Elliott Abrams, esquerda, escuta o SecretĂĄrio de Estado Mike Pompeo falar sobre a Venezuela no Departamento de Estado, em Washington, D.C., em 25 de janeiro de 2019.

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Escolhido de Trump para levar “democracia” à Venezuela passou a vida esmagando a democracia

Indicação de Elliott Abrams é uma mensagem clara: o governo Trump pretende brutalizar a Venezuela, enquanto proclama o amor dos EUA pelos direitos humanos.

Elliott Abrams, esquerda, escuta o SecretĂĄrio de Estado Mike Pompeo falar sobre a Venezuela no Departamento de Estado, em Washington, D.C., em 25 de janeiro de 2019.

Em 11 de dezembro de 1981, em El Salvador, uma unidade militar salvadorenha criada e treinada pelo ExĂ©rcito dos EUA começou a abater todas as pessoas que encontrou em um vilarejo remoto chamado El Mozote. Antes de assassinar as mulheres e as meninas, os soldados as estupravam repetidamente, incluindo algumas de apenas 10 anos de idade, brincando que suas preferidas eram as de 12 anos. Uma testemunha descreveu um soldado atirando uma criança de 3 anos para o alto e a empalando com sua baioneta. O nĂșmero final de mortos foi de mais de 800 pessoas.

O dia seguinte, 12 de dezembro, foi o primeiro dia de trabalho para Elliott Abrams como secretário de Estado adjunto para os direitos humanos e assuntos humanitários no governo Reagan. Abrams entrou em ação, ajudando a encobrir o massacre. Em depoimento ao Senado, Abrams disse que notícias a respeito do que havia acontecido “não tinham credibilidade” e que tudo estava sendo “significativamente mal utilizado” como propaganda por guerrilheiros antigovernamentais.

Na sexta-feira passada, o secretário de Estado Mike Pompeo nomeou Abrams como enviado especial dos Estados Unidos para a Venezuela. Segundo Pompeo, Abrams “será responsável por todas as coisas relacionadas aos nossos esforços para restaurar a democracia” na nação rica em petróleo.

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A escolha de Abrams envia uma mensagem clara Ă  Venezuela e ao mundo: o governo Trump pretende brutalizar a Venezuela, ao mesmo tempo em que produz um fluxo de discursos obsequiosos sobre o amor dos Estados Unidos pela democracia e os direitos humanos. Combinar esses dois fatores – a brutalidade e a magnanimidade – Ă© a principal competĂȘncia de Abrams.

Anteriormente, Abrams serviu em uma infinidade de funçÔes nos governos de Ronald Reagan e George W. Bush, muitas vezes com tĂ­tulos declarando foco na moralidade. Primeiro, foi secretĂĄrio de Estado adjunto para assuntos de organização internacional (em 1981); depois, o cargo de “direitos humanos” do departamento de Estado mencionado acima (de 1981 a 1985); secretĂĄrio de Estado adjunto para assuntos interamericanos (de 1985 a 1989); diretor-sĂȘnior de democracia, direitos humanos e operaçÔes internacionais do Conselho de Segurança Nacional (de 2001 a 2005); e, finalmente, consultor adjunto de segurança nacional de Bush para a estratĂ©gia da democracia global (de 2005 a 2009).

Nessas posiçÔes, Abrams participou de muitos dos atos mais sinistros da polĂ­tica externa norte-americana dos Ășltimos 40 anos, sempre proclamando o quanto se importava com os estrangeiros que ele e seus amigos estavam assassinando. Em retrospecto, Ă© inquietante ver como Abrams quase sempre esteve presente quando as açÔes dos EUA eram mais sĂłrdidas.

Abrams, graduado do Harvard College e da Harvard Law School, juntou-se à administração Reagan em 1981, aos 33 anos. Logo recebeu uma promoção devido a um golpe de sorte: Reagan queria nomear Ernest Lefever como secretário de Estado adjunto para os direitos humanos e assuntos humanitários, mas a nomeação de Lefever encalhou quando dois de seus irmãos revelaram que ele acreditava que os afro-americanos eram “inferiores, intelectualmente falando”. Um Reagan decepcionado foi forçado a recorrer a Abrams como segunda opção.

Uma preocupação central da administração Reagan na Ă©poca era a AmĂ©rica Central – em particular, as quatro naçÔes adjacentes de Guatemala, El Salvador, Honduras e NicarĂĄgua. Todas haviam sido dominadas desde a sua fundação por minĂșsculas elites brancas e cruĂ©is, com um sĂ©culo de ajuda das intervençÔes dos EUA. Em cada um desses paĂ­ses, as famĂ­lias dominantes viam os outros habitantes de sua sociedade como animais de forma humana, que podiam ser usados ou mortos, conforme necessĂĄrio.

PorĂ©m, pouco antes da posse de Reagan, Anastasio Somoza, o ditador da NicarĂĄgua e aliado dos EUA, foi derrubado por uma revolução socialista. Os reaganistas viram isso racionalmente como uma ameaça aos governos dos vizinhos da NicarĂĄgua. Todos os paĂ­ses tinham grandes populaçÔes que, da mesma forma, nĂŁo gostavam de trabalhar nas plantaçÔes de cafĂ© ou de ver os filhos morrerem de doenças facilmente tratĂĄveis. Alguns pegariam em armas e alguns simplesmente tentariam manter a cabeça baixa, mas todos, do ponto de vista dos guerreiros frios da Casa Branca, eram provavelmente “comunistas” recebendo ordens de Moscou. Eles precisavam aprender uma lição.

Parentes e moradores do vilarejo realizam um funeral para enterrar os restos mortais de 21 pessoas mortas no massacre de El Mozote de 1981, em 10 de dezembro de 2016.

Parentes e moradores do vilarejo realizam um funeral para enterrar os restos mortais de 21 pessoas mortas no massacre de El Mozote de 1981, em 10 de dezembro de 2016.

Foto: Marvin Recinos/AFP/Getty Images

El Salvador

O extermĂ­nio de El Mozote foi apenas uma gota no rio do que aconteceu em El Salvador durante os anos 1980. Cerca de 75 mil salvadorenhos morreram durante o que Ă© chamado de “guerra civil”, embora quase todos os assassinatos tenham sido perpetrados pelo governo e seus esquadrĂ”es da morte.

Os nĂșmeros por si sĂł nĂŁo contam a histĂłria toda. El Salvador Ă© um paĂ­s pequeno, do tamanho do estado norte-americano de Nova Jersey. O nĂșmero equivalente de mortes nos EUA seria de quase 5 milhĂ”es. AlĂ©m disso, o regime salvadorenho continuamente se engajou em atos de barbĂĄrie tĂŁo hediondos que nĂŁo hĂĄ equivalente contemporĂąneo, exceto talvez o ISIS. Em uma ocasiĂŁo, um padre catĂłlico relatou que uma camponesa deixou brevemente seus trĂȘs filhos pequenos aos cuidados de suas mĂŁe e irmĂŁ. Quando voltou, descobriu que todos os cinco haviam sido decapitados pela guarda nacional salvadorenha. Seus corpos estavam sentados ao redor de uma mesa, com as mĂŁos postas nas cabeças diante deles, “como se cada corpo estivesse acariciando a prĂłpria cabeça”. A mĂŁo de um, uma criança pequena, aparentemente continuava escorregando da cabecinha, de modo que havia sido pregada nela. No centro da mesa, havia uma grande tigela cheia de sangue.

A crĂ­tica da polĂ­tica dos EUA na Ă©poca nĂŁo estava confinada Ă  esquerda. Durante esse perĂ­odo, Charles Maechling Jr., que havia liderado o planejamento do departamento de contra-insurgĂȘncia durante a dĂ©cada de 1960, escreveu no Los Angeles Times que os EUA estavam apoiando “oligarquias semelhantes Ă  mĂĄfia” em El Salvador e em outros lugares e eram diretamente cĂșmplices em “mĂ©todos dos esquadrĂ”es de extermĂ­nio de Heinrich Himmler”.

Abrams foi um dos arquitetos da polĂ­tica do governo Reagan de apoio total ao governo salvadorenho. Ele nĂŁo tinha escrĂșpulos em relação a nada disso nem piedade de quem escapasse do matadouro salvadorenho. Em 1984, soando exatamente como os funcionĂĄrios de Trump hoje, Abrams explicou que os salvadorenhos que estavam nos EUA ilegalmente nĂŁo deveriam receber nenhum tipo de status especial. “Alguns grupos argumentam que imigrantes ilegais que sĂŁo enviados de volta a El Salvador enfrentam perseguição e muitas vezes a morte”, ele disse Ă  CĂąmara dos Deputados. “Obviamente, nĂŁo acreditamos nessas alegaçÔes, ou nĂŁo deportarĂ­amos essas pessoas.”

Mesmo fora do cargo, 10 anos apĂłs o massacre de El Mozote, Abrams expressou dĂșvidas de que algo desagradĂĄvel houvesse ocorrido lĂĄ. Em 1993, quando uma comissĂŁo da verdade das NaçÔes Unidas descobriu que 95% dos atos de violĂȘncia ocorridos em El Salvador desde 1980 haviam sido cometidos por amigos de Abrams no governo salvadorenho, ele chamou o que ele e seus colegas no governo Reagan haviam feito de uma “realização fabulosa”.

A Fundação de Antropologia Forense da Guatemala examina sacolas de fotografias soltas dos arquivos da polícia nacional em 27 de julho de 2006, estudando as atrocidades cometidas pela polícia e os assassinatos cometidos durante os 30 anos de guerra civil na Guatemala.

A Fundação de Antropologia Forense da Guatemala examina sacolas de fotografias soltas dos arquivos da polícia nacional em 27 de julho de 2006, estudando as atrocidades cometidas pela polícia e os assassinatos cometidos durante os 30 anos de guerra civil na Guatemala.

Foto: Sarah L. Voisin/The Washington Post/Getty Images

Guatemala

A situação na Guatemala durante os anos 1980 era praticamente a mesma, assim como as açÔes de Abrams. Depois que os EUA arquitetaram a derrubada do presidente democraticamente eleito da Guatemala em 1954, o paĂ­s havia sucumbido a um pesadelo em torno de ditaduras militares. Entre 1960 e 1996, em outra “guerra civil”, 200 mil guatemaltecos foram mortos – o equivalente a talvez 8 milhĂ”es de pessoas nos Estados Unidos. Uma comissĂŁo da ONU descobriu depois que o estado guatemalteco foi responsĂĄvel por 93% das violaçÔes dos direitos humanos.

EfraĂ­n RĂ­os Montt, que serviu como presidente da Guatemala no inĂ­cio dos anos 1980, foi considerado culpado em 2013 pelo sistema de justiça da prĂłpria Guatemala de cometer genocĂ­dio contra os indĂ­genas maias do paĂ­s. Durante a administração de RĂ­os Montt, Abrams pediu o levantamento de um embargo Ă s remessas de armas dos EUA para a Guatemala, alegando que RĂ­os Montt havia “trazido progresso considerĂĄvel”. Os EUA tiveram de apoiar o governo guatemalteco, argumentou Abrams, porque “se assumirmos a atitude de ‘nĂŁo nos procurem atĂ© estarem perfeitos, vamos nos afastar desse problema atĂ© que a Guatemala tenha um registro de direitos humanos perfeito’, e deixaremos na mĂŁo as pessoas que estĂŁo tentando progredir”. Um exemplo das pessoas que estavam fazendo um esforço honesto, segundo Abrams, era RĂ­os Montt. Graças a RĂ­os Montt, “houve uma tremenda mudança, especialmente na atitude do governo em relação Ă  população indĂ­gena”. (A condenação de RĂ­os Montt foi mais tarde anulada pela mais alta corte civil da Guatemala, e ele morreu antes que um novo julgamento pudesse terminar.)

NicarĂĄgua

Abrams se tornaria mais conhecido por seu envolvimento entusiasmado com o esforço do governo Reagan para derrubar o revolucionĂĄrio governo sandinista da NicarĂĄgua. Ele defendeu a invasĂŁo total da NicarĂĄgua em 1983, imediatamente apĂłs o bem-sucedido ataque dos Estados Unidos Ă  pequena nação insular de Granada. Quando o Congresso cortou fundos para os Contras, força guerrilheira antissandinista criada pelos Estados Unidos, Abrams conseguiu persuadir o sultĂŁo de Brunei a desembolsar US$ 10 milhĂ”es pela causa. Infelizmente, Abrams, agindo sob o codinome “Kenilworth”, forneceu ao sultĂŁo o nĂșmero errado da conta bancĂĄria na Suíça, de modo que o dinheiro foi transferido para um beneficiĂĄrio sortudo aleatĂłrio.

Abrams foi questionado pelo Congresso sobre suas atividades relacionadas aos contras e mentiu abundantemente. Mais tarde, ele se declarou culpado de duas acusaçÔes de retenção de informaçÔes. Uma era sobre o sultão e seu dinheiro, e outra, sobre o conhecimento de Abrams de um avião C-123 de reabastecimento dos contras que havia sido abatido em 1986. Em uma bela rima histórica com sua nova função na administração Trump, Abrams jå havia tentado obter dois C-123 para os contras dos militares da Venezuela.

Abrams recebeu uma sentença de 100 horas de prestação de serviço comunitĂĄrio e considerou todo o caso como uma injustiça de proporçÔes cĂłsmicas. Logo escreveu um livro em que descreveu seu monĂłlogo interior sobre seus acusadores, que dizia: “Seus desgraçados miserĂĄveis e imundos, seus sanguessugas!” Mais tarde, ele foi perdoado pelo presidente George H. W. Bush na saĂ­da dele apĂłs perder a eleição de 1992.

PanamĂĄ

Embora isso esteja esquecido agora, antes dos Estados Unidos invadirem o Panamá para derrubar Manuel Noriega em 1989, este era um aliado próximo dos EUA – apesar de a administração Reagan saber que ele era um traficante de drogas em larga escala.

Em 1985, Hugo Spadafora, uma figura popular no PanamĂĄ e seu ex-vice-ministro da saĂșde, acreditava ter obtido provas do envolvimento de Noriega no trĂĄfico de cocaĂ­na. Ele estava em um ĂŽnibus a caminho da Cidade do PanamĂĄ para tornĂĄ-las pĂșblicas quando foi capturado por capangas de Noriega.

De acordo com o livro “Overthrow” (Derrubada), do ex-correspondente do New York Times, Stephen Kinzer, a inteligĂȘncia dos EUA pegou Noriega dando aos seus subalternos a permissĂŁo para derrubar Spadafora como “um cĂŁo raivoso”. Spadafora foi torturado durante uma longa noite e teve a cabeça serrada enquanto ainda estava vivo. Quando o corpo foi encontrado, o estĂŽmago de Spadafora estava cheio de sangue que ele engoliu.

Foi algo tĂŁo terrĂ­vel que chamou a atenção das pessoas. Mas Abrams saltou em defesa de Noriega, impedindo o embaixador dos EUA no PanamĂĄ de aumentar a pressĂŁo sobre o lĂ­der panamenho. Quando o irmĂŁo de Spadafora convenceu o hiperconservador senador do Partido Republicano da Carolina do Norte, Jesse Helms, a realizar audiĂȘncias no PanamĂĄ, Abrams disse a Helms que Noriega estava “sendo realmente Ăștil para nĂłs” e “nĂŁo era um problema tĂŁo grande assim. 
 Os panamenhos prometeram que vĂŁo nos ajudar com os contras. Se vocĂȘ fizer as audiĂȘncias, isso os alienará”.

… E isso nĂŁo Ă© tudo

Abrams tambĂ©m se envolveu em conduta ilegal por nenhuma razĂŁo discernĂ­vel, talvez apenas para ficar em forma. Em 1986, uma jornalista colombiana chamada Patricia Lara foi convidada aos EUA para participar de um jantar de homenagem a escritores que haviam promovido “o entendimento interamericano e a liberdade de informação”. Quando Lara chegou ao aeroporto Kennedy, em Nova York, foi levada sob custĂłdia e depois colocada em um aviĂŁo de volta para casa. Logo depois, Abrams apareceu no programa “60 minutos” para alegar que Lara era membro dos “comitĂȘs dirigentes” do M-19, um movimento guerrilheiro colombiano. Ainda segundo Abrams, ela era tambĂ©m “uma ligação ativa” entre o M-19 “e a polĂ­cia secreta cubana”.

Dada a frequente violĂȘncia paramilitar de direita contra os repĂłrteres colombianos, isso representou um alvo marcado nas costas de Lara. NĂŁo houve evidĂȘncia de que as afirmaçÔes de Abrams fossem verdadeiras – o prĂłprio governo conservador da ColĂŽmbia as negou – e nenhuma apareceu desde entĂŁo.

Os enganos sem fim e desavergonhados de Abrams desgastaram repĂłrteres americanos. “Eles diziam que preto era branco”, explicou mais tarde Joanne Omang, do Washington Post, sobre Abrams e seu colega na Casa Branca, Robert McFarlane. “Embora tivesse usado todos os meus recursos profissionais, enganei meus leitores.” Omang ficou tĂŁo exausta com a experiĂȘncia, que largou o emprego tentando descrever o mundo real para tentar escrever ficção.

ApĂłs a condenação, Abrams passou a ser visto como um problema que nĂŁo podia retornar ao governo. Isso o subestimou. O almirante William J. Crowe Jr., ex-comandante dos chefes de estado maior conjunto, envolveu-se ferozmente com Abrams em 1989 sobre a polĂ­tica dos EUA quanto a Noriega, depois que ficou claro que ele era mais problemĂĄtico do que era possĂ­vel aceitar. Crowe se opĂŽs fortemente Ă  brilhante ideia que Abrams havia apresentado: de que os Estados Unidos deveriam estabelecer um governo no exĂ­lio em solo panamenho, o que exigiria a guarda de milhares de soldados norte-americanos. Foi algo profundamente estĂșpido, Crowe disse, mas isso nĂŁo importava. Prescientemente, Crowe emitiu um aviso sobre Abrams: “Esta cobra Ă© difĂ­cil de matar”.

Nancy Brinker, Dick Cheney, Elliott Abrams, Condoleezza Rice e Stephen Hadley no salĂŁo oval enquanto o entĂŁo presidente George W. Bush se reĂșne com o lĂ­der do parlamento libanĂȘs em 4 de outubro de 2007.

Nancy Brinker, Dick Cheney, Elliott Abrams, Condoleezza Rice e Stephen Hadley no salĂŁo oval enquanto o entĂŁo presidente George W. Bush se reĂșne com o lĂ­der do parlamento libanĂȘs em 4 de outubro de 2007.

Foto: Dennis Brack-Pool/Getty Images

Para a surpresa dos iniciados mais ingĂȘnuos de Washington, Abrams estava de volta Ă  ativa logo depois de George W. Bush entrar na Casa Branca. Como poderia ser difĂ­cil obter aprovação do Senado para alguĂ©m que havia enganado o Congresso, Bush o colocou em um cargo no Conselho de Segurança Nacional – onde nĂŁo era necessĂĄria qualquer aprovação do Legislativo. Assim como ocorrera 20 anos antes, Abrams recebeu um portfĂłlio envolvendo “democracia” e “direitos humanos”.

Venezuela

No inĂ­cio de 2002, o presidente da Venezuela, Hugo ChĂĄvez, havia se tornado profundamente irritante Ă  Casa Branca de Bush, que estava repleta de veteranos das batalhas dos anos 1980. Naquele mĂȘs de abril, de repente, do nada, ChĂĄvez foi expulso do poder em um golpe. Se e como os EUA estavam envolvidos ainda nĂŁo Ă© conhecido, e provavelmente nĂŁo serĂĄ por dĂ©cadas atĂ© que os documentos relevantes sejam desclassificados. Mas, com base nos cem anos anteriores, seria surpreendente que os Estados Unidos nĂŁo tenham desempenhado nenhum papel nos bastidores. Pelo que se sabe, na Ă©poca, o London Observer relatou que “a figura crucial em torno do golpe foi Abrams”, e ele “deu um aceno” aos conspiradores. De qualquer modo, ChĂĄvez teve apoio popular suficiente para conseguir se reagrupar e voltar ao cargo em questĂŁo de dias.

IrĂŁ

Aparentemente, Abrams desempenhou um papel importante no silenciamento de uma proposta de paz do IrĂŁ em 2003, logo apĂłs a invasĂŁo do Iraque pelos EUA. O plano chegou por fax, e deveria ter ido para Abrams e depois para Condoleezza Rice, na Ă©poca conselheira de segurança nacional de Bush. Em vez disso, de alguma forma, a proposta nunca chegou Ă  mesa de Rice. Quando perguntado a respeito disso mais tarde, o porta-voz de Abrams respondeu que ele “nĂŁo tinha lembrança de qualquer fax do tipo”. (Abrams, como tantas pessoas que prosperam no nĂ­vel mais alto da polĂ­tica, tem uma memĂłria terrĂ­vel para qualquer coisa polĂ­tica. Em 1984, ele disse a Ted Koppel que nĂŁo conseguia se lembrar se os EUA haviam investigado relatos de massacres em El Salvador. Em 1986, quando perguntado pelo comitĂȘ de inteligĂȘncia do Senado se havia discutido a arrecadação de fundos para os contras com qualquer pessoa da equipe do Conselho de Segurança Nacional, tambĂ©m nĂŁo conseguiu se lembrar.)

Israel e Palestina

Abrams também esteve no centro de outra tentativa de frustrar o resultado de uma eleição democråtica, em 2006. Bush havia pressionado por eleiçÔes legislativas na Cisjordùnia e em Gaza para dar à Fatah, a organização palestina altamente corrupta liderada pelo sucessor de Yasser Arafat, Mahmoud Abbas, uma legitimidade muito necessåria. Para surpresa de todos, o rival do Fatah, o Hamas, ganhou, dando-lhe o direito de formar um governo.

Esse desagradĂĄvel surto de democracia nĂŁo foi aceitĂĄvel para o governo Bush, em especial para Rice e Abrams. Eles elaboraram um plano para formar uma milĂ­cia da Fatah para assumir a Faixa de Gaza e esmagar o Hamas em seu territĂłrio. Como relatado pela Vanity Fair, isso envolveu muita tortura e execuçÔes. Mas o Hamas combateu o Fatah com sua prĂłpria ultraviolĂȘncia. David Wurmser, neoconservador que trabalhava para Dick Cheney na Ă©poca, disse Ă  Vanity Fair: “Parece-me que o que aconteceu nĂŁo foi tanto um golpe do Hamas, mas uma tentativa de golpe do Fatah que foi esvaziada antes que pudesse acontecer”. No entanto, desde entĂŁo, esses eventos foram virados de cabeça para baixo pela mĂ­dia dos EUA, com o Hamas sendo apresentado como o agressor.

Embora o plano dos EUA nĂŁo tenha sido um sucesso total, tambĂ©m nĂŁo foi um fracasso total da perspectiva dos Estados Unidos e de Israel. A guerra civil palestina dividiu a CisjordĂąnia e Gaza em duas entidades, com governos rivais em ambos. Nos Ășltimos 13 anos, houve poucos sinais da unidade polĂ­tica necessĂĄria para que os palestinos tivessem uma vida digna para si mesmos.

Abrams então deixou o cargo com a saída de Bush. Mas agora está de volta para uma terceira rodada pelos corredores do poder – com os mesmos tipos de esquemas que executou nas duas primeiras vezes.

Recapitulando a vida de mentiras e crueldade de Abrams, Ă© difĂ­cil imaginar o que ele poderia dizer para justificĂĄ-la. Mas ele tem uma defesa para tudo o que fez – e Ă© uma boa defesa.

O ano era 1995. Um jovem Elliott Abrams nos ensinou como rir. Como um manĂ­aco. Quando Allan Nairn falou de seu envolvimento no assassinato e tortura massivas dos povos indĂ­genas na Guatemala.

Em 1995, Abrams apareceu no “The Charlie Rose Show” com Allan Nairn, um dos repĂłrteres americanos mais versados sobre a polĂ­tica externa dos EUA. Nairn observou que George H. W. Bush jĂĄ havia discutido colocar Saddam Hussein em julgamento por crimes contra a humanidade. Essa era uma boa ideia, disse Nairn, mas “se vocĂȘ Ă© sĂ©rio, precisa ser imparcial” – o que significaria tambĂ©m processar funcionĂĄrios como Abrams.

Abrams riu diante do absurdo de tal conceito. Isso exigiria, disse ele, “colocar todos os funcionĂĄrios americanos que venceram a Guerra Fria no banco dos rĂ©us”.

Abrams estava em grande parte certo. A realidade angustiante Ă© que Abrams nĂŁo Ă© um bandido isolado, mas um respeitado e honrado membro da centro-direita do establishment da polĂ­tica externa dos EUA. Seus primeiros empregos antes de ingressar no governo Reagan foram trabalhar para dois senadores democratas, Henry Jackson e Daniel Moynihan. Ele era um membro sĂȘnior do conselho centrista de relaçÔes exteriores. Ele Ă© membro da comissĂŁo dos EUA sobre liberdade religiosa internacional e agora estĂĄ no conselho do National Endowment for Democracy. Ele deu aulas Ă  prĂłxima geração de funcionĂĄrios de polĂ­tica externa na Escola de Serviço Exterior da Universidade de Georgetown. Ele nĂŁo enganou Reagan e George W. Bush de alguma forma – eles queriam exatamente o que Abrams fornecia.

Portanto, nĂŁo importam os detalhes macabros da carreira de Abrams, o importante a ser lembrado – conforme a ĂĄguia americana aperta suas garras afiadas em torno de outro paĂ­s da AmĂ©rica Latina – Ă© que Abrams nĂŁo Ă© tĂŁo excepcional assim. Ele Ă© sobretudo uma engrenagem em uma mĂĄquina. É a mĂĄquina que Ă© o problema, nĂŁo suas partes mal intencionadas.

Tradução: Cåssia Zanon

Correção: 5 de fevereiro de 2019 às 15h30

Uma versĂŁo anterior deste texto se referia aos nativos da Guatemala como “população indiana” em vez de “população indĂ­gena”.

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