Dezenas de milhares de residentes dos Estados Unidos foram deslocados por desastres provocados pela mudança climática em 2018. A Califórnia enfrentou uma série de incêndios maciços – desde o Complexo Mendocino, em julho, que se tornou o maior incêndio florestal registrado no estado, até o incêndio de Camp, o mais letal. Enquanto isso, o furacão Florence, a segunda maior tempestade em volume de chuva registrada em 70 anos nos EUA, foi rapidamente esquecido quando o furacão Michael atingiu a Costa do Golfo. Foi o terceiro furacão mais forte a atingir o país.
Os sobreviventes dos desastres tiveram que recorrer a acampamentos em estacionamentos de supermercados, sofás de amigos, trailers estacionados nos gramados de suas casas destruídas ou ao aluguel de apartamentos superfaturados em comunidades onde as moradias se tornam cada vez mais escassas. Rotineiramente, redes de segurança – como seguros contra enchentes e incêndios ou a Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA, na sigla em inglês) – deixaram de fornecer o apoio necessário para manter os sobreviventes abrigados, alimentados e em pé. O caminho para a recuperação de um refugiado do clima é determinado por suas economias, pela riqueza familiar, conexões com a comunidade e sua pontuação de crédito.
Enquanto tempestades e incêndios florestais reduziram milhares de casas a cinzas e escombros ou deixaram-nas cobertas de mofo, desastres mais lentos, como a elevação do nível do mar nas costas do Atlântico e do Golfo, e a erosão causada pelo derretimento do permafrost (solo congelado) no Alasca estão deixando diversas comunidades com os dias contados.
Mas os refugiados do clima mais vulneráveis vivem fora dos Estados Unidos. A seca de um ano no Corredor Seco da América Central, por exemplo, está silenciosamente levando os agricultores de subsistência e trabalhadores agrícolas para a fronteira cada vez mais militarizada dos EUA com o México. E, embora os EUA sejam responsáveis por mais emissões de dióxido de carbono do que qualquer outro país do mundo, seu sistema de asilo não leva em consideração quem esteja fugindo da seca. Na verdade, em um mundo em que a mudança climática já está alimentando movimentos maciços de pessoas, quase nenhuma nação reconhece oficialmente a existência do refugiado climático.
Michelle Teixeira, Paradise, Califórnia
Michelle Teixeira está morando em um trailer de 28 metros quadrados com o marido, o pai, duas filhas e quatro cachorros. O chefe de seu marido é dono de um empreendimento residencial composto de lotes vazios, onde os Teixeira e outras quatro famílias acamparam, chamando a si mesmos de “tesouros do trailer”. São todos refugiados do incêndio florestal de Camp, que atingiu Paradise, na Califórnia, matando 85 pessoas, incluindo muitos aposentados.
Em breve, terão de encontrar um novo local de acampamento. Quatro dias após o incêndio, a maior parte dos lotes recebeu ofertas de pessoas em busca de novas casas. A oferta habitacional já era escassa na área, e o incêndio, que destruiu 13.792 residências, fez os valores dispararem, com refugiados tentando reassentar nas proximidades.
Segundo o cientista climático Daniel Swain,o verão de 2018 foi mais quente do que o habitual naquela parte da Califórnia, e as chuvas de fim de outono chegaram tarde. Comunidades como Paradise, localizadas às margens das áreas florestais, são particularmente vulneráveis a incêndios florestais provocados pelas mudanças climáticas.
Quando Michelle acordou na manhã do incêndio, o quarto, geralmente cheio de luz branca da claraboia, estava brilhando em laranja. Nervosa, levou a filha de 14 anos de carro para a escola, com a menor de quatro anos enrolada em um cobertor no banco de trás.
Quando chegaram, Michelle pediu à filha para verificar se haveria aula. A adolescente voltou com o namorado a reboque. As aulas estavam suspensas e as cinzas caíam do céu, mas ainda não havia nenhum aviso claro de que era necessário evacuar – isto é, até Michelle passar para ver como estava uma amiga com problemas de ansiedade. O marido da amiga veio ao seu encontro quando ela parou o carro. “O fogo está três ruas abaixo. Você precisa ir para casa agora, pegar o que puder e sair”, disse ele.
Parar em casa não seria uma opção. O céu ficou preto, e o carro balançou por causa da velocidade com que a fumaça soprava. O trânsito parou, com pessoas abandonando os carros nas ruas por terem ficado sem combustível ou entrando em veículos vizinhos. Michelle viu uma mulher sozinha que parecia ter cerca de 80 anos no carro ao lado dela. “Abri a janela e perguntei, ‘você está bem’?” Implorou para a mulher entrar no carro deles. “Ela me disse: ‘Vivi uma vida longa. Se for minha hora, é a minha hora’.”
Logo, havia casas incendiando ao redor. Michelle entregou garrafas d’água para as crianças. “Eu disse a elas: ‘Vocês precisam colocar a água no cobertor e usá-lo para cobrir o rosto, porque a fumaça pode matar’”, lembrou. “Teve um momento em que pensei se seria rápido se morrêssemos. Meus filhos sofreriam? Eles morreriam da fumaça ou morreriam do fogo?” Finalmente, os carros começaram a andar.
Spot, o lagarto da família, não sobreviveu, nem os 13 peixes ciclídeos, mas o pai de Michelle conseguiu escapar com os dois pitbulls, um chihuahua e um dachshund. Quando conseguiu voltar para o que restava de sua casa (cinzas, vidro e metal empenado), seus quatro patos e cinco das sete galinhas a receberam, um pouco mais magros do que antes.
Como eles tinham seguro, a FEMA lhes negou apoio, mas a apólice levou mais de um mês para entregar os fundos. O dinheiro para o trailer de 17 mil dólares foi obtido com a ajuda de amigos e familiares.
A saúde de seu pai de 62 anos piorou desde o incêndio. “Em um mês, a função renal dele diminuiu rapidamente, ao ponto dos médicos recomendarem que ele faça diálise imediatamente”, disse ela. A família vai precisar de outro trailer para que ele tenha espaço para cuidar de si mesmo. A filha de quatro anos de Michelle tem enfrentado terrores noturnos, assombrada por um monstro vermelho.
Alguns dos vizinhos dos Teixeira não vão reconstruir, mas Michelle não imagina fazer outra coisa além disso. “Aquela é a minha casa. Eu nunca me senti bem em nenhum outro lugar”, disse ela.
Davíd, a fronteira EUA-México
Cerca de dois meses atrás, Davíd decidiu vender sua cama de metal com colchão alto e se juntar à caravana de migrantes junto de outras sete pessoas de comunidade em Lejamaní, Honduras. As coisas não correram como ele esperava. No início de dezembro, Davíd, cujo nome foi mudado devido a preocupações com sua segurança, viu-se parado em Tijuana, impedido pelos EUA de entrar no país e pedir asilo. Tendo perdido os amigos, o homem de 29 anos dormia em uma grande barraca vermelha e marrom com outras oito pessoas, compartilhando um cobertor com outro homem, às vezes dois. Quando a chuva inundou a barraca, os homens trouxeram cadeiras e tentaram dormir sentados, tremendo de frio.
Para a família de Davíd em Honduras, a vida e a morte são determinadas por quantas sacas de feijão a terra produz. Nos últimos três anos, não foi o suficiente. As chuvas vêm com muito pouca frequência, e as plantas crescem, mas se recusam a florescer.
“Mais do que qualquer outra coisa, é a mudança climática”, disse Davíd, explicando como acabou se juntando à caravana de migrantes. “Estou aqui por causa da seca.”
O filho de Davíd tem praticamente a idade da seca, e tem asma. Aos cinco meses de idade, ele ficou gravemente doente, e foi apenas por causa das três sacas de feijão da família que foi possível pagar a ida ao hospital. O médico disse a Davíd que, se tivessem esperado mais tempo, o bebê provavelmente teria tido um ataque cardíaco.
Isso foi quando a terra ainda estava produzindo um pouco. Nos anos bons, Davíd costumava obter 10 sacas de feijão por ano. No ano passado, não conseguiu preencher uma sequer. Às vezes, mandava a filha de 10 anos para a escola sem ter comido nada. O aumento da insegurança econômica facilitou a entrada das gangues, recrutando crianças e disparando armas de fogo nas ruas.
A casa de Davíd está no meio do que é conhecido como Corredor Seco, que atravessa a Guatemala, Honduras e El Salvador. A área é marcada por uma estação seca, que corresponde aproximadamente ao inverno nos EUA, depois uma estação chuvosa, que corresponde ao verão norte-americano. No meio da estação chuvosa, costuma haver uma seca conhecida como canícula. De acordo com Chris Castro, cientista climático da Universidade do Arizona, a seca de verão que foi a mais afetada pela mudança climática, tornando-se a mais quente e seca nos últimos 20 anos.
“O que é realmente assustador”, ele acrescentou, “é que estamos obtendo essas secas de verão mais secas e quentes durante os anos em que a variabilidade climática natural não sugeriria que isso deveria estar acontecendo.”
A seca ocorre no meio da estação de crescimento. “Quem será mais impactado? Serão os agricultores de subsistência, que têm parcelas relativamente pequenas de terra em áreas rurais e funcionam com uma margem muito pequena”, disse ele.
De volta a Honduras, a esposa de Davíd estava com dois meses de aluguel atrasado, mas ficou difícil se comunicar com ela porque uma bolsa com o telefone dele foi roubada. Ansioso, ele começou a procurar trabalho em Tijuana e se juntou a um revezamento de greve de fome para transmitir o desespero dos membros da caravana aos políticos dos EUA que os impediram de atravessar a fronteira.
Mas as coisas só pioraram. Quando Davíd finalmente conseguiu pegar um telefone emprestado, descobriu que sua mãe havia sofrido um ataque cardíaco. Ele decidiu que a única coisa a fazer era se entregar às autoridades mexicanas e voltar para casa.
“Se eu soubesse que seria assim, não teria vindo”, disse ele. “Agora só preciso estar com a minha família, a minha mãe.”
Jamie Johansen, Burgaw, Carolina do Norte
Três meses depois de o furacão Florence ter deixado bolor preto subindo pelas paredes da casa de Jamie Johansen e mofo amarelo e branco crescendo no carpete, a família ainda não conseguiu se mudar para o trailer da FEMA instalado em sua propriedade. A tempestade deixou 53 pessoas mortas, mais de 4 mil propriedades residenciais destruídas e mais de 74 mil danificadas, com bairros inteiros dizimados, seus moradores deslocados.
Na semana anterior ao Natal, um inspetor chegou a aprovar a fiação elétrica do trailer, mas havia água vazando das paredes. Os funcionários da FEMA não forneceram à família qualquer explicação sobre o motivo. O trailer da FEMA aparentemente havia se tornado a fonte do próprio alagamento. Jamie, o marido, a mãe, o filho de cinco anos e a avó de 93 anos passaram o fim de ano em um local alugado em uma cidade próxima, longe de seus cinco cavalos e dois pôneis.
Oito anos atrás, as três gerações juntaram seus fundos e se mudaram da Pensilvânia para a Carolina do Norte. Morar lá era mais barato, e seria mais fácil abrigar seus animais. Esse capítulo acabou agora. “Estamos pensando em voltar para o norte”, disse Jamie, “porque lá não há inundações”.
O furacão Florence, que atingiu a Carolina do Norte em 14 de setembro, foi a segunda tempestade com mais volume de chuva dos EUA nos últimos 70 anos, logo atrás do furacão Harvey, que atingiu o Texas em 2017. Um estudo realizado por cientistas do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, da Stony Brook University e do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas, descobriu que os impactos da mudança climática fizeram com que a previsão de chuvas da tempestade fosse 50% maior do que seria de outra forma.
Os Johansen, como muitos dos mais afetados pela tempestade, viviam fora da várzea, de modo que não tinham seguro para inundação. Seus vizinhos moraram na área a vida inteira e nunca tinham visto a propriedade inundar. Assim, quando o furacão Florence chegou, não havia planos de evacuação.
Quando a chuva parou, o bairro parecia bem. Os Johansen montaram em seus cavalos, examinando as árvores caídas. Porém, às três da manhã da segunda-feira seguinte, quando o cão ganiu pedindo para sair, o mundo havia se transformado. A água estava nivelada com a varanda da frente, que ficava a 1,20 metro do chão. O rio Cape Fear havia transbordado e inundado suas terras. Jamie pensou imediatamente no mini pônei da família, que sabia que estaria afundado até o pescoço.
Águas de enchente são perigosas em uma situação como essa. Entre os perigos estão as bolas de formigas de fogo flutuantes, que se formam para proteger a colônia quando há uma inundação. Se você tocar em uma dessas bolas, as formigas podem se espalhar pelo seu corpo, como se você fosse terra seco. Como a comunidade usa tanques sépticos, o esgoto se misturou com a água da chuva e do rio. O marido de Jamie caminhou no meio da água e soltou os cavalos, para que eles pudessem encontrar um lugar mais alto. Eles se instalaram em uma elevação na frente da casa.
De manhã, um helicóptero chegou para resgatar a família. Uma empresa chamada Oracle ofereceu um aerobarco para salvar os pôneis, Lady e Hook, que estavam quase se afogando. Mas os cavalos pesavam demais, então, permaneceram isolados na pequena elevação por 10 dias, até que a água baixasse o suficiente para eles saírem.
Encontrar onde morar mostrou-se difícil, especialmente com animais de estimação. Como Jamie se preocupava com o fato de que separar a avó de seu cachorro seria demais para ela, a família se acomodou em motéis baratos até encontrar uma pousada onde os cães pudessem ficar e, finalmente, em uma casa alugada. As locações, que custavam mil dólares por mês agora estavam entre 1,5 mil e 2 mil. A família contou com o apoio de membros da comunidade e se endividou no cartão de crédito.
Inicialmente, Jamie foi informada de que a família não se qualificava para uma compra da FEMA porque sua casa ficava do lado de fora da várzea. Foi só porque ela ligou novamente que recebeu a informação de que a agência havia mudado sua política e agora estava disposta a considerar todas as casas que haviam sido inundadas. Eles decidiram diminuir as perdas e deixar a terra para o rio.
“Não acho que possamos passar por isso novamente”, disse ela. “Nunca mais quero olhar pela porta da minha casa e ver meus cavalos quase se afogando.”
John Washington contribuiu com reportagem de Tijuana.
Tradução: Cássia Zanon
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