O Gonapeptyl Depot é um remédio usado para tratamento de alguns tipos de câncer, como o de mama e próstata, e endometriose. É distribuído pelo Sistema Único de Saúde por meio de convênios com as secretarias estaduais e municipais de saúde. Em 2010, cada dose do medicamento custava R$ 177. Ou deveria custar. O governo do Mato Grosso, por exemplo, achou razoável pagar R$ 319,65. Comprou pelo menos 200 delas de uma distribuidora de remédios chamada Hospfar – todas superfaturadas.
As compras chamaram a atenção do Tribunal de Contas e do Ministério Público do Mato Grosso, que abriram investigações contra a empresa. Não foram as únicas. O roteiro com a Hospfar se repetiu em pelo menos sete outros estados.
A Hospfar distribui uma linha ampla de itens hospitalares para os governos federal, estaduais e prefeituras. São produtos de higiene pessoal, limpeza, fios cirúrgicos, cosméticos e medicamentos de referência genéricos e similares. Só no governo federal, entre 2011 e 2017, a empresa manteve 991 contratos e convênios com dezenas de órgãos subordinados a dez ministérios. Faturou R$ 379 milhões. Na verdade, continua faturando mesmo após as denúncias e as comprovações de produtos superfaturados.
Fraudes em três níveis de governo
Os três sócios da Hospfar, Brandão de Souza Rezende, Moisés Alves de Oliveira Neto e Marcelo Reis Perillo, são réus por formação de cartel, associação criminosa, desvio de dinheiro público, fraude em licitações e superfaturamento de preços. Além de inflar os preços, eles são acusados de liderar um esquema que embutia no valor dos produtos vendidos para as secretarias de saúde os 17% do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços, o ICMS. Na nota fiscal, declaravam a isenção tributária a que os estados têm direito, e embolsavam indevidamente os recursos.
O esquema era movimentado em pelo menos sete estados: Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima, Alagoas e Pernambuco. Em todos eles, há ações cíveis e criminais movidas pelos respectivos ministérios públicos estaduais contra Rezende, Neto, Perillo e a Hospfar por superfaturamento de preço. Esses sete processos chamaram a atenção do Ministério Público Federal, que também abriu um inquérito para investigar a empresa.
O trio de sócios também responde a 51 processos pela venda de produtos a preços mais altos para o SUS. No total, o valor das multas aplicadas pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, a CMED, órgão responsável por estabelecer limites para preços de medicamentos e pela fixação e monitoramento do desconto mínimo obrigatório para compras públicas, chega a R$ 13,7 milhões.
Em Goiás, a empresa causou um rombo de mais de R$ 13 milhões. O estado era governado pelo primo de um de seus sócios.
Só em Goiás, estado então governado por Marconi Perillo, primo de Marcelo Reis Perillo, a Hospfar e mais duas empresas, a Milênio e Medcomerce, são acusadas de causar um rombo de mais de R$ 13 milhões à União e ao estado com venda de remédios superfaturados entre 2002 e 2006.
O Ministério Público estadual condenou a Hospfar a restituir aos cofres públicos pagamentos irregulares recebidos na compra de medicamentos caros, com recursos repassados por meio do SUS. Na condenação, o Ministério Público de Goiás bloqueou os bens dos condenados e proibiu a empresa de participar de qualquer licitação da Secretaria Estadual de Saúde e de celebrar qualquer contrato com o Estado de Goiás. A empresa recorreu e reverteu a decisão.
Procurada, a Hospfar disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que sempre praticou “preços em plena consonância com os editais licitatórios e com a legislação vigente”. Sobre as multas por superfaturamento, a empresa argumenta que já apresentou as defesas com as “devidas justificativas legais”, e que “considera inadequado se manifestar” antes da decisão final da justiça. Segundo a empresa, as multas “só passam a existir quando os processos forem julgados, o que ainda não é o caso”.
Cientes do histórico, os sócios da Hospfar já tentaram apagar os rastros judiciais na internet. Eles entraram com uma ação para pedir a remoção de todos os seus processos do JusBrasil, site que indexa processos públicos. Não deu certo – os processos continuam no ar.
Presunção de inocência
A Hospfar foi fundada em Goiânia em 1991. A empresa cresceu rapidamente ao longo das últimas décadas, especialmente a partir de 2000. Em apenas seis anos, foram inauguradas sedes em Brasília, Belo Horizonte, Belém, Recife, Cuiabá e São Paulo. Apesar da coleção de condenações e irregularidades, os negócios com o governo continuam a pleno vapor.
Hoje, o principal cliente da Hofspar no governo é o Ministério da Defesa, com 539 contratos ativos, seguido da Educação, com 267. A Saúde vem em terceiro, com 125 – e são também os mais caros: R$ 200 milhões. Só o Departamento de Logística em Saúde, subordinado ao ministério da Saúde, rendeu à empresa R$ 114 milhões.
‘Não há ilegalidade nas contratações’, diz o TCU.
Além da coleção de denúncias, a Hospfar também recebeu 530 sanções baseadas na Lei de Licitações – a maioria por atraso na entrega de medicamentos. Entre elas, três suspensões que, em tese, a impediriam de fechar negócios com o órgão que a sancionou por períodos pré-determinados. Mas isso nunca aconteceu.
Segundo o Tribunal de Contas da União, são os órgãos que contratam as licitações que decidem se as multas aplicadas são preventivas, educativas ou repressivas a ponto de proibir novos contratos. “Há muitos processos por improbidade administrativa, mas não há trânsito em julgado e prevalece a presunção de inocência”, explicou Frederico Julio Goepfert Junior, Secretário de Controle Externo de Aquisições Logísticas do TCU.
Em pregões eletrônicos, por exemplo, o critério é sempre o menor preço. Se a empresa vencer a licitação e apresentar todos os documentos que provam o cumprimento das exigências do edital, e não estiver impedida de atuar, não há como rescindir o contrato. “Não há ilegalidades nessas contratações.”
Um esquema velho conhecido
A Hospar não é a única que se beneficia de esquemas de superfaturamento na área da saúde. Os processos que investigam a empresa também mencionam outras 15 – entre elas, a Artfio, Cristália, Cristalfarma e Rioclarense. Todas são rés ou condenadas por crimes contra a administração pública – mas, na prática, continuam fornecendo medicamentos e produtos hospitalares para o governo federal.
Só a Cristália, por exemplo, foi investigada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, com outras 14 empresas por prática de cartel em licitações públicas destinadas à aquisição de medicamentos.
O Cade encontrou evidências que sócios da Cristália e das outras empresas monitoravam as licitações para acertar previamente quais seriam as vencedoras e os valores a serem ofertados por cada uma, como os lotes seriam divididos, quais apresentariam propostas ou não apresentariam lances. A prática teria ocorrido desde 2007 até 2011, em Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Pernambuco na venda de medicamentos antidepressivos, ansiolíticos, analgésicos, sedativos, anticoagulantes, além de medicamentos para hipertensão, refluxo e tosse.
A denúncia foi feita pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, que realizou interceptações telefônicas e mandados de busca e apreensão nas sedes das empresas investigadas.
O esquema, no entanto, também não impediu o governo de continuar comprando. A Cristália ainda possui 1.613 contratos com órgãos subordinados a oito ministérios e até com a Presidência da República. O maior contratante é o Ministério da Defesa, com 962 pagamentos. No total, a empresa já recebeu R$ 1,8 bilhão do governo – R$ 515 milhões só em 2017.
Procurada, a Cristália disse que “está prestando os devidos esclarecimentos para comprovar sua idoneidade nos processos licitatórios e tem rígidas normas de compliance para garantir a excelência em todos os serviços prestados”.
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