Em novembro, quando se colocou diante de um batalhão de jornalistas para uma entrevista coletiva, o ainda juiz Sergio Moro – que havia então acabado de aceitar ser ministro de Jair Bolsonaro – deixou claro: “Ele [Bolsonaro] dá a última palavra. Sou uma pessoa disposta a ouvir e eventualmente mudar meus posicionamentos. Tenho bem presente que há uma relação de subordinação.”
Foi difícil não lembrar daquelas palavras nesta segunda-feira, quando o Ministério da Justiça e Segurança Pública, comandado por Moro, colocou no ar um documento curiosamente intitulado “Memórias de Curitiba” (na terça, o documento havia sido retirado do ar; uma cópia dele pode ser lida aqui) que o ex-juiz apresentara havia instantes a governadores como um “projeto de lei anticrime”.
Moro, que chegou a ser visto como uma garantia de moderação do governo Bolsonaro, aparentemente não conseguiu – ou sequer achou necessário – se opor ao radicalismo de extrema direita do presidente. O capítulo do “projeto anticrime” do ministro que trata do direito à legítima defesa e das exclusões de ilicitude, ou seja, a “licença para matar” que Bolsonaro defendeu em campanha, saiu às feições do que deseja o ex-militar e cria condições para que tenhamos uma polícia (ainda) mais violenta e impune.
Para começar, o texto elaborado pelo ex-juiz mexe no artigo 23 do Código Penal, que trata das exclusões de ilicitude – isto é, as condições em que uma pessoa não é punida mesmo cometendo um crime.
O artigo frisa que eventuais excessos na legítima defesa serão punidos. É aí que entra a caneta de Moro, que quer acrescentar o seguinte parágrafo: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Na prática, todo esse palavrório aumenta as chances de qualquer pessoa – inclusive, obviamente, policiais – escapar de punição ao reagir com violência desmedida a crimes. Trata-se de um desejo antigo e conhecido de Bolsonaro.
Outros pontos do pacote legislativo do ex-juiz vão no mesmo caminho. Moro deseja que passe a ser tratado como caso de legítima defesa o “[d]o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem.”
Por fim, o projeto de Moro altera o Código de Processo Penal para vedar a prisão de quem comete ato criminoso numa situação de exclusão de ilicitude. Novamente, a regra também valeria para policiais.
‘Como definir o que é ‘escusável medo, surpresa ou violenta emoção’?’
Na entrevista à imprensa que concedeu em Brasília logo após a reunião com os governadores, Moro tentou afastar a ideia de que esteja distribuindo licenças para policiais matarem suspeitos. “Não existe nenhuma licença para matar. Quem afirma isso está equivocado, não leu o projeto”, afirmou.
O sociólogo Pedro Bodê, coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná, leu o trecho do projeto que mexe na exclusão de ilicitude a meu pedido. E se disse estarrecido com o que viu.
“Como definir o que é ‘escusável medo, surpresa ou violenta emoção’? É muito subjetivo. É claro que um policial sob fogo de fuzil está em uma situação extremamente desvantajosa. Mas também é claro que isso será invocado a toda hora quando houver denúncias de excessos. A defesa dos policiais da Vila 29 de Março, por exemplo, poderia alegar que eles estavam sob violenta emoção por causa da morte do colega e agiram em função dela, por exemplo”, ele criticou.
“É como se [o projeto de lei] oferecesse uma compensação para as péssimas condições de trabalho do policial, alterando a legislação para criar condições de que o agente possa ter uma atitude mais violenta, letal. E já falamos de uma das polícias mais letais do mundo”, lembrou Bodê.
Logo após o anúncio das medidas de Moro, a Ordem dos Advogados do Brasil montou um grupo de trabalho para estudar o projeto de lei, que será coordenado pelo advogado criminalista Juliano Breda, que já se confrontou com o ex-juiz em processos da operação Lava Jato.
‘A interferência policial é bem-sucedida quando ninguém morre’.
O grupo ainda dá os primeiros passos de um trabalho previsto para terminar em 30 dias. Mas um integrante, que pediu para ficar anônimo para não atropelar os colegas, me disse que, da forma como foi redigido, o projeto de Moro é um convite ao aumento da letalidade policial e uma promessa de impunidade para casos de abuso de poder.
“O texto contém propostas que a OAB já considerou inconstitucionais”, disse Breda, citando o cumprimento de penas após condenação em segunda instância e a instalação de escutas para monitorar conversas entre detentos e seus advogados. “E também sugere que haverá aumento no encarceramento em massa. O Supremo Tribunal Federal já disse considerar que nosso sistema carcerário vive um estado de coisas inconstitucional, com violações aos direitos humanos e individuais dos cidadãos presos.”
O grupo de trabalho deverá produzir um documento com o qual a OAB espera pautar o debate público a respeito do projeto.
O projeto de Sergio Moro não se limita às mudanças de que tratei acima. Ele também propõe, por exemplo, criminalizar o caixa dois eleitoral, endurecer a pena para quem for preso por porte ilegal de armas e limitar a progressão de regime para criminosos ligados às facções que dominam o sistema penitenciário brasileiro. Mas mesmo medidas aparentemente menos controversas que as ligadas ao direito à defesa e às exclusões de ilicitude não têm aprovação garantida – cabe lembrar que parte considerável dos políticos que irão analisá-las, inclusive da base governista, é investigada.
Além disso, como analisou Eloisa Machado de Almeida, professora e coordenadora do Supremo em Pauta da Fundação Getúlio Vargas na edição desta terça da Folha de S. Paulo, muito do que Moro deseja ver em funcionamento já foi vetado anteriormente pelo STF.
De todo modo, o que saltou aos olhos nas primeiras horas após a divulgação do projeto anticrime foi a aparente capitulação de Moro à velha ambição bolsonarista de afrouxar as amarras contra a violência policial.
“O pacote anticrime apresentado pelo ministro Moro endereça pontos importantes, outros controversos. A isenção de pena policial ao matar em serviço é fermento ruim e pode estragar a massa toda. Que isso possa ser revisto e o Congresso não desfigure o que ajuda combater a corrupção”, escreveu ontem no Twitter a ex-presidenciável Marina Silva.
Na sua primeira entrevista coletiva em novembro, o ainda juiz Sergio Moro disse não ver o bangue-bangue como forma bem sucedida de combate ao crime – ao contrário do que acredita seu chefe. “O confronto tem de ser evitado. A interferência policial é bem-sucedida quando ninguém morre, quando o criminoso vai preso e policial volta para casa seguro. Temos estatísticas terríveis de assassinatos de policiais absolutamente intoleráveis. O confronto até pode acontecer, mas é sempre indesejável.”
Perguntei, à assessoria de Moro, o que mudou de lá para cá na visão dele a respeito do assunto. E, também, como e a quem caberá definir o que é “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Se vierem, as respostas serão acrescidas a este texto.
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