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A guerra às drogas não funciona. O que podemos aprender com o seu fracasso?

Seis lições da luta contra as drogas, que nenhum país venceu, mas Bolsonaro quer intensificar.

Tropas do Exército passam pelo bairro de Anchieta, na zona norte do Rio de Janeiro, durante intervenção federal de 2018 no RJ.

No Brasil atual, as pessoas estão ou inspiradas ou apavoradas com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência – e, para entender o que pode acontecer em seu governo, eu acredito haver uma história que deve ser explorada antes, porque essa é a única forma de enxergar um futuro.

Nos últimos oito anos, viajei pelo mundo inteiro me informando sobre a guerra às drogas (e as alternativas à guerra às drogas) para o meu livro “Na fissura: uma história do fracasso no combate às drogas”, recém-publicado pela Companhia das Letras. Estive em lugares com as políticas mais brutais em relação a usuários, dependentes e traficantes de drogas (como o Vietnã, o norte do México e os Estados Unidos); e fui a lugares que descriminalizaram todas as drogas (Portugal) ou as legalizaram (o estado do Colorado, Uruguai e Suíça). Há seis lições desta guerra global que explicam a ascensão de Bolsonaro – e o que acontecerá se ele fizer tudo o que prometeu durante sua campanha eleitoral.

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Lição um: A guerra às drogas cria uma guerra pelas drogas.

O Brasil tem mais de 60 mil assassinatos violentos todos os anos, e a população está certa em se enfurecer e exigir mudanças radicais que resolvam essa catástrofe. Esta foi uma das principais razões pela qual tantas pessoas apoiaram Bolsonaro: elas acreditavam que ele, pelo menos, falava sobre o problema da violência massiva, e que tinha um plano para resolvê-la.

Mas, para entender por que o plano dele não funcionará, nós precisamos, em primeiro lugar, entender o que está causando metade dessa violência.

Para começar, faça um pequeno experimento mental. Imagine que você está em Chicago e decidiu roubar uma garrafa de vodca. Se você for até uma loja de bebidas, colocar a garrafa embaixo do casaco e os donos da loja te pegarem, eles vão chamar a polícia e a polícia virá e te levará. Assim, a loja em si não precisa usar violência; ela não precisa ser intimidadora; eles têm o poder da lei sustentando seus direitos de propriedade.

Agora, imagine que você está em Chicago e quer roubar um pacote de maconha, ou cocaína, ou metanfetamina. Se a pessoa que te vende a droga te pegar roubando, ela não vai chamar a polícia – ela iria presa. Ela vai lutar com você. Agora, se você é um traficante (e eu passei um tempo com vários deles durante o tempo de minha pesquisa), não precisa ficar comprando brigas todos os dias. Você precisa estabelecer uma reputação por ser tão assustador que ninguém ousaria te desafiar. Na verdade, você precisa estabelecer o seu lugar enquanto vendedor e resistir a seus rivais através da violência. Como o escritor Charles Bowden disse, a guerra às drogas cria uma guerra pelas drogas.

Maria Lucia Karam, importante juíza brasileira, calcula que 30 mil dos assassinatos no Brasil todos os anos são um resultado direto desta guerra pelas drogas criada pela proibição.

Lição dois: Onde quer que tenha sido experimentada, a proposição de Bolsonaro aumenta os índices de mortes.

Bolsonaro argumenta que a solução para tal violência é dar à polícia poder para executar qualquer um que ela suspeite de vender drogas. Execução extrajudicial, em si, é uma forma de assassinato, e nós sabemos que os atingidos por isso serão, em grande maioria, homens pobres em favelas – mas há também evidências de que essa tática aumentará o índice geral de mortes, além dos assassinatos cometidos pela polícia.

Há evidências de que autorizar as execuções extrajudiciais aumentará o índice geral de mortes, além dos assassinatos cometidos pela polícia.

Imagine que você é parte de uma gangue de traficantes, como o PCC, que dominou as favelas de São Paulo, onde passei um tempo recentemente. Você travou uma guerra contra seus rivais e, através da violência e da corrupção de autoridades locais, obteve controle. Se a polícia vier agora e te matar, isso simplesmente gera uma disputa sobre o controle do seu território. É o primeiro tiro disparado para uma nova guerra – onde grupos rivais lutam para ganhar o seu território. É por isso que, invariavelmente, imposições policiais violentas sobre gangues do narcotráfico causam um aumento nos assassinatos em geral.

Isso não significa, é claro, que nós devemos deixar gângsteres violentos dominarem os territórios. Significa que devemos escolher as soluções mostradas que realmente funcionaram.

Lição três: Há uma maneira real para acabar com a guerra pelas drogas e a enorme violência que ela causa – e é o oposto do que Bolsonaro propõe.

Se você quiser saber quanto dessa violência é um resultado direto da decisão de proibir as drogas, então se pergunte: onde estão os violentos traficantes de álcool? O dono da Smirnoff atirou no rosto do dono da Budweiser? O bar local mandou que adolescentes atirassem no bar rival do outro lado da rua? Não – mas exatamente isso aconteceu durante a Lei Seca nos Estados Unidos. Todos sabiam quem Al Capone era.

O que mudou? Não a droga – o álcool é hoje o mesmo que sempre foi. O que mudou foi que a droga foi legalizada. O professor Jeffrey Miron, de Harvard, mostrou que os índices de assassinatos nos Estados Unidos aumentaram massivamente quando o álcool foi banido – e caíram massivamente quando o álcool foi legalizado.

Estive em lugares que legalizaram as drogas. Não há nada de abstrato na forma como eles fizeram isso. O estado do Colorado legalizou a maconha. Ela é agora vendida em locais licenciados e traficantes de maconha perderam seu espaço pouco a pouco. A Suíça legalizou a heroína e agora não há traficantes violentos de heroína no país (e houve um total de zero mortes relacionadas à heroína legal em quinze anos desde que ela foi legalizada).

Algumas pessoas dizem que acabar com a guerra às drogas é suficiente para países desenvolvidos como a Suíça e Portugal, mas que isso não é relevante para um país como o Brasil. “Eu acho ainda mais importante” aqui, disse-me a juíza Maria Lucia Karam. “Porque na Suíça ou em Portugal, eles não têm a violência”. Eles não têm quase 30 mil pessoas sendo mortas pela guerra às drogas ano após ano após ano.

Bolsonaro está oferecendo uma falsa solução para a violência. Mas há uma solução real em espera para quando o país quiser escolhê-la.

Clientes consomem maconha em coffee shop de Amsterdã, na Holanda.

Clientes consomem maconha em coffee shop de Amsterdã, na Holanda.

Foto: Continental/AFP/Getty Images

Lição quatro: A guerra às drogas é sempre usada como pretexto para fechar o cerco a grupos que o estado quer perseguir de qualquer forma.

Quando eu cheguei ao Brasil, peguei um táxi para o meu hotel, deixei minhas malas na recepção e fui dar uma caminhada na praia de Ipanema. A primeira coisa que um brasileiro me disse, após o motorista de táxi e da recepcionista do hotel, foi dita por um homem que viu um ‘gringo’ caminhando pela praia e veio confiante até mim dizendo: “E aí amigo – quer comprar cocaína?” Todos os dias, pessoas ricas na praia de Ipanema estão comprando e usando drogas.

No dia seguinte, eu fui ao Complexo do Alemão, uma favela não muito longe de Ipanema, e um extraordinário jovem ativista chamado Raul Santiago me acompanhou e me mostrou o lugar. Eu vi a polícia apontando armas abertamente a crianças pequenas. Eu os vi aterrorizando a população. Eu conheci famílias de pessoas que foram executados extrajudicialmente pela polícia. Eu descobri que eles dirigem tanques pelas ruas da favela.

Algumas pessoas estão usando drogas tanto em Ipanema quanto no Complexo do Alemão. Se a polícia e os militares se comportassem por um dia em Ipanema da mesma forma que eles se comportam no Alemão, seria uma das maiores manchetes do mundo naquele dia. Imagine se eles enviassem um tanque para a praia de Ipanema e começassem a atirar em qualquer pessoa suspeita de estar usando drogas.

Qual é a diferença? As pessoas no Alemão são tão humanas – e tão merecedoras de segurança e respeito – quanto as de Ipanema.

Nenhum país pode impor leis de drogas contra todos que as infringem. Nos Estados Unidos, cerca de 50% da população já agiu fora da lei. Nenhum país pode aprisionar metade de sua população. Então o que acontece? O estado sempre usa a guerra às drogas como um pretexto para fechar o cerco contra aqueles que deseja reprimir por outras razões. Nos EUA, são os afro-americanos, os latinos e os pobres. No Brasil, é a população das favelas. Bolsonaro já expressou seu desprezo por eles, dizendo que as mulheres de lá não são nem “boas para reprodução mais”. Agora a guerra às drogas fornece um pretexto para aterrorizar essas pessoas.

Certo dia, eu estava sentado no centro de uma favela chamada Maré, bebendo Coca-Cola Zero com uma jovem ativista de lá chamada Maïra Gabriel Anhorn. Ela me explicou que seu grupo de ativistas locais – que consiste basicamente em um grupo de pessoas da própria favela da Maré – estavam tentando provocar mudanças explicando para as pessoas que elas têm direito a segurança. A população entendia muito bem que educação era um direito, que saúde era um direito, mas quando se tratava de segurança ser também um direito, eles se perdiam. Eles haviam sido ensinados, durante todas as suas vidas, que essa insegurança generalizada, essa violência extrema, eram necessárias como parte da guerra às drogas. O estado tinha que travar uma campanha massiva de violência. Era necessário.

Maïra descobriu que “toda vez que você tentava criticar as operações policiais, a resposta era ‘Mas é um lugar muito inseguro, há muitas pessoas que vendem drogas’”, disse. “E para as pessoas aqui, essa é uma desculpa aceitável. Essa é a única desculpa que torna essas operações violentas aceitáveis – porque aqui há pessoas que compram drogas.”

A genialidade da guerra às drogas, disse Maïra, é que ela, como nenhuma outra, permite uma guerra aos pobres que a sociedade como um todo, e mesmo muitos dos próprios pobres, aceitarão como necessária.

Maïra acredita que acabar com a guerra às drogas pode ser uma coisa boa por diversas razões – mas uma delas é retirar de cena uma desculpa para essa guerra brutal de classes conduzida pelo estado. Está claro o que está acontecendo – e por quê. E, uma vez que essa lógica estiver clara para todos, diz, nós podemos lutar contra.

Lição cinco: Ir atrás de pessoas com crise de dependência piora o vício.

Os aliados de Bolsonaro, como o então prefeito de São Paulo, João Dória (recém-empossado governador do estado), reagiram às pessoas com dependência com violentas medidas repressivas – e essa parece que provavelmente se tornará a estratégia de Bolsonaro.

Em 2017, enquanto pesquisava para meu livro, “Na fissura”, eu passei um tempo na conhecida “Cracolândia” da cidade, onde muitos dos dependentes mais vulneráveis do Brasil acabaram por viver nas ruas. No começo, essas pessoas foram ameaçadas e agredidas pela polícia. Toda vez que isso acontecia, o problema só piorava. Então, durante um curto tempo, um interessante experimento foi conduzido por um grupo chamado De Braços Abertos.

Eles já haviam aprendido que a forma como a dependência química normalmente é pensada no Brasil é ultrapassada.

Se você tivesse me perguntado oito anos atrás, quando eu comecei a pesquisar para “Na fissura”, o que causa o vício em drogas, eu teria olhado para você como se você fosse um idiota e respondido: “drogas, né”. Não é difícil de entender. Eu pensei que havia visto isso a minha vida inteira. Todos podemos explicar. Imagine se você, eu e as próximas 20 pessoas que passarem por nós na rua usarmos uma droga muito potente durante 20 dias. Há componentes químicos viciantes nessas drogas, então se parássemos no 21º dia, nossos corpos precisariam daqueles químicos. Nós teríamos um desejo feroz pela droga. Nós estaríamos viciados. É isso que dependência significa.

Uma das formas em que essa teoria foi estabelecida pela primeira vez foi através de experimentos com ratos – introduzidos no pensamento norte-americano nos anos 80 em um famoso cartaz da Partnership for a Drug-Free America (Parceria para uma América sem Drogas). Você deve se lembrar. O experimento é simples. Coloque um rato em uma gaiola, sozinho, com duas garrafas de água. Uma contém apenas água. A outra contém água misturada com heroína ou cocaína. Quase todas as vezes que esse experimento é feito, o rato fica obcecado com a água drogada e segue voltando para beber mais e mais, até acabar morrendo.

O cartaz adverte: “Apenas uma droga é tão viciante, que nove entre dez ratos de laboratório as usam. E usam. E usam. Até que morrem. Ela se chama cocaína. E pode fazer o mesmo com você.”

Mas, nos anos 70, um professor de psicologia em Vancouver chamado Bruce Alexander, percebeu algo de estranho nesse experimento. O rato é colocado na gaiola completamente sozinho. Ele não tem nada para fazer exceto usar das drogas. O que aconteceria, ele se perguntou, se tentássemos de forma diferente? Então o professor Alexander construiu o Parque dos Ratos. É uma atraente gaiola onde os ratos teriam bolas coloridas, a melhor comida de ratos, túneis para passear e vários amigos: tudo o que um rato da cidade poderia querer. Alexander queria saber: o que aconteceria?

No Parque dos Ratos, todos os ratos obviamente provaram a água de ambas as garrafas porque eles não sabiam o que tinha dentro delas. Mas o que aconteceu em seguida foi surpreendente.

Os ratos com vidas boas não gostavam da água drogada. Eles a evitaram, consumindo menos de um quarto do que os ratos isolados haviam consumido. Nenhum deles morreu. Enquanto todos os ratos que estavam sozinhos e infelizes se tornaram usuários frequentes, nenhum dos ratos que tinha um ambiente feliz em torno de si o fez.

A melhor maneira de reduzir o vício seria diminuir a dor profunda que os dependentes químicos sentem.

Há diversos exemplos humanos que mostram o mesmo princípio. Isso me fez perceber: o oposto da dependência é a conexão.

Após descobrir isso, a organização De Braços Abertos argumentou que a punição aumenta a dor e, portanto, a dependência e que, na verdade, a melhor maneira de reduzir o vício seria diminuir a dor profunda que essas pessoas sentem. Então eles compraram alguns hotéis baratos e forneceram às pessoas da Cracolândia um lar seguro, comida e emprego – em vários casos, pela primeira vez em suas vidas. A melhor pesquisa sobre isso mostrou que, como resultado, 65% deles reduziram o seu uso geral de drogas. O oposto da dependência é a conexão. Quanto mais pessoas puderem ser ajudadas a viver vidas significativas, conectadas e seguras, mais sairão do vício.

E logo quando o experimento da De Braços Abertos estava tendo resultados promissores – assim como havia tido em todos os lugares ao redor do mundo onde havia sido experimentado, de Vancouver a Lisboa – Doria foi eleito e decidiu acabar com tudo. Ele enviou a polícia para agredir os residentes e demoliu um prédio com três pessoas dentro. Como resultado, o problema da dependência química em São Paulo está mais fora de controle do que nunca.

Lição seis: O Brasil pode fazer escolhas melhores.

A única coisa que pode ser dita em defesa da guerra às drogas é que os Estados Unidos realmente deram a ela uma oportunidade justa. Eles gastaram trilhões de dólares; eles o fizeram por cem anos; eles mataram centenas de milhares de pessoas (e destruíram países inteiros como a Colômbia); eles aprisionaram milhões dos seus próprios cidadãos; e qual é o resultado? Eles têm a pior violência armada no mundo depois do Brasil. Eles têm a pior crise de dependência química no mundo. E eles não conseguem nem manter as drogas fora de suas prisões.

Sob o governo de Bolsonaro, parece que o Brasil vai de novo copiar lugares que falharam desastrosamente, como os Estados Unidos. Mas há uma alternativa. O Brasil poderia começar copiando lugares que deram certo. Por exemplo: Portugal descriminalizou todas as drogas e transferiu o dinheiro usado para destruir a vida das pessoas de forma a ajudá-las a reconstruir suas vidas. Desde então, houve uma grande queda nos índices de dependência e overdoses.

Você não precisa ser vidente para saber o que a proposta de Bolsonaro vai fazer com o Brasil.

Em todos os lugares onde a guerra às drogas foi superada, eu vi o mesmo padrão. De primeira, é extremamente controverso e as pessoas pensam que é loucura – e então elas veem os resultados. Não é perfeito – eles certamente ainda têm problemas no Colorado, em Portugal e na Suíça – mas há uma melhora tão radical que a oposição às reformas simplesmente deixa de importar.

Você não precisa se tornar um vidente para saber o que a proposta de Bolsonaro vai fazer com o Brasil – você precisa apenas olhar para o outro lado do mundo. Para ver o caminho além de Bolsonaro – o caminho que genuinamente reduz os horrendos índices de assassinatos e dependência química do Brasil – você precisa manter o olhar global. As soluções foram testadas. Elas estão esperando o Brasil escolhê-las.

O livro “Na fissura” foi lançado no Brasil no fim de 2018 e está disponível nas livrarias de todo o país.

Tradução: Maíra Santos

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