Tragédias como as de Mariana e Brumadinho, no final das contas, saem barato para gigantes como a Vale. Basta acompanhar o mercado de ações.
O preço das ações de uma empresa na bolsa de valores, uma medida básica sobre o valor da própria empresa, é determinado por uma infinidade de variáveis. Uma, porém, se destaca: a expectativa em relação ao lucro da empresa, por parte dos investidores.
Imagine que uma empresa abre seu capital, oferecendo 100 ações. Se, por qualquer motivo, os investidores acreditam que essa empresa terá um aumento nos seus lucros, os papéis serão um bom investimento. Haverá um aumento na demanda por eles, e o preço unitário das ações sobe. Se por outro lado a expectativa é de queda no lucro da empresa, o público vai querer se livrar desses papéis, provocando uma queda no valor dessas ações.
Uma parte importante dos compradores e vendedores dessas ações é formada por aquilo que chamamos de especuladores. Isto é, indivíduos que não estão interessados no lucro da empresa daqui cinco ou 10 anos, mas estão em comprar as ações a um preço baixo e vender a um preço alto, sendo que tais operações podem ocorrer no intervalo de um único dia.
O valor da Vale já vinha em queda desde 2012. Mas, após a tragédia de Mariana, em novembro de 2015, a empresa – que é dona de 50% do capital da Samarco – perdeu 8% de seu valor de mercado em uma única semana. Naquele ano, aliás, a Vale foi a empresa de capital aberto que mais perdeu valor na bolsa brasileira, com uma queda da ordem de R$ 45,9 bilhões. Essa desvalorização se deveu não apenas à tragédia de Mariana, mas também à queda da cotação do minério de ferro no mercado global.
Mas, a partir de então, as ações da Vale voltaram a subir. No final de 2018, o valor de mercado da empresa fechou em R$ 263 bilhões, quase três vezes mais do que em 2014, antes do desastre, quando era de R$ 107 bi. Tudo leva a crer que deve ocorrer o mesmo com a tragédia de Brumadinho. Tudo será como antes.
Os cadáveres soterrados para sempre naquela lama têm importância mínima para a empresa e seus investidores. Eles são custos já precificados pelos investidores da Vale.
Torcida a favor
Desastres como o de Mariana e Brumadinho são didáticos para contemplar a pior face do capitalismo brasileiro. Neles, se somam ganâncias privadas, a captura do legislativo estadual e federal por poderosos interesses econômicos e a brutal incompetência, corrupção e vistas grossas do poder público.
No meio disso tudo, no trajeto do rio de lama, há não “uma pedra” (como no poema do poeta de Itabira), mas uma flora e uma fauna – incluídos aí os humanos sem nome que, para os atores graúdos envolvidos, não têm importância comparável aos bônus de fim de ano distribuídos pela empresa.
Na economia de mercado, as empresas buscam mais lucros e menos custos. Tratar rejeitos de mineração (ou “dejeitos” no léxico presidencial) é custo, não é receita. Como alertou o professor Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, as mineradoras cortam custos exatamente nessa área ambiental quando sua rentabilidade cai.
A única forma de forçar a empresa a se comportar é por meio da legislação e da pressão social. O público pode se recusar a comprar produtos de uma empresa poluidora, forçando o empresário a se preocupar com o meio ambiente. Esse cenário, porém, não vale para a Vale. Seu comprador é a China, que está a milhares de quilômetros de distância de Minas Gerais. E os governantes que podem puni-la dependem dos seus impostos para pagar os funcionários públicos – o governo de Minas, em especial, está em situação falimentar e não pode abrir mão desse dinheiro.
Segundo dados divulgados pela própria Vale, no primeiro semestre 2018, a empresa pagou R$ 676 milhões em tributos para o governo de Minas, além de ter realizado compras da ordem de R$ 4,9 bilhões – 77% de empresas daquele estado (R$ 3,8 bi). Em 2018, o minério de ferro respondeu a 8,4% das exportações brasileiras – é o terceiro produto mais importante, atrás apenas da soja e do petróleo – e a 30% das de Minas Gerais, o principal produto de exportação do estado. Em 2017, a participação do ferro foi ainda maior: 34% das exportações de Minas.
Ainda que a economia dos mineiros seja bastante sofisticada, especialmente para os padrões brasileiros, é evidente que a mineração é ainda muito importante para sua economia. E poder econômico se traduz sempre em poder político.
Precisando desses recursos e dos empregos diretos e indiretos gerados por projetos da Vale, políticos são incentivados a atender aos desejos dessa empresa gigantesca, inclusive facilitando a concessão de licenças ambientais ou fazendo vista grossa para irregularidades.
Nas eleições de 2014, por exemplo, a Vale “doou” quase R$ 30 milhões para campanhas de deputados federais, notadamente de Minas, Bahia e Pará. Tais doações se dividiram entre PMDB (R$ 13,8 mi), PSB (R$ 5,7 mi), PT (R$ 4,3 mi), PSDB (R$ 3,6 mi) e PP (R$ 1,7 mi). Isso deixa claro que o poder econômico da empresa irriga quase todo o espectro político brasileiro.
Na Assembleia de Minas, o deputado tucano João Vítor Xavier tentou aprovar um projeto que endurecia as regras para liberação de barragens das mineradoras. O texto, amplamente discutido com técnicos e representantes da sociedade civil, foi derrotado, em favor de um projeto virtualmente escrito pelas próprias mineradoras.
Num mundo hipotético – que em nada lembra o Brasil, felizmente –, uma empresa rica pode simplesmente subornar os agentes envolvidos no processo. Desde um simples fiscal de um órgão público, a um juiz encarregado de alguma demanda de seu interesse, passando pelo governador ou presidente. Uma hipótese remota.
É hora de comprar?
Nas páginas especializadas, já há matérias do tipo “É hora de comprar ações da Vale?” Não sou trader, mas eu diria que sim. Afinal, já sabemos que as punições são leves em termos monetários (R$ 250 milhões de multa ambiental, como se diz pela avenida Paulista, é peanuts) e ninguém vai para cadeia (ninguém graúdo, pelo menos).
O que preocupa mesmo os compradores de suas ações é o apetite dos chineses por minério de ferro.
E só.
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