Na noite de terça-feira (8), o presidente dos EUA, Donald Trump, usou seu primeiro pronunciamento na Salão Oval para falar à nação sobre uma “crise do coração, uma crise da alma” na fronteira do sul do país. A solução que Trump propõe é um “muro”, e ele está ameaçando manter o governo paralisado até obter os mais de 5 bilhões de dólares necessários para construí-lo. Ele talvez esteja certo quando diz que há uma crise. Só que não é a da sua imaginação delirante, mas o oposto: o problema são as políticas do sistema de imigração americano e os poderosos – inclusive o próprio Trump – que pressionam para aprofundar os piores excessos da legislação. Nunca se resolveu uma “crise do coração” com barras de aço. O “muro” só irá piorar a situação.
Nunca se resolveu uma “crise do coração” com barras de aço. O “muro” só irá piorar a situação.
Quando Trump usa palavra “muro”, no entanto, ele não o faz no sentido mais comum do termo, de uma estrutura sólida e impenetrável. O que ele tem em mente é uma cerca, ou talvez de barras de aço. Ou quem sabe algum dos protótipos apresentados no primeiro semestre, impossíveis de construir e provavelmente ineficazes, ainda que nem um metro de muro desse tipo já tenha sido construído. E, no entanto, quando Trump fala do “muro”, quer dizer tantas outras coisas. Ele se fala da crescente militarização da região de fronteira. Ele fala do aumento do efetivo da Patrulha de Fronteira, a maior agência com poder de polícia nos EUA, e também a menos transparente, mais cara, e possivelmente menos passível de responsabilização. Ele fala do crescimento dos equipamentos militares, tais como drones, helicópteros, sensores de solo, barcos e quadriciclos que causam danos ambientais e emocionais ao longo da fronteira entre os EUA e o México. “Muro” também significa a desapropriação de terras e fazendas particulares pelo governo americano, com base na legislação aplicável.
O “muro”, esse conceito vagamente nacionalista que Trump transformou em sua marca registrada, se estende bastante pelo interior dos Estados Unidos. Significa a caça às pessoas sem documentos por todo o país, perseguindo-as nos tribunais, nas portas das escolas, arrancando-as de suas casas e expulsando-as do país, ou criando postos de controle internos onde agentes da Patrulha de Fronteira ameaçam pessoas, muitas vezes cidadãos americanos. O “muro” significa gastar mais dinheiro no imenso complexo de detenção de imigrantes, onde cerca de 45 mil pessoas, em média, permanecem detidas. Bilhões de dólares dos contribuintes são injetados nas instalações prisionais com fins lucrativos.
O clamor de Trump por um “muro”, portanto, é, como escreveu numa nota à imprensa Ana María Archila, da organização Center for Popular Democracy [Centro da Democracia Popular], o “mais recente em uma série de ataques racistas e anti-imigrantes com o objetivo de incentivar o ódio”.
Algumas vezes, porém, “muro” realmente significa um muro – já existem mais de mil quilômetros de barreiras de tipos diversos na fronteira internacional entre os EUA e o México. Mas nós não precisamos disso. A crise de imigração é de fabricação própria, e as outras justificativas de Trump para o “muro” não se sustentam diante de uma análise criteriosa.
Em seu discurso na terça-feira, Trump se concentrou intensamente no tráfico internacional de drogas. A maior parte das drogas, porém – inclusive a heroína, quando não é fabricada internamente – entra no país pelas portas de entrada oficiais, que não seriam afetadas por um muro. O governo Trump também destacou o terrorismo como uma questão de fronteira, mas até hoje em nenhum ataque terrorista se encontrou qualquer ligação com alguém que tenha atravessado pela fronteira sul. O que o governo alega sobre imigrantes criminosos é uma mentira deslavada: os imigrantes cometem crimes em menor proporção que os americanos natos, as comunidades de imigrantes são mais seguras, e o volume de supostos “criminosos estrangeiros” presos na fronteira é constituído em sua maior parte por pessoas acusadas de delitos migratórios ou crimes praticados sem violência. Apenas três dos “17 mil criminosos” detidos na fronteira – número citado recentemente pelo chefe de gabinete da Casa Branca, Mick Mulvaney, e que, na realidade, é de apenas 7 mil – tinham registro por homicídio culposo ou doloso.
A travessia ilegal de fronteira entre os EUA e o México está acontecendo na proporção mais baixa das últimas décadas, e cada vez mais aqueles que atravessam o fazem com a intenção de se entregar e requerer asilo. E cada vez mais essas pessoas são famílias e crianças. Crianças que não são “peões humanos”, como sugeriu Trump, e muito raramente são traficadas por “coiotes”, indivíduos que atuam nas áreas fronteiriças para facilitar a entrada dos indocumentados. Em regra, são levadas pelos pais, por entes queridos ou adultos de confiança, porque suas vidas estão em risco, e seus pais querem que elas tenham liberdade e segurança. E elas só estão atravessando dessa forma porque são rejeitadas nas portas de entrada.
Por fim, muros de fronteira não costumam funcionar muito bem. Na maior parte das vezes, é fácil escalá-los, rompê-los, cavar por baixo deles ou apoiar neles uma escada.
Existe uma verdadeira crise na fronteira. Essa crise diz respeito às milhares de crianças que permanecem detidas em barracas na cidade de Tornillo, no Texas. Ela envolve as famílias que continuam a ser separadas e traumatizadas. A crise se concentra no esquartejamento das leis de asilo. E se manifesta nas dezenas de milhares de imigrantes e solicitantes de asilo aprisionados no crescente arquipélago de centros de detenção. O que dá impulso à crise são a instabilidade e a violência na América Central e no México, causadas e apoiadas pelos EUA por meio da exploração econômica e da guerra às drogas.
A crise, porém, atinge profundamente os EUA. É possível vê-la nos bairros de todo o país, onde imigrantes sem documentos estão sendo arrancados de seus empregos, famílias e casas, presos, e mandados para fora do país. Às vezes há também uma crise de políticas imprevisíveis: mesmo as pessoas com status provisório – DACA [a política que beneficiava menores de idade] e Status de Proteção Temporária – não conseguem saber com certeza como o Judiciário irá lidar com os ataques que estão sofrendo do governo. A crise está nos desertos da fronteira ao sul, que as agências de controle de imigração usam há muito tempo como arma – resultando, nas últimas duas décadas, na morte de pelo menos 7 mil pessoas que fizeram a travessia, e transformando partes do sudoeste americano no que o antropologista Jason de León chamou de “deathscape” [“paisagem de morte”].
No seu pronunciamento de terça-feira, Trump resvalou no racismo: lamentou seletivamente as mortes de cidadãos americanos, algumas delas causadas por imigrantes sem documentos. Ele não mencionou, porém, as mortes de Jackeline Call e Felipe Alonzo-Gomez, duas crianças de 7 e 8 anos, respectivamente, que morreram recentemente sob custódia da Patrulha de Fronteira. O governo, de forma cruel, culpou os pais pelas mortes de seus filhos. Mas qualquer pessoa que conheça a dificuldade da travessia de fronteira – uma estratégia deliberada praticada há décadas – e a recusa em apreciar pedidos de asilo nas portas de entrada, ou as “hieleras” [“geladeiras”] onde os imigrantes são depositados enquanto aguardam, em condições insalubres, superlotadas, congelantes e desumanas, sabe que a doença, o sofrimento e as esporádicas mortes não são apenas inevitáveis, são estratégicos. Cristina Fialho, diretora-executiva da organização Freedom for Immigrantes [Liberdade para os Imigrantes], chamou as políticas do governo de “brutalidade sistêmica”.
O que demonstram as caravanas de imigrantes e os campos de refugiados em Tijuana é que a crise não está apenas em curso, ela está perto de se tornar permanente. Um “muro” vai aprofundar a crise e causar destruição ambiental e um imensurável sofrimento humano.
Tradutora: Deborah Leão
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