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Nos EUA, ideias perdem espaço para o personalismo no Partido Democrata

A preocupação com questões identitárias e líderes carismáticos pode custar caro aos Democratas nas próximas eleições americanas.

O ex-deputado Beto O’Rourke, candidato democrata ao Senado dos EUA, discursa em um comício em Austin, no Texas, que contou com a participação do cantor Willie Nelson, no dia 29 de setembro de 2018.

O ex-deputado Beto O’Rourke, candidato democrata ao Senado dos EUA, discursa em um comício em Austin, no Texas, que contou com a participação do cantor Willie Nelson, no dia 29 de setembro de 2018.

O ex-deputado Beto O’Rourke, candidato democrata ao Senado dos EUA, discursa em um comício em Austin, no Texas, que contou com a participação do cantor Willie Nelson, no dia 29 de setembro de 2018.

Foto: Bill Clark/CQ Roll Call/AP

Pouco antes da virada de ano, Steve Phillips, especialista do think tank progressista Center for American Progress (CAP), decidiu lançar um “Super PAC” (comitê de arrecadação de campanha) para apoiar a candidatura antecipada do senador Cory Booker à presidência dos EUA em 2020. O anúncio gerou preocupação no campo progressista em um momento de desconfiança do eleitorado com relação a grandes doações de campanha. E isso parece indicar que a ideologia está deixando de ser uma prioridade para os políticos democratas, o que é ainda mais grave.

Vou explicar.

O olhar de Phillips sobre a política é predominantemente identitário. Ele é o autor do livro “Brown is the New White” (“O Pardo é o Novo Branco”, em tradução livre), um best-seller sobre a importância de uma crescente população não branca para o sucesso do Partido Democrata. Phillips acredita que os democratas deveriam priorizar a mobilização de americanos não brancos que não costumam comparecer às urnas (o que também é importante fazer). Mas ele também diz que os progressistas não deveriam “desperdiçar dinheiro” com campanhas voltadas para aquela parte eleitorado branco sem uma tendência fixa de voto, desprezando a “ideia convencional” de que seria preciso “empatia com a angústia dos eleitores brancos moderados”. Segundo Phillips, o apoio do eleitorado branco teria um “teto”, e, por conta disso, tentar atrair essa parcela da sociedade seria um investimento com retornos decrescentes.

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Como já sabemos, a estratégia identitária não deu certo nas eleições presidenciais de 2016. Se havia um “teto” de votos do eleitorado branco, estabelecido por Obama, Hillary não o alcançou – apenas 75% dos brancos que votaram no ex-presidente votaram nela. Se tivesse tido o mesmo sucesso de Obama junto ao eleitorado branco, Clinton teria vencido. Portanto, não faz sentido classificar de “desperdício” o fortalecimento da chamada “coalizão de Obama” (mobilização de eleitores brancos e não brancos que levou o democrata à presidência).

Embora se fale muito da “pardização” dos Estados Unidos, o país ainda é 70% branco, e adotar qualquer estratégia eleitoral que ignore essa população é colocar a si mesmo em desvantagem, e sem necessidade. A “pardização” dos EUA é atribuída em grande parte aos latinos, o grupo étnico que mais cresce no país. Mas a maioria dos latinos se identifica como branca, e um terço continua apoiando Donald Trump, apesar de sua retórica nacionalista e anti-imigração.

Os americanos precisam de uma motivação para comparecer às urnas. Eles querem sentir que seu voto faz diferença. Não basta ser anti-Trump. É preciso mobilizá-los com ideias.

E, mesmo se os latinos não se considerassem brancos, a melanina não é garantia de voto democrata. Dos 4,3 milhões de eleitores de Obama que ficaram em casa ou votaram em outros candidatos em 2016, um terço eram negros. Portanto, não basta garantir o acesso de todos às listas de votação. Os americanos precisam de uma motivação para comparecer às urnas. Eles querem sentir que seu voto faz diferença. Não basta ser anti-Trump. É preciso mobilizá-los com ideias.

Apesar disso, depois de 2016, muitos democratas influentes se recusaram a compreender que a inércia ideológica de seu partido foi uma das causas da vitória de Trump. Boa parte deles, talvez por instinto de defesa, limitam-se a culpar a retórica intolerante do republicano e à interferência russa pela derrota. E essa tendência chegou a níveis absurdos recentemente.

No mês passado, três artigos foram publicados com críticas à atividade parlamentar do ex-deputado democrata Beto O’Rourke. Esse “ataque” dos grupos mais à esquerda do campo progressista, representada pelo senador Bernie Sanders, foi considerado injusto por muitos ativistas nas redes sociais, como a blogueira feminista Amanda Marcotte. Para ela, a popularidade daquele senador franco e reservado se deve a seu carisma, e não a suas ideias políticas. “Tudo indica que Sanders foi bem nas primárias não por causa de suas posições progressistas, mas porque os eleitores se sentiram atraídos por sua figura carismática de homem branco e outsider”, tuitou. Segundo Marcotte, já que ser carismático e branco bastou para Sanders conquistar o eleitorado, O’Rourke seria uma opção ainda melhor e mais jovem. “Beto tem muito mais chances do que Bernie em 2020”, escreveu.

O jornalista Jamil Smith também deixou as ideias de lado para explicar de forma simplista a popularidade de Sanders. “Boa parte do apoio de Bernie vem de homens brancos que não querem votar em uma mulher”, escreveu. Segundo ele, O’Rourke poderia ser o novo candidato desses eleitores.

Mas a verdade é que o eleitorado de Sanders é o menos preconceituoso contra negros, segundo uma pesquisa que comparou as tendências racistas dos eleitores em 2016 – fato que foi ignorado por grande parte da imprensa, apesar da ampla difusão da pesquisa na mídia. Sanders também conta com a maior taxa de aprovação entre não brancos de todos os possíveis candidatos à presidência em 2020. Ignorando o longo histórico de Sanders de combate ao racismo – de sua participação nos protestos pelos direitos dos negros nos anos 1960 ao seu projeto de reforma do sistema de fiança dos EUA –, Jamil Smith se baseia no fato de que 10% dos eleitores de Sanders votaram em Trump para associar sua popularidade ao racismo. Porém, em 2008, os eleitores de Hillary Clinton tinham 2,5 mais chances de votar em John McCain – um político que disse odiar gooks (termo pejorativo para asiáticos) – do que no primeiro presidente negro. Mas isso não costuma ser usado para acusar os partidários de Clinton de racismo.

Tanto o argumento de Smith quanto o de Marcotte – tão maliciosos que cheiram a manipulação – são um exemplo da tendência atual de dissociar as preferências do eleitorado da ideologia de seus candidatos. Proposital ou não, o resultado é o enfraquecimento do poder evidente que as ideias têm. Se a popularidade de Sanders for reduzida ao seu carisma pessoal, ele poderá ser facilmente substituído por um candidato mais jovem e cativante, porém mais favorável aos interesses do grande capital. Se o seu sucesso eleitoral for associado ao racismo e ao machismo, sua posição política poderá ser desconsiderada por não passar do fruto da árvore venenosa do preconceito, e outros candidatos com uma maior diversidade de seguidores poderão virar símbolos da luta contra o racismo – embora tenham uma atuação contrária aos interesses dos americanos de cor.

Como observou Peter Beinart em um artigo publicado recentemente na revista The Atlantic, “a melhor chance dos democratas que não querem purgar as grandes corporações do partido pode ser um candidato com ideias econômicas menos radicais e com amplo apoio do eleitorado negro e latino. Booker pode ser essa pessoa. Ou então Kamala Harris ou O’Rourke. É por isso que conflitos como o de Neera Tanden, do Center for American Progress, contra os partidários de Bernie Sanders devem se intensificar nos próximos 18 meses”, escreveu.

Os americanos concordam que o sistema está viciado, que as instituições não estão fazendo o que se espera delas, e que o sonho americano, já inacessível para muitos devido ao preconceito estrutural, está ficando cada vez mais inalcançável.

Mas existe um porém: a maioria dos americanos quer de fato limitar a influência das grandes corporações.

Em um país cada vez mais polarizado, os americanos concordam que o sistema está viciado, que as instituições não estão fazendo o que se espera delas, e que o sonho americano, já inacessível para muitos devido ao preconceito estrutural, está ficando cada vez mais inalcançável – inclusive para homens brancos, o segmento da população mais beneficiado historicamente.

Eu diria que a grande divisão dos EUA nas eleições de 2020 não será entre vermelho e azul, Norte e Sul ou litoral e interior, e sim entre insider e outsider – ou, nas palavras da deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, entre os “de baixo” e os “de cima”. A popularidade de Trump e Sanders – e talvez a de Obama em 2008 – indica que a verdadeira maioria silenciosa do eleitorado americano é essa população aflita. Se os democratas a ignorarem, Trump vai continuar alimentando seus anseios com mais nacionalismo e intolerância. O Partido Democrata precisa falar mais claramente dos problemas desses americanos. A resposta para “eles estão tomando os nossos empregos” é o New Deal Verde, e não “os Estados Unidos já são grandes”.

Mas isso vai de encontro aos interesses de muitos militantes de ambos os partidos.

Organizações como a Third Way, um think tank centrista fundado em 2005 que defende políticas econômicas de centro-direita e políticas sociais de centro-esquerda, estão na vanguarda do combate às ideias como ferramenta de organização política. Em 2017, o grupo organizou uma viagem de ônibus através de 23 cidades – um verdadeiro safári pelo interior dos EUA – para coletar dados empíricos sobre as razões da vitória de Trump. A conclusão da Third Way foi que os eleitores queriam moderação e pragmatismo na política. Contudo, segundo Molly Ball, uma jornalista da The Atlantic que cobriu a iniciativa, não foi bem isso que as pessoas entrevistadas disseram. “Essas ideias centristas apenas perpetuam um sistema falido”, afirmou o dono de uma cafeteria do Wisconsin.

Recentemente, a Third Way afirmou no Twitter que as “ideias [de Sanders] foram esmagadas nas eleições de meio mandato”, que “os democratas devem dizer não” a critérios ideológicos na escolha de seus candidatos. Mais importante do que isso seria pertencer ou não ao Partido Democrata.

Na quinta-feira passada, a campanha anti-ideologia continuou com um editorial do “Washington Post” assinado por Terry McAuliffe, ex-governador da Virgínia, presidente do Comitê Nacional Democrata e ligado aos Clintons. Segundo ele, seguir o caminho do “populismo ideológico” é “jogar o jogo de Trump” enquanto os eleitores querem “soluções realistas”. Uma política federal de garantia de emprego, diz o ex-governador, “é boa demais para ser verdade”, assim como o acesso universal ao ensino superior gratuito. O “Medicare para Todos” de Sanders não foi sequer mencionado no artigo. McAuliffe preferiu falar em ampliar o Affordable Care Act, conhecido como Obamacare, e reduzir os preços dos medicamentos. Apesar disso, 70% dos americanos – inclusive pouco mais da metade dos eleitores republicanos – são a favor do “Medicare para Todos”, e 60% também apoiam a gratuidade do ensino universitário. Por fim, segundo uma pesquisa publicada em abril de 2018, quase metade dos americanos concorda com uma garantia federal de emprego.

O verdadeiro pragmatismo está nas ideias progressistas.

Esses números indicam que o verdadeiro pragmatismo está nas ideias progressistas, e é isso que explica – muito mais do que o “carisma” de Sanders – por que tantos presidenciáveis como Cory Booker, Kamala Harris e a senadora Kirsten Gillibrand deram uma guinada à esquerda nos últimos anos. Os eleitores também têm consciência de que projetos políticos podem ser prejudicados por interesses econômicos, e talvez seja por isso que esses pré-candidatos se comprometeram a não receber doações de grandes empresas.

A ala de centro-esquerda do Partido Democrata também se recusa a enxergar essa realidade. Quando O’Rourke foi criticado por descumprir sua promessa de não receber doações de empresas do ramo de combustíveis fósseis e por votar com a maioria conservadora em pautas favoráveis aos interesses do setor –,  esses questionamentos foram vistos como uma tentativa de preservar o lugar privilegiado de Sanders na vanguarda do campo progressista. Em vez de refletir sobre quais deveriam ser os valores do Partido Democrata, prefere-se a ideia míope de que a ambiguidade ideológica seria um trunfo eleitoral.

Mas são precisamente as ideias claras e ousadas que mobilizam os americanos. Vejamos o exemplo de Ocasio-Cortez, uma socialista cuja popularidade nas redes sociais é de fazer inveja a qualquer político. Durante as férias de fim de ano, O’Rourke, Gillibrand, Harris e a senadora Elizabeth Warren tentaram copiar o sucesso das live streams noturnas de Ocasio-Cortez, nas quais ela fala sobre política enquanto prepara o jantar. Mas nenhum deles conseguiu. O que esses políticos não entendem é que o segredo de Ocasio-Cortez não é o meio, e sim a mensagem.

Ocasio-Cortez sabe – mais do que muitos especialistas – que sua vitória e subsequente popularidade não podem ser atribuídas apenas ao seu carisma e a segmentos específicos da população. Em uma indireta no Twitter, ela deu a dica: “Algumas sugestões de temas para gerar audiência nas redes sociais: ‘Medicare para Todos’, ‘Wall Street deve pagar por seus erros’, ‘Salário mínimo digno’ (…), ‘Garantia federal de emprego’, ‘Perdão da dívida estudantil’, ‘Legalização da maconha’, ‘Compensação pela escravidão’, ‘Transferência de renda’”.

Ocasio-Cortez é uma verdadeira fábrica de bandeiras progressistas.

Enquanto a Third Way critica o compromisso com causas ideológicas, Ocasio-Cortez é uma verdadeira fábrica de bandeiras progressistas. Ao falar abertamente sobre suas ideias no Instagram ou no Twitter, ela mostra transparência para um eleitorado habituado à prudência conservadora dos políticos tradicionais. Ela não está brincando de cozinhar na internet. Ela está mobilizando as pessoas.

Infelizmente, o Partido Democrata ainda não se deu conta disso.

Para muitos democratas, há pouca diferença entre Sanders e outros presidenciáveis como O’Rourke. Em uma entrevista recente para a NBC, Jon Favreau, ex-redator de discursos de Obama, descreveu O’Rourke, Sanders, Harris e outros candidatos em potencial como igualmente “progressistas”. A presidente do Center for American Progress, Neera Tanden, franze o cenho quando ouve que a ala ligada a Sanders representa uma corrente ideológica diferente da sua. “O que você está dizendo? Não é você que define quem é ou não progressista”, tuitou ela em resposta a um jornalista que afirmara que o CAP empurra o Partido Democrata para a direita.

Embora seja verdade que ninguém tem autoridade para determinar quem é progressista, essa palavra perde o sentido quando aplicada indiscriminadamente a um grupo de pessoas ideologicamente diverso – como fazem Tanden e Favreau.

Tanden, por exemplo, considera Hillary Clinton e Justin Trudeau como progressistas, apesar das políticas centristas do primeiro-ministro canadense e da relutância de Clinton em apoiar medidas como um sistema público de saúde e o salário mínimo de 15 dólares por hora. O CAP se identifica como “progressista”, mas nem a organização em si nem o presidente do conselho da instituição, o ex-líder da maioria democrata Tom Daschle, manifestaram apoio ao “Medicare para Todos” – embora Daschle tenha dito no passado que o financiamento público da saúde era “inevitável”. Daschle é lobista do setor de planos de saúde e pode ser nomeado para liderar uma campanha bipartidária financiada pela indústria farmacêutica contra o “Medicare para Todos”. Será essa a cara do progressismo?

Adam Serwer, jornalista da The Atlantic, tuitou recentemente, em referência a Beto O’Rourke: “Não é irracional nem superficial procurar um candidato cuja maior força não esteja nas suas ideias.”

Não, apoiar um candidato por motivos outros que não suas ideias – seus projetos políticos declarados – é superficial por definição. E também não é nada lógico, visto os benefícios eleitorais de ser autêntico e transparente. Esta é uma lição que temos que aprender logo. Já estamos em 2019, afinal.

Tradução: Bernardo Tonasse

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