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Ela tinha uma falsa dívida com a fumageira Alliance One. Ainda assim, se matou.

A história de Eva lembra como a indústria do cigarro está viva. E matando.

Ela tinha uma falsa dívida com a fumageira Alliance One. Ainda assim, se matou.

Em 2007, Eva da Silva foi ignorada mesmo depois de morta. Era 2 de fevereiro. Fazia calor. Nove e meia da manhã e o corpo da mulher pendurado numa corda no galpão de um sítio localizado no pequeno município gaúcho de Vale do Sol, a 184 quilômetros de Porto Alegre, no Vale do Rio Pardo, não fazia a menor diferença.

Os homens, um oficial de justiça e seis policiais militares, continuavam trabalhando, como se nada tivesse ocorrido. Todos apressados em atender ao pedido da fumageira Alliance One Brasil Exportadora de Tabacos Ltda., sob ordem do excelentíssimo juiz Marcelo Silva de Carvalho: tomar a produção de fumo da agricultora para o pagamento de uma suposta dívida que ela teria com a empresa.

Desesperada, Eva ainda gritou que se mataria. O aviso da idosa de 61 anos não fez eco, mesmo que ela vendesse folhas de tabaco para a Alliance One havia 25 anos. O oficial de justiça, Rodrigo Federezzi, fez a fala de praxe:

— Só estou cumprindo ordens.

A porta do galpão foi arrombada pelos policiais, que carregaram os fardos de fumo sem nenhuma piedade.

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Ao ser comunicada do suicídio, a empresa enviou funcionários para aumentar o grupo. Não com o objetivo de prestar auxílio à família, mas de retirar o fumo mais rapidamente. O juiz Marcelo Silva de Carvalho, depois de receber telefonema do oficial de justiça, autorizou o prosseguimento, informação confirmada pelo delegado de polícia que atendeu o caso, Miguel Mendes Ribeiro Neto.

Para a empresa, a morte de Eva só valeu um “comunicado oficial”. Nele, representantes da Alliance lamentavam “o ocorrido” e diziam que o suicídio foi uma “fatalidade”. A fumageira garantiu que o arresto – como é chamado pela justiça o sequestro de bens para garantir um pagamento – ocorreu por “quebra de contrato”, ou seja, por dívidas que a agricultora não teria pago.

Contudo, Eva não tinha, de fato, dívida. O contrato dela com a fumageira venceria em 31 de julho de 2007 e a execução do arresto veio em 31 de janeiro, com seis meses de antecipação. No ano anterior, a Alliance havia comprado 100% do tabaco da camponesa e renovado o compromisso.
De acordo com uma comissão parlamentar formada por deputados estaduais e federais gaúchos, que acompanhou o caso, notas fiscais comprovavam que não havia motivo para o arresto.
O juiz responsável argumentou que Eva tinha parcelas de uma dívida em atraso e que, mesmo que o contrato novo não estivesse vencido, ele poderia, amparado pela lei, antecipar a cobrança e exigir o arresto em favor da fumageira.

 

Apesar de estar entre os municípios mais ricos do Rio Grande do Sul, Venâncio Aires, vizinha a Vale do Sol, com 65 mil habitantes, teve 105 suicídios entre 2011 e 2017, média de 26,1 casos por 100 mil habitantes. Isso deixa a cidade numa preocupante e mórbida segunda colocação na contagem dos suicídios no país.

Em uma cidade que possui baixo índice de criminalidade, a polícia se ocupa muito da investigação de suicídios. E a hipótese predominante ao senso comum é a influência da cultura alemã e o rigor trazido por ela. Do ponto de vista da saúde, a informação oficial é que 10% dos leitos do principal hospital local são reservados para a psiquiatria e que a Prefeitura investe em programas de prevenção, com internações e grupos de ajuda. Uma unidade do Centro de Valorização da Vida, o cvv foi instalada na cidade. Contudo, abrir o leque dos motivos de suicídio no diálogo com moradores, autoridades e associações é um tabu.

A Afubra, a Associação dos Fumicultores do Brasil, que tem sede na cidade, rejeita a relação dos suicídios com o uso de agrotóxicos, mas, ainda assim, faz questão de afirmar que, hoje, o composto é pouco utilizado nas lavouras. Já o SindiTabaco, o Sindicato da Indústria do Tabaco, divulga a posição de que “atrelar casos de suicídio ao uso de agrotóxicos na cultura do tabaco é uma afirmação inconsistente”. O argumento da entidade é que, dos dez municípios com maior índice de tentativa de suicídios no Rio Grande do Sul, “apenas” três possuem “grande” produção de tabaco: Venâncio Aires, Santa Cruz do Sul e Canguçu.

A tentativa de atenuar a importância do sofrimento dos fumicultores também parte das autoridades. Foi o que demonstrou, em setembro de 2014, o então prefeito de Venâncio Aires, Airton Artus, do pdt. Na época, durante a disputa pela Presidência da República, ele procurou a então candidata Marina Silva num evento em Porto Alegre. Artus não hesitou em aproveitar a oportunidade para falar sobre a “importância do setor fumageiro para as famílias de agricultores” e “desmistificar” as informações correntes sobre o segmento.
Ao entregar à candidata um documento sobre o setor, ele mencionou a relevância social e econômica do fumo. Basicamente, o que ele fez foi compilar dados ofertados pelo SindiTabaco e pela Afubra:

Em 2013, o tabaco representou 1,3% do total das exportações brasileiras, com us$ 3,27 bilhões embarcados. Da produção de mais de setecentas mil toneladas, mais de 85% foram destinados ao mercado externo. Para o Sul do país, a cultura é uma das atividades agroindustriais mais significativas. No Rio Grande do Sul, a participação do tabaco representou 9,3% no total das exportações; em Santa Catarina, 10,2%.

Em julho de 2015, Artus foi eleito presidente da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, grupo técnico ligado ao Ministério da Agricultura e que congrega todo o leque de instituições pró-indústria. O ex-prefeito é médico de formação e, além de pretender “desmistificar” a relação entre o cultivo do fumo e o sofrimento dos trabalhadores, queria mostrar que não existe relação direta entre a produção e o consumo de tabaco. Ele diz que, se o Brasil deixar de plantar, outro país assumirá esse mercado:

A fumicultura tem considerável importância socioeconômica no Rio Grande do Sul e em toda a região Sul do Brasil. Em Venâncio Aires, o setor tabagista, desde a produção e beneficiamento até a exportação, gera riquezas anuais superiores a r$ 600 milhões, o que representa cerca de 70% do valor adicionado do município.

Um prefeito-médico que entrega um documento da indústria do cigarro a postulantes ao cargo de presidente de um país sem tocar em questões de saúde soa bizarro por si só. Mais esquisito é saber que essa questão veio a público pela primeira vez no estado em um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha 14 anos antes, mostrando que 80% dos suicídios em Venâncio Aires se davam entre agricultores, com aumento expressivo dos casos nos períodos de maior uso de agrotóxicos.
Passadas mais de duas décadas, Artus negligencia tais dados, mas nós entrevistamos o engenheiro agrônomo e florestal Sebastião Pinheiro, funcionário aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul , mas ainda ativo na colaboração com o Núcleo de Economia Alternativa da universidade. Ele foi um dos responsáveis pela pesquisa que avaliava a relação entre o índice de suicídios, o cultivo de fumo em Venâncio Aires e os agrotóxicos.

“As pessoas, adultas ou não, colhem fumo com as mãos e carregam as folhas embaixo dos braços, o veneno entra no corpo e provoca depressão. Depois, a doença se agrava e vêm os suicídios”, afirma Pinheiro.

Após o relatório, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o cnpq, financiou um novo estudo, com médicos a bordo, do qual Pinheiro não participou. Alguns levantamentos foram feitos, mas restaram inconclusivos.

“Suicídio não tem uma origem única e direta — rebate Pinheiro. — Assim, um grupo de médicos não tem condições de analisar sozinho alterações no campo eletromagnético [pequenos campos magnéticos que dão estabilidade e equilíbrio às moléculas do corpo humano] de pessoas expostas a praguicidas ou agrotóxicos e, se eles não têm capacidade de avaliar isso, o resultado do trabalho destoa da realidade.”

De acordo com o engenheiro, a maioria dos agrotóxicos é responsável por alterações no comportamento das pessoas, o que, entre diversos males, leva à predisposição a doenças psiquiátricas e ao suicídio. Ele mostra documentos internacionais civis e militares em que encontrou elementos científicos que comprovam a existência da depressão causada por intoxicação de agrotóxicos.

Autor do livro Fumo: servidão moderna e violação de direitos humanos , o também pesquisador Guilherme Eidt Gonçalves de Almeida, especialista em direito sanitário pela Fiocruz, chama atenção para a conexão entre os meses de uso mais intenso de agrotóxicos nas lavouras de fumo — outubro, novembro e dezembro — e o período com maior número de suicídios. O mês de abril, que apresenta também alto índice de casos, coincide com a época da preparação dos canteiros pelos plantadores, afirma Eidt. Sebastião Pinheiro lembra ainda que o grau de toxicidade dos agrotóxicos utilizados no país não é medido corretamente:

“A classificação é enganosa para atender aos interesses da indústria do veneno. Assim, a periculosidade e a insalubridade a que estão expostos os agricultores não têm tamanho no Brasil. E os mais vulneráveis são os que não podem mecanizar a produção, como os que trabalham com as folhas de tabaco.”

A doença da folha verde do tabaco — em que o camponês absorve grandes quantidades de nicotina no contato com a planta, o que pode causar várias reações físicas e psicológicas negativas — é mais um complicador dos quadros clínicos, alerta Tião. Um estudo de 2010 publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, da Fiocruz, relatou a ocorrência de um surto da doença da folha verde no Brasil, caracterizando-a como uma intoxicação aguda de nicotina decorrente da absorção da substância a partir do contato com a planta.

Para que se tenha uma ideia da incidência da enfermidade entre os fumicultores, o registro foi realizado no nordeste, região responsável por menos de 2% do plantio em solo brasileiro, segundo dados da Afubra. Ainda assim, 107 casos foram identificados em trabalhadores de 11 municípios da região de Arapiraca, em Alagoas. Todos deram entrada em unidades de saúde ou hospitais em apenas uma noite do ano de 2007, e os principais sintomas observados foram tontura, fraqueza, vômito, náusea, dor de cabeça e cansaço extremo – exatamente os males descritos a nós pelos agricultores do Vale do Rio Pardo e relatados por Tião Pinheiro à Assembleia Legislativa gaúcha.

A absorção da nicotina foi percebida mais intensamente quando a folha estava molhada ou quando o agricultor suava. O diagnóstico baseou-se em três fatores: histórico de exposição ao cultivo de tabaco, análise clínica e verificação do nível de nicotina na saliva, sangue ou urina. Os resultados apontaram que, em 77% dos casos, os trabalhadores jamais fumaram. Somente 12% dos pacientes afirmaram ser fumantes regulares.

A longa exposição à substância pode piorar o quadro, segundo os pesquisadores. Como agravante, vem a possibilidade de ocorrência de outras doenças, a exemplo de tumores e problemas nos pulmões e no coração A predominância de adoecimento ocorre entre homens — maioria dos agricultores que manuseia as folhas —, não fumantes e trabalhadores que atuam na etapa da colheita.

Por fim, o estudo reivindica que o tema entre definitivamente na agenda de saúde pública do país, o que incluiria elaborar uma alternativa econômica sustentável para as famílias que cultivam o fumo.

 

Como se vê, falta de informação não é desculpa. Aliás, alguns resultados da investigação saíram do nordeste e chegaram ao sul antes de serem publicados pela Fiocruz. Em 2009, o Ministério da Saúde enviou dados à Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul — então, sob o governo da tucana Yeda Crusius — no intuito de difundir orientações a gestores municipais, técnicos de saúde, agricultores e fumageiras.

Naquele mesmo ano, a Secretaria de Vigilância em Saúde do ministério havia mapeado casos de trabalhadores afetados pela doença no município gaúcho de Candelária, que contabilizava quatro mil famílias trabalhando na produção de fumo. A investigação durou 50 dias e, dos 46 casos suspeitos, 33 foram confirmados.

Enquanto isso, o SindiTabaco se vangloria de ter desenvolvido uma vestimenta que “protege” o trabalhador. De acordo com Iro Schünke, presidente da entidade,

em alguns fóruns, especialmente antitabagistas, ouvimos que a nossa vestimenta não protege o produtor contra a doença da folha verde do tabaco. A publicação de um artigo em uma revista de porte desmantela qualquer tipo de argumento nesse sentido, pois referencia todos os testes e parâmetros seguidos com total concordância aos mais elevados critérios científicos internacionais.

O artigo a que Schünke se refere leva o título de “Avaliação da vestimenta-padrão utilizada durante a colheita das folhas do tabaco e implicações na prevenção da Green Tobacco Sickness (gts)”. Assinado por Cristiana Leslie Correa, Giuliana da Fontoura Rodrigues Selmi e Flávio Ailton Duque Zambrone, o texto foi publicado pela Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, da Associação Nacional de Medicina do Trabalho, em 2016. É taxativo quanto à conclusão de que o traje confere ao agricultor 98% de proteção.

Uma corrida de olho até o fim do artigo expõe o problema central: a fonte de financiamento do estudo é o Sindicato da Indústria do Tabaco da Região Sul do Brasil. Ou seja, os pesquisadores tiveram financiamento do SindiTabaco para falar bem do equipamento que a indústria bancou. Além disso, o texto teve o amparo de uma assistência em toxicologia — ou, se preferir, uma consultoria. A Planitox, de Campinas, no interior de São Paulo, pertence ao médico Flávio Zambrone, um dos autores do artigo, que relatava em reportagem de 2012 ter faturado r$ 5 milhões anuais atendendo a gigantes mundiais de agrotóxicos, casos de Basf e Bayer. Zambrone também é coordenador-científico da Força-Tarefa de Avaliação de Risco de Agroquímicos do ilsi Brasil, braço do International Life Sciences Institute, organização supostamente científica criada nos Estados Unidos em 1978 e mantida pelas corporações agroquímicas Arysta, Basf, Bayer, Iharabras e Monsanto. Outras megaempresas, como Coca-Cola, Heinz, Kraft, General Foods e Procter & Gamble, também apoiam o instituto — na verdade, o fundaram, com o objetivo de influenciar políticas públicas de saúde em escala planetária.

Exemplo disso foi apontado num trabalho publicado em 2001 por um comitê de cientistas independentes em parceria com a Organização Mundial da Saúde. O artigo “A indústria do tabaco e os grupos científicos do ilsi: um estudo de caso” delineou uma série de manobras pelas quais a indústria tentou minar os esforços de controle do cigarro nas últimas décadas.

Um dos métodos destacados pelos pesquisadores foi o financiamento das empresas a grupos científicos para manipular o debate público. É apresentada a cronologia das relações do setor fumageiro com o ilsi entre 1983 e 1998. Os resultados mostraram que “funcionários de escritórios sêniores do ilsi” estavam diretamente envolvidos em ações de lobby pró-cigarro, financiadas pelas transnacionais British American Tobacco e Philip Morris, principalmente.

Insistentes, personagens como Iro Schünke seguem a distorcer os fatos até que caibam nos interesses que defendem. Para essas figuras, a doença da folha verde só foi descoberta no Brasil recentemente. “Fomos pioneiros no desenvolvimento de uma vestimenta de colheita adequada para evitar a intoxicação. A vestimenta de colheita que os produtores recebem sai ao preço de custo das empresas”, diz.

Sem fumaça, há ciência

É farta a documentação da doença nos Estados Unidos desde a década de 1970. O pesquidor William Gehlbach publicou, no longínquo 30 de setembro de 1974, o artigo “Green tobacco disease. An illness of tobacco lanyards” [Doença do tabaco verde. Uma doença de colhedores de tabaco, em tradução livre], veiculado no Journal of the American Medical Association, o Jama.. Já neste estudo constavam causas e sintomas da doença, inclusive identificando grande incidência em crianças que, como no Brasil, trabalhavam nas lavouras de tabaco para ajudar os pais. A doença específica relacionada ao tabaco foi identificada primeiro na zona rural do estado da Flórida, em 1970, e compreendida como um mal capaz de causar a inibição de receptores do sistema nervoso central.

A linha do tempo regride ainda mais: o primeiro registro do reconhecimento dos riscos à saúde humana pela produção de tabaco data de 1713. Sim, século 18. De acordo com o artigo “Saúde, ambiente e condições de trabalho na cultura do tabaco: revisão de literatura”, das pesquisadoras Deise Lisboa Riquinho e Elida Azevedo Hennington, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, há mais de 300 anos o médico italiano Bernardino Ramazzini já notava os sintomas da doença, incluindo dor de cabeça e cólicas abdominais, entre trabalhadores de regiões da Itália onde o fumo era cultivado.

No Brasil, uma pesquisa a respeito da ineficácia da vestimenta foi realizada em 2014 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. O estudo foi publicado no American Journal of Industrial Medicine, dos Estados Unidos. Entre os entrevistados nos quais se constatou a doença, 72% não eram fumantes.

O trabalho foi coordenado pela médica Anaclaudia Gastal Fassa, que não encontrou evidências de que as vestes protegessem os agricultores da contaminação. Esse estudo foi feito cinco anos depois da “criação revolucionária” do uniforme que o SindiTabaco tanto comemora.

O Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais, o Deser, do Paraná, também tem o que dizer. Está mais do que comprovado que a produção de fumo — tanto pelo uso intenso de agrotóxicos quanto pela liberação da nicotina nas folhas verdes de tabaco, especialmente nos períodos de colheita — ostenta as maiores causas de mortes e doenças no meio rural. Diversos tipos de câncer, intoxicações, alergias e problemas de ordem psiquiátrica, como a depressão e o suicídio, estão diretamente associados à produção de fumo, como atesta uma análise conduzida pelo Deser em 2010.

Apesar de muitos estudos, a dificuldade em popularizar as descobertas científicas persiste. Não que isso seja um problema exclusivo do Vale do Rio Pardo, no sul, ou de Arapiraca, no nordeste. Muros altos separam a universidade da população em todo o Brasil. Porém, sem dúvida, lugares mais fechados a informações de fora e controlados por uma voz hegemônica que aposta na deseducação e na manipulação de pesquisas tendem a cultivar maior desconhecimento.

Entre 2011 e 2016, por exemplo, 271 casos da doença da folha verde foram detectados no Rio Grande do Sul, número que é considerado artificialmente baixo por todos os pesquisadores citados aqui, uma vez que os sintomas são confundidos com outros males de saúde ou com intoxicação pelo uso de agrotóxicos. O grande índice de subnotificação dificulta o trabalho dos agentes de saúde municipais e facilita a vida da indústria, ávida por se eximir de qualquer responsabilidade.

Pior: a coordenadora do Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia de Pelotas, Rita Surita, explica que, apesar dos riscos, as empresas ainda conseguem manter o discurso sedutor dirigido às famílias, com promessas de aumento de renda e de status nas comunidades. “A ideia é facilitada quando se oferece um pacote tecnológico e de insumos, junto com crédito fácil. Fora que, com o isolamento e a confusão de informações, a culpa de adoecer vai toda para as costas do trabalhador”, avalia.

Já que estamos falando de ciência

O ano era 1962 e surgiam os primeiros movimentos para a criação de uma universidade em Santa Cruz do Sul, no interior do Rio Grande do Sul e coração da região fumageira. A partir da fundação de uma associação de educadores — a Associação Pró-Ensino —, foram abertas as Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul. Trinta e um anos depois, em 1993, vem a transformação em universidade, um projeto de educação superior mais amplo e de personalidade jurídica comunitária, do que se depreende, numa primeira análise, que seja um espaço autônomo do pensar. Com um olhar mais detido e profundo, porém, vê-se que o espaço também não é livre de influências da indústria: um dos pontos decisivos para a alteração de formato foi o apoio das fumageiras, a começar pela doação do terreno que sedia o maior campus da Unisc.

A relação é tão evidente que se traduz no batismo do maior auditório da universidade. A sala 111 do complexo leva o nome de Auditório Souza Cruz. Um ponto “curioso”: embora a região de Santa Cruz tenha relevância econômica clara para o Rio Grande do Sul, não há universidades públicas na região, deixando que a instituição privada prevaleça.

A Unisc serve de apoio às fumageiras até hoje. Em 2006, por exemplo, quando a China Tabacos instalou um escritório no município, a universidade cedeu estrutura e profissionais de pesquisa para se certificar de que a qualidade do fumo estava nos padrões exigidos pelo mercado chinês de cigarros, como explica Pinheiro.

Marco André Cadoná, que foi professor do Departamento de Desenvolvimento Regional da Unisc e hoje trabalha na Universidade Federal de Santa Catarina, comenta o nível de autonomia da instituição:

“Não sei se tenho uma resposta clara para essa questão, mas tendo a dizer que, sim, há uma posição hegemônica na Unisc, e que essa posição, expressão do que se observa na própria região, é de colaboração com o complexo agroindustrial do tabaco, o que, inclusive, cria limitações para um enfrentamento mais crítico das contradições presentes nesse complexo.”

O historiador e professor da Unisc Olgário Vogt explica que existem grupos com posições divergentes na universidade, mas também acredita que a balança penda a favor das fumageiras:

“A Unisc tem um setor mais ligado às humanas, que tem uma visão mais crítica em relação a essa economia daqui. Só que, nessa cidade, se tu falar mal do setor fumageiro, tu também te colocas em um campo em que tu tens inimigos.”

O geógrafo Rogério Leandro de Lima também pondera sobre a questão, mas com uma visão diferente da dos dois colegas: ele acredita na existência de uma pluralidade de pensamento na instituição de ensino superior.

“Nós vamos ter determinados cursos, programas, como é o caso do Desenvolvimento Regional, que têm sempre uma estrutura muito crítica em relação às indústrias, ao modelo de desenvolvimento local, regional. A gente até fica marcado por isso.”

Esse texto foi originalmente publicado como um capítulo do livro “Roucos e sufocados: a indústria do cigarro está viva, e matando”, que traça um retrato do Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, coração da indústria de fumo nacional. É de lá que emana boa parte do discurso — e do lobby — em defesa do cigarro.

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