Grande parte do sistema político dos EUA entrou em parafuso duas semanas atrás, quando uma recém-empossada congressista de 29 anos apresentou uma proposta aparentemente radical no programa de TV “60 Minutes” [60 Minutos].
Eis o que disse de tão desconcertante a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, representante de Nova York pelo Partido Democrata: os Estados Unidos deveriam tributar a renda acima de 10 milhões de dólares anuais com uma alíquota máxima de 60 ou 70%.
Os Republicanos, em resposta, resolveram mentir descaradamente sobre o significado da proposta, fazendo de conta que Ocasio-Cortez defendia uma alíquota de 70% para todas as faixas de renda. Alguns Democratas mais velhos, como o líder da maioria na Câmara, Steny Hoyer, e o ex-líder da maioria no Senado, Harry Reid, adotaram a tática-padrão dos Democratas diante de um ataque mentiroso dos Republicanos – colocar o rabo entre as pernas como cachorros acuados.
O burburinho é compreensível. A defesa direta feita por Ocasio-Cortez mostrou que a política americana pode, apesar de tudo, representar o que os americanos querem. Depois que o episódio de “60 Minutes” foi ao ar, o site de política The Hill encomendou uma pesquisa e constatou que 59% dos eleitores registrados apoiam um aumento para 70% na alíquota da faixa superior de renda. Segundo o The Hill, a ideia tem inclusive um “apoio surpreendente entre os eleitores Republicanos (…) 45% dos eleitores do partido se dizem a favor.”
A única coisa surpreendente desse apoio pelo eleitorado Republicano é que o The Hill tenha se surpreendido. As pesquisas vêm mostrando de modo uniforme, ao longo dos últimos 40 anos, que praticamente inexiste nos EUA eleitorado favorável a reduzir os tributos dos mais ricos ou das grandes empresas, mas há uma grande parcela favorável a aumentá-los.
Dois importantes cientistas políticos, Martin Gilens, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e Benjamin Page, da Universidade Northwestern, estudaram detidamente o sistema político dos EUA, e demonstraram com gráficos e tabelas aquilo que é intuitivo para a maioria: se você não tem dinheiro, você não importa. Ou, como escrevem Gilens e Page: “Não apenas os cidadãos comuns não detêm um poder especificamente substancial sobre as decisões políticas; eles possuem muito pouca ou nenhuma influência sobre a política em absoluto”. Por outro lado, estima-se que as elites econômicas tenham um impacto bastante substancial, altamente significativo e independente sobre a política.”
Os últimos 40 anos de política tributária nos EUA foram a mais contundente demonstração possível dessa afirmativa. Os americanos, desde que há registro, nunca se opuseram à incidência de tributos mais altos sobre os ricos. A despeito disso, a alíquota da faixa superior de renda do imposto federal despencou de 70% para 28% durante o governo Reagan, e desde então aumentou apenas para 37%.
Os Republicanos, muitos Democratas e vários jornalistas televisivos bem pagos ameaçaram os americanos por anos a fio com histórias a respeito do imenso prejuízo à economia do país que seria causado pelo aumento da tributação sobre os mais ricos. O fato histórico, porém, é que a economia já prosperou com alíquotas de 80% ou até mais altas. A bem da verdade, à medida que as alíquotas caíram, caíram também os índices de crescimento econômico.
A alíquota da faixa superior do imposto de renda de pessoa jurídica também caiu vertiginosamente com Reagan, de 46% para 34%. Graças ainda à legislação tributária de Trump em 2017, ela agora chegou a 21%.
Essas mudanças não foram motivadas por demandas populares. Uma pesquisa de 1978 do instituto de pesquisa Roper Organization descobriu que um impressionante total de 7% dos americanos considerava que o imposto de renda federal era injusto para as famílias de renda alta. Ainda segundo essa pesquisa, 5% achavam que a alíquota do imposto era injusta para as grandes empresas. Quando a pesquisa foi repetida, em 1986, os números foram quase exatamente os mesmos: 7% e 6%, respectivamente, manifestaram preocupação porque os ricos e as grandes empresas eram excessivamente tributados.
Isso, porém, não foi levado em conta: as alíquotas das faixas superiores continuaram a cair.
O instituto Gallup começou a fazer pesquisas regulares com essa pergunta no começo dos anos 1990. O apoio ao aumento da tributação sobre os ricos tem geralmente flutuado entre 60 e 70%, e aproximadamente 10% pensam em reduzi-la.
Uma proporção ainda maior de americanos, de quase 70%, tem mostrado interesse em aumentar a tributação das grandes empresas. Mas em vez disso, a alíquota para pessoas jurídicas nas faixas superiores permaneceu constante em 35%, de 1995 em diante. Finalmente, em 2017, depois de anos de recursos investidos em lobby, Trump e o Partido Republicano fizeram exatamente o oposto do que desejavam os americanos, e deceparam quase metade da alíquota mais alta para pessoas jurídicas.
No fim das contas, os números das pesquisas são incrivelmente constantes: a imensa maioria dos americanos sempre quis fazer os ricos pagarem mais. É um dos posicionamentos políticos mais populares que se pode imaginar, sendo que apenas uma ínfima minoria pleiteia a redução de tributos para os milionários do país.
O que é ainda mais digno de nota, como apontou Gilens em livro recente, é que mesmo aqueles que estão bem de vida, nos 10% com maior renda familiar – atualmente, nos EUA, acima de 175 mil dólares por ano – apoiam enfaticamente que os ricos paguem impostos mais altos. Existem americanos que não gostam dessa ideia?
Sim.
É sabidamente complicado fazer pesquisas com os super-ricos. Eles não são muitos, por definição. São difíceis de achar. E geralmente não estão interessados em divulgar seus posicionamentos políticos aos entrevistadores.
Até hoje, na história dos EUA, só houve meia dúzia de tentativas bem-sucedidas nesse sentido. Uma das mais recentes foi a Pesquisa sobre os Americanos Economicamente Bem-Sucedidos, que entrevistou mais de 100 moradores de Chicago com um patrimônio igual ou superior a 10 milhões de dólares. Como descrevem Gilens e Page em outro livro, esses multimilionários são muito mais conservadores economicamente que o público em geral, inclusive com relação aos tributos. Por exemplo, 52% dos americanos comuns disseram aos entrevistadores que o governo deveria “reduzir a desigualdade por meio de impostos altos sobre os mais ricos”. O estudo de Chicago constatou que apenas 17% dos ricos acharam que isso soava bem.
Isso é o poder em estado bruto. Os ricos conseguem o que querem, ou conseguem pelo menos barrar as políticas que não os interessam – mesmo que elas sejam desejadas por todas as outras pessoas do país.
Em contrapartida, os impostos podem sofrer aumentos repetidos e significativos – desde que atinjam com mais força os pobres. O tributo sobre a gasolina aumentou durante os anos 1980 e começo dos anos 1990: de 4 centavos por galão em 1981 a 18 centavos em 1993, aproximadamente 200% em valor constante. Gilens aponta que essa foi uma rara política tributária que sofreu uma forte oposição dos americanos de baixa renda, mas era vista com tranquilidade pelos mais ricos.
Sim, as pessoas ainda podem votar mais ou menos a cada dois anos. Mas o dinheiro também vota em muito mais volume, e por meio do lobby e das contribuições de campanha, vota todos os dias. Há décadas os americanos comuns vêm tendo muito pouca influência sobre os rumos de seu país.
Isso, porém, nem sempre foi a realidade histórica dos EUA, e não existe nenhuma lei natural dizendo que deva permanecer assim eternamente. A violenta reação contra Ocasio-Cortez mostra o medo que sentem os do andar de cima de que um dia muitos outros políticos decidam que é do seu interesse se alinhar à grande maioria dos americanos.
Tradução: Deborah Leão
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.
Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.