crise climática a sério – colocando em prática, na maior economia mundial, o plano de descarbonização mais ambicioso do planeta –, seremos uma influência positiva para o resto do mundo, que vem tentando encontrar um caminho para atingir as metas do Acordo de Paris.
E tudo isso é apenas a ponta do iceberg. Eis uma breve e não exaustiva lista de outras questões que podem ser incluídas em um New Deal Verde: políticas agrícolas; reforma do Programa Nacional de Seguro contra Inundações e o desenvolvimento de um plano coerente de reassentamento de comunidades litorâneas; soberania dos direitos de propriedade indígena; garantia da participação democrática no planejamento energético e o fim das desapropriações; renda básica universal; prevenção e combate a incêndios florestais; política comercial; construção de infraestruturas de captura de carbono; garantia de banda larga sem fio a todas as comunidades rurais; extração de terras raras e outros minérios; reformulação de Agência Federal de Gestão de Emergências; reforma do financiamento de campanha; universalização do Medicare, etc.
É claro que o New Deal Verde vai enfrentar uma forte oposição no Congresso americano. Além das críticas quanto à sua viabilidade, segundo Weber, a resistência de outros democratas se deve a questões processuais internas da Casa. Ele diz que alguns deputados temem que, se a comissão especial obtiver o poder de redigir leis, a autoridade de outras comissões seja reduzida. De acordo com Weber, a iniciativa de Ocasio-Cortez não impede que qualquer lei proposta pela comissão especial passe por outras instâncias antes de ser votada. Ele acrescenta: “Precisamos de uma comissão que vá além do foco específico das comissões que já existem. Estamos falando de um programa que afeta todos os aspectos da sociedade. O Congresso precisa criar uma comissão especial que englobe todas as questões tratadas pelas comissões já existentes. Se quisermos levar as mudanças climáticas a sério, é exatamente isso de que precisamos.”
Entrei em contato com vários parlamentares recém-eleitos que falaram em lutar contra as mudanças climáticas durante a campanha, mas que ainda não deram seu apoio ao New Deal Verde. Quis saber qual é a posição deles sobre o assunto, mas por enquanto ninguém respondeu. Mas um deles, o democrata Mike Levin, anunciou seu apoio na semana retrasada.
Nos próximos dias e semanas, os deputados democratas devem divulgar a primeira versão do regimento do próximo Congresso, e os defensores do New Deal Verde esperam que a comissão especial seja incluída no documento. “Aconteça o que acontecer, o mais importante é que tenhamos uma mobilização em defesa dessa pauta”, diz Chakrabarti. “O movimento precisa continuar fazendo pressão e planejando como alcançar seus objetivos. Se não conseguirmos a comissão, caberá a nós pensar em como chegar lá”, afirma.
Tradução: Bernardo Tonasse
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