Fernanda ajudou a criar a primeira ala para a população LGBT dentro de um presídio em Pernambuco.

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Ela sobreviveu à transfobia. Agora, transforma as prisões em lugares mais seguros para os LGBTs.

Mas essa ex-detenta está ajudando a criar ambientes mais seguros para os LGBT presos.

Fernanda ajudou a criar a primeira ala para a população LGBT dentro de um presídio em Pernambuco.

Quando criança, o hobby de Fernanda Falcão era estudar. A avó da jovem era professora em um colégio de classe média alta na zona norte do Recife, que ela – ainda como um garoto – frequentava. “Por perceber que eu era ‘diferente’, minha avó me protegia. Ela percebia o olhar das pessoas para mim e não me deixava brincar com as outras crianças, com medo de que eu apanhasse por ser como eu era”, conta.

A rotina de estudante só durou até o primeiro ano do ensino médio. Depois de sua primeira relação sexual, aos 15 anos, ela foi expulsa de casa e foi morar com seu companheiro. Começou a se prostituir para se sustentar e terminar os estudos. Com 18 anos, havia concluído os cursos técnicos em Enfermagem e Química Industrial – mas não conseguiu se livrar das passagens pelo sistema penitenciário.

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Foi presa duas vezes, aos 18 e aos 23 anos, enquanto se prostituía, acusada de tráfico de drogas. Na última, quando ficou detida por três anos e três meses, aproveitou para concluir seu trabalho de conclusão de curso de Enfermagem sobre doenças negligenciadas no sistema prisional. Seu interesse pelo tema veio de sua própria história: estuprada, Fernanda havia sido contaminada com HIV dentro da cadeia naquele mesmo ano.

Um espaço (um pouco) menos perigoso

A vida em liberdade já é hostil com a população LGBT. Mas a violência, dentro da cadeia, é ainda pior. É comum que as pessoas LGBT presas sofram desde agressões verbais, como xingamentos e comentários maldosos, até violência física e sexual, como aconteceu com Fernanda.

“Eu reagi ao estupro e introduziram no meu ânus um pedaço de cabo de vassoura com uma colher amarrada na ponta. Fiquei tão machucada, que foi preciso dois homens me segurarem, para que eu ficasse em pé, enquanto um dos presos me violentava”, conta. “Foi ele quem me transmitiu o HIV.”

No final de 2012, Fernanda e outros 15 presos LGBT começaram uma mobilização para que o presídio de Igarassu construísse uma área específica para eles. Deu certo. A unidade prisional na grande Recife foi a primeira de Pernambuco a inaugurar uma área específica para essa população, em 2013. Hoje, nove dos 23 presídios pernambucanos têm celas separadas para presos LGBT.

Ninguém sabe o tamanho do problema

A maior parte da população LGBT presa é formada por negros, jovens e sem ensino fundamental completo. São presos, principalmente, por tráfico de drogas. Os dados são de um levantamento inédito feito pelo Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo, o GTP+, primeira ONG do nordeste a cuidar de pessoas vivendo com o HIV. Fernanda, hoje articuladora política da organização, foi uma das responsáveis por aplicar os questionários dentro das prisões para viabilizar a pesquisa.

De acordo com a Secretaria Executiva de Ressocialização, a Seres, ligada ao governo pernambucano, nessas unidades, 104 pessoas se reconhecem como LGBTs, 231 vivem com o HIV e 13 são LGBTs e soropositivas.

Assim como Fernanda – que passou mais de três anos presa sem julgamento – 62% dos entrevistados são presos provisórios. “Isso reflete o todo da população carcerária de Pernambuco, em que 51% ainda não tiveram julgamento, diz o advogado e coordenador do projeto, Lucas Enock. No Brasil, a taxa de presos provisórios é de 40%.

As condições da população LGBT presa são agravadas pela falta de estrutura – na prisão, falta até camisinha, segundo a ONG. Os preservativos vêm do Ministério da Saúde para os estados, mas não são distribuídos de maneira suficiente dentro as prisões. Mais de 50% dos presos LGBT não usam preservativo em relações sexuais.

Lá dentro, 42 vezes mais HIV+

Na primeira vez que chegou para atuar no sistema prisional, o médico Bruno Ishigami, residente de Infectologia do Hospital Oswaldo Cruz, ficou chocado. “A gente só entende como funciona um presídio quando se está lá dentro. É um ambiente desumano, superlotado, muito úmido, com lógicas diferentes de funcionamento, dependendo da unidade”, disse.

De acordo com um levantamento de 2015, realizado pela ONG internacional Human Rights Watch, a prevalência de infecção pelo vírus HIV nas prisões pernambucanas é 42 vezes maior que a média observada na população brasileira; a de tuberculose chega a ser quase 100 vezes maior.

No sistema prisional pernambucano, com cerca de 34 mil presos, 319 detentos recebem tratamento para o vírus, segundo a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.

De acordo com Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, divulgado no final de 2017, Pernambuco tem a maior proporção de presos para cada agente de custódia: 35 para um. O Ministério da Justiça recomenda cinco presos para um agente.

A falta de agentes cria ambientes caóticos dentro dos presídios. Até uma consulta médica, conta Ishigami, depende de autorização do “chaveiro”, como é chamado o preso responsável pelas celas. Isso faz com que, embora a incidência de doenças seja alta, os presos tenham tratamento aquém do necessário.

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Ela sentiu na pele a violência e o preconceito. Hoje, luta para que outros não sofram o que ela sofreu.

Ed Machado/The Intercept Brasil

“Há um estigma sobre quem tem o vírus do HIV, assim como do lado de fora, e muitos presos não se tratam, com medo de sofrerem represálias. O presídio é uma caricatura feia do que é a sociedade”, diz o médico.

O médico infectologista Rafael Sacramento começou a trabalhar nos presídios pernambucanos em 2016, depois de uma intervenção da Corte de Direitos Humanos. Cinco anos antes, a Pastoral Carcerária de Pernambuco havia feito uma denúncia internacional sobre violações de direitos humanos no complexo penitenciário do Curado.

“O sistema é brutal, principalmente para os que são considerados ‘menos úteis’, como travestis, transexuais e homossexuais”, ele diz. ” A violência sexual é uma forma de humilhação e de pagamento de dívidas dentro de um ambiente extremamente machista, onde só respeita a figura da mãe.”

Segundo o médico, há uma certa harmonia entre os presos, que dividem celas com até outros 100 homens – desde que heterossexuais. “Há uma extrema necessidade de extravasar toda a raiva na população LGBT”, diz. Em 2017, ele chegou a atender uma mulher trans estuprada por cerca de 60 homens no Presídio Juiz Antônio Luiz Lins de Barros.

A vida do lado de fora

Fernanda Falcão ganhou a liberdade em 2017. Foi inocentada. A vida do lado de fora, no entanto, ainda é hostil. O cenário de desemprego é ainda mais devastador entre a população transexual. É por isso que estima-se que 90% das pessoas transexuais já tiveram de recorrer à prostituição em algum momento da vida. “Você permanece na prostituição e a partir dessa prostituição, outras vulnerabilidades aparecem, como o uso de drogas, porque muitos homens têm prazer em ver você usando. Aí você topa, porque você tá com fome e precisa do dinheiro”, diz ela.

A ativista, no entanto, foi exceção. Ela se tornou coordenadora de articulação política do GTP+ e tem viajado pelo país para discutir políticas públicas para LGBTs e para pessoas que convivem com o vírus da Aids. Ela é responsável por parcerias estaduais e por criar campanhas de conscientização sobre o HIV. Também atua em três presídios da região metropolitana de Recife orientando os detentos sobre tuberculose.

O maior desejo dela ainda é concluir a graduação em Enfermagem. O curso está suspenso por falta de dinheiro.

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