Logo após o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, os prefeitos das 39 cidades atingidas se viram às voltas com questões práticas. Tarefas como garantir água potável, construir abrigos temporários para os desabrigados, limpar as ruas, reparar pontes e postes de luz levados pela avalanche de lama. Por alto, os gastos emergenciais foram calculados em R$ 53 milhões pela Samarco, junção das multimilionárias Vale e a BHP Billiton, que prometeu cobrir essas despesas tão logo fosse possível e depois descontar da futura indenização aos municípios. O deslizamento de 2015 deixou 19 mortos e espalhou rejeito de minério por 650 km de rios, até a foz do rio Doce.
Três anos depois, os prefeitos ainda estão atrás do dinheiro. Mas a estratégia da empresa mudou. Agora, a Fundação Renova, indicada pela Samarco para lidar com as indenizações de Mariana, propõe dar os valores da até então indenização emergencial pela assinatura de um documento em que as prefeituras se comprometem a abandonar qualquer ação em curso contra a Samarco e a não processar a empresa nem agora nem no futuro. Em troca: os municípios têm o dinheiro dos gastos emergenciais enfim depositado.
A pressão tem funcionado: até o fechamento desta reportagem, 19 dos 39 municípios atingidos pelo rompimento da barragem já tinham aceitado o acordo. A Renova tem abordado os prefeitos individualmente, sem a presença dos advogados dos municípios, tentando convencê-los das vantagens de assinar o documento.
“Eles chegam falando ‘não mexe com esse negócio de ação não, amanhã o dinheiro tá na conta, a sua cidade nem tanto dano teve…’”, conta Duarte Gonçalves Jr., do PPS, prefeito da cidade de Mariana que está à frente das negociações desde o início. Segundo ele, muitos prefeitos, sobretudo de cidades menores, com a economia ainda afetada pela contaminação do Rio Doce, têm aceitado o dinheiro da Renova a fim de colocar as contas em dia. Com os mandatos encerrando em dois anos, também não custa aumentar o caixa dos municípios em alguns milhões.
‘O que a Renova está fazendo é defender os interesses de Vale e BHP. Hoje, eu defendo com todas as minhas forças que a fundação precisa acabar. Ela não funciona.’
Duarte foi um dos entusiastas da criação da fundação. Hoje, admite que foi um erro e advoga pela criação de um consórcio direto entre governo federal, estadual, MP e municípios para gerir os recursos para a reparação. “O que a Renova está fazendo é defender os interesses de Vale e BHP. Hoje, eu defendo com todas as minhas forças que a fundação precisa acabar. Ela não funciona”, critica.
Em janeiro, uma nova barragem da Vale rompeu, dessa vez em Brumadinho. Os procuradores do MPF em Minas proibiram a Renova de atuar na região de Brumadinho “sob pena de desvirtuamento de sua finalidade e do enfraquecimento dos programas específicos que buscam debelar as consequências do desastre ambiental da Bacia do Rio Doce”. Em coletiva nesta segunda, eles disseram que há relatos de moradores de que integrantes da fundação estiveram na cidade a fim de propor ações reparadoras e que, caso isso seja confirmado, irão emitir uma recomendação para evitar que o modelo de Mariana seja reproduzido em Brumadinho.
A própria criação da fundação é uma solução pouco comum para um desastre de magnitude e complexidade até então inéditos como o de Mariana. A Renova foi instituída por meio de um acordo entre as mineradoras e os municípios, que precisou ser ajustado em novembro uma vez que ela não estava cumprindo com a sua parte do combinado.
A instituição deveria, de acordo com seu termo de criação, ser independente. Mas, na verdade, é administrada diretamente por ex-executivos da Samarco, dona da barragem, e da Vale, além de ex-servidores de cargos estratégicos dos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo – o que coloca em xeque seu papel como a responsável por reparar os danos causados, atender os atingidos e dar voz ativa de participação nas decisões para as pessoas das cidades afetadas pelo desastre.
Fundação propõe 0,05% da indenização prevista
A estratégia em relação à indenização dos municípios mudou porque a Samarco teme uma ação coletiva já em curso proposta pelo escritório inglês SPG Law, que também tem procurado os municípios atingidos direta e indiretamente pelo rompimento da barragem e já representa 200 mil vítimas e as prefeituras de 24 cidades. Como o Reino Unido é a casa de uma importante subsidiária da BHP, a legislação do país permite que os danos causados pelo rompimento sejam cobrados também pela justiça britânica. Nas contas do escritório inglês, a indenização que deveria ser paga pelas empresas pelos danos causados pela tragédia deve chegar a 5 bilhões de libras (cerca de R$ 24 bilhões). Já o acordo proposto pela Renova para as 39 cidades afetadas é de apenas R$ 53 milhões – ou 0,5% do que prevê a ação movida no Reino Unido.
A SPG Law já conseguiu veredictos contra poderosos como a Volkswagen, Pfizer, Johnson and Johnson, entre outros.
“A justiça inglesa é historicamente mais célere, independente e eficaz. Mas tentaremos agilizar ao máximo os direitos das pessoas atingidas”, diz Tomas Mousinho, advogado do escritório inglês, que espera ter uma decisão em até três anos. Caso ganhe a ação, o escritório deve receber 30% do total. A SPG Law já conseguiu veredictos contra poderosos como a Volkswagen, Pfizer, Johnson and Johnson, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e a British Airways, entre outros.
No Brasil, a ação civil pública do Ministério Público Federal que pede R$ 155 bilhões em reparação foi suspensa em agosto até agosto de 2020 na “tentativa de um acordo mais amplo”, segundo o procurador-geral do Ministério Público de Minas Gerais, Antônio Sérgio Tonet. Outra ação do governo federal que pedia R$ 20 bilhões de multa foi extinta. O que está valendo é um Termo de Ajuste de Conduta, espécie de acordo de cavalheiros entre as partes que determina a participação dos atingidos nas medidas a serem tomadas para a recuperação da região.
Dependência da mineração
Questionada sobre a ação movida pelo escritório inglês, a fundação informou por e-mail que “não reconhece como legítimas ações que tratam dos danos do desastre ajuizadas fora da jurisdição brasileira”. A Renova também defende seu direito de “discutir o ressarcimento diretamente com os municípios, o que tem sido feito desde 2017” e alega em sua defesa que o termo oferecido “explicita em várias cláusulas que a quitação refere-se exclusivamente aos gastos públicos extraordinários”.
Não é o que dizem as cláusulas 8.3, 8.4 e 8.5 do termo de quitação apresentado às prefeituras. Nelas, a Renova exige expressamente que o município desista da ação coletiva movida perante a High Court of Justice em Liverpool – Reino Unido contra a BHP Billiton e suas subsidiárias, “obrigando-se a comunicar tal desistência às Cortes inglesas e a quem mais se fizer necessário”. Também exige que as cidades abram mão de eventuais ações futuras.
“É uma vergonha a tentativa de manipular a justiça brasileira para decidir pelos interesses próprios da Vale e BHP. Ainda querem forçar a gente a negociar em relação a tudo que tiraram de lucro? Eles têm uma obrigação a cumprir”, diz o prefeito Duarte Jr.
Assunto resolvido ‘de forma mediada’
Caratinga, cidade mineira de 91 mil habitantes na região do Vale do Aço, é um dos municípios que aceitaram o acordo proposto pela Renova. De acordo com a prefeitura, em nota enviada à reportagem, o que levou a aceitar o termo da Renova foi “o fato de o recurso proposto ser suficiente para quitar os gastos extraordinários tidos com o rompimento da barragem”. Afetada indiretamente, a cidade comandada pelo prefeito Welington Moreira de Oliveira, do DEM, recebeu R$ 630 mil e espera ser contemplada por recursos como os destinados para o saneamento básico, mas ressalta que “o desejo é que o assunto seja resolvido de forma mediada a fim de evitar ações judiciais”.
Há também municípios tentando uma terceira via. Governador Valadares, maior cidade do trajeto, com 280 mil habitantes, conseguiu na justiça brasileira uma decisão que anula as cláusulas que pedem a retirada de ações no Brasil e no exterior e exige o pagamento imediato de R$ 6,3 milhões propostos pela Renova no acordo inicialmente oferecido à cidade. A decisão foi revogada, levando as ações para a 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, que tem sido favorável à Renova. Ainda cabe recurso. Esses conflitos são recorrentes desde 2015. A briga jurídica permanente, diz Duarte Jr., é justamente o que a Renova quer, adiando ao máximo a reparação e fazendo com que os municípios se desgastem até cederem.
Regência vivia quase que apenas do ecoturismo. A atração acabou. O rio continua repleto de lama.
No Espírito Santo, as cidades Colatina e Linhares, onde o Rio Doce deságua no oceano e em parte do Complexo de Abrolhos, negaram a proposta da Samarco. No caso de Colatina, foram oferecidos R$ 4,3 milhões. No de Linhares, R$ 5,1 milhões. Até o desastre as duas cidades, eram destinos turísticos em expansão. Regência, um pequeno povoado de Linhares, vivia quase que apenas do ecoturismo e da verba trazida pelos surfistas interessados pela pororoca – onda que se forma no encontro de águas doce e salgada. A atração acabou. O rio continua repleto de lama.
A Renova se recusou a responder às perguntas sobre a exigência de abandono das ações judiciais e sobre o possível assédio direto a pessoas atingidas sem a intermediação dos advogados e se ainda se considera independente de Vale e BHP, como seus diretores gostam de alegar. Procurado para comentar o caso, o Ministério Público de Minas Gerais alegou dificuldades de agenda para não atender a reportagem.
Vale e BHP, as duas maiores mineradoras do mundo, registraram lucro líquido de R$ 48 bilhões apenas em 2017. Só para os seus acionistas, a BHP Billiton pagou R$ 17 bilhões no último ano, o que daria cerca de 340 vezes o valor dividido pelas 39 cidades atingidas. Os 40 milhões de metros cúbicos de lama tóxica – cerca de 15.680 piscinas olímpicas – despejados nos 680 km da bacia do Rio Doce até o Oceano Atlântico, no Espírito Santo, são o maior crime ambiental da história do Brasil e o maior desastre com barragens já registrado no mundo, em danos e em extensão. O processo aberto no exterior é a maior ação coletiva da história do Reino Unido, com mais de 250 mil atingidos brasileiros, 21 prefeituras, o povo indígena Krenak e até a Igreja Católica.
Desde o início, Vale e BHP tentaram se afastar ao máximo da responsabilidade pelo desastre, vendendo a ideia de que a Samarco seria uma empresa de governança “independente”. Quando a barragem rompeu, a Samarco era considerada “a melhor mineradora do Brasil” por três anos consecutivos pelo prêmio Melhores & Maiores da revista Exame. Somente em 2014, registrou lucro líquido de R$ 2,8 bilhões de reais, o quinto maior do Brasil naquele ano. Tentar se afastar da Samarco, mais que uma tentativa de preservar a própria imagem, é estratégia jurídica de Vale e BHP. Duas competidoras mundiais que, com o irresistível apelo do lucro da Samarco, deixaram as diferenças de lado.
A Vale e a BHP já anunciaram que a Samarco deve voltar a explorar minério de ferro em 2020.
Além das indenizações e dos crimes ambientais em que as mineradoras foram envolvidas, 21 réus, entre diretores da Samarco, Vale e BHP, respondem também por “homicídio doloso qualificado por motivo torpe, por meio insidioso ou cruel e por meio que tornou impossível a defesa das vítimas”.
A justiça, no entanto, já abre brechas para que eles saiam impunes. José Carlos Martins, vice-presidente do Conselho de Administração da Samarco na época e ex-diretor da Vale durante dez anos, teve a ação penal extinta.
A Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região também atenuou a acusação contra André Ferreira Cardoso, que era representante da BHP no comitê gestor da Samarco. A decisão modificou a classificação jurídica dada pela acusação do Ministério Público Federal de homicídio, cuja pena varia de 12 a 30 anos de prisão, para inundação com resultado de morte, que tem pena máxima de oito anos de prisão. A medida pode valer para os outros executivos acusados. O MPF disse que irá recorrer.
Longe de significar um aprendizado prático para fortalecer a fiscalização e a rigidez em licenciamentos, como nos mostra Brumadinho, hoje o Brasil tem 45 barragens com risco iminente de desabamento – 80% a mais que 2017 – e 723 classificadas como de risco e potencial de dano alto. Mais: só 3% das 24.092 barragens existentes foram fiscalizadas em 2017 pelos agentes federais ou estaduais. A Agência Nacional de Mineração tem apenas 5 servidores especializados em geotecnia para fazer vistorias. A barragem de Fundão era classificada como de risco “baixo”. O que dá a exata medida do tamanho do problema que o país enfrenta.
Enquanto isso, a Vale – que encheu o peito para afirmar no começo de 2018 que o estado de suas barragens era “impecável” – e a BHP já anunciaram que a Samarco deve voltar a explorar minério de ferro no início de 2020.
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