Em 1996, minha mãe começou a vender joias e semijoias. Ela comprava da minha tia e as revendia em Curitiba. Éramos muito pobres, não tínhamos carro e vivíamos em um conjunto da Cohab na periferia sul da cidade. Minha mãe fazia as entregas a pé ou de ônibus.
Então, minha mãe achou que a melhor maneira de se proteger de possíveis assaltos — algo que até então não havia acontecido com ela — seria comprando uma arma.
Mas minha mãe tinha problemas psicológicos seríssimos, dos quais só me dei conta muitos anos depois, já bem adulto e devidamente informado sobre essas condições. Mas, na infância e adolescência, eu a via apenas como uma pessoa muito nervosa, que trabalhava muito, ganhava pouco e fazia, muito bem aliás, o papel de pai e mãe de seus dois filhos.
Hoje, eu sei que minha não era muito nervosa. Ela era depressiva e bipolar. E isso começou ainda em sua infância. Quinta filha de uma família de seis irmãs e dois irmãos, todos criados em sítio, muito pobres e disciplinados com rigores físicos que deixaram marcas que não se limitaram ao corpo.
Aos 19, ela perdeu a mãe, minha avó, para um câncer. Aos 20, se casou com meu pai, um homem a quem nunca amou, apenas porque lhe havia beijado na boca. “Eu era muito burra. Meu pai dizia que mulher que beijava na boca e não casava ficava mal falada”, me disse várias vezes, lamentando-se pelo casamento.
Eu nasci quando ela tinha 22 anos. Fui idealizado, tratado com os luxos possíveis para o filho de uma empregada doméstica educada até a sexta série. Ela se divorciou aos 26, voltou para a casa do meu avô em Maringá, dessa vez comigo nos braços, arrumou emprego e resolveu ser a adolescente que nunca havia sido antes do casamento. Nesta brincadeira acabou abusando da bebida e dos tranquilizantes.
Minha família, que menos ainda conhecia sintomas de depressão — no início dos anos 1980 depressão era “doença de rico” — a mandou para um sanatório, onde, entre outros abusos, foi amarrada e tomou eletrochoques na cabeça. Quando saiu do sanatório, ela nem me reconhecia, se urinava toda em pé e levou meses para voltar à normalidade.
Nesta época, fui mandado de volta para Curitiba, onde morei com meu pai, minha madrasta e minha recém-nascida irmã Janaína. Minha mãe resolveu também voltar para lá, onde conheceu o meu padrasto. Ele mentiu ser desquitado, mas minha mãe já grávida do meu irmão descobriu que ele era não apenas casado, mas pai de cinco filhos. A relação deles durou 13 anos, até que minha mãe descobriu que ele tinha, além dela e de sua esposa, uma terceira mulher.
Voltei pro quarto e senti um cheiro de sangue queimado. Ela com a arma na mão.
Este drama foi a segunda camada do bolo de decepções da vida da minha mãe. A primeira havia sido a revelação de que eu era homossexual. Algo que ela nunca aceitou e que considerou um fracasso seu em relação à minha criação.
Não importava o fato de eu ser o melhor aluno das melhores escolas públicas da cidade. Não importava que eu trabalhasse com ela vendendo sanduíches, como a personagem da Regina Duarte em “Vale tudo”. Não importavam os elogios de terceiros sobre minha dedicação ao trabalho e aos estudos. Minha sexualidade era constante motivo de ofensas, humilhações públicas e bofetadas na cara.
Eu fiquei exausto a ponto de sair de casa duas vezes, sem a menor estrutura. Quando voltei a segunda vez, resolvemos que iríamos viver em harmonia. Vendemos a casa da Cohab e compramos um apartamento em outro conjunto habitacional. E ali começamos a montar o lar que sempre sonháramos, com sofá, mesa de jantar, TV a cabo, meu próprio quarto.
Mas a harmonia não durou muito porque a doença da minha mãe era cheia de altos e baixos. E tudo piorou depois que meu avô, o pai dela, aos 82 anos, resolveu tirar a própria vida, enforcou-se na varanda da casa onde morava com minha tia mais velha enquanto ela passava as férias na minha residência, em Curitiba.
Depois daquilo, o suicídio virou um assunto constante. Especialmente em tom de ameaça contra nós, para que nos sentíssemos culpados. É por isso que, quando ela comprou aquela arma, fiquei extremamente preocupado e temeroso de que algo acontecesse de mal. Eu temia pela minha vida.
A nossa rotina era de agressões verbais e físicas — dela em relação a mim. Era uma mulher extremamente autoritária a quem eu e meu irmão devíamos uma obediência canina. Por isso, nunca ergui a mão para me defender dos tapas, das ofensas, das humilhações. E também por isso não tive forças para tomar uma atitude e dar um sumiço naquela arma. Morria de medo do que ela pudesse fazer contra mim.
Na noite de 14 de setembro de 1997, um domingo, apenas duas semanas após a morte da princesa Diana, minha mãe resolveu ir a um baile de tradições gauchescas na Sociedade Água Verde, em Curitiba.
Tudo o que eu consegui pensar era que aquilo não podia ser verdade.
Ela andava gastando mais dinheiro do que tinha, comprando roupas, perfumes importados, um celular e me fez “emprestar” o dinheiro da mensalidade do meu cursinho para ela. Saiu de casa com R$ 500 no bolso. Eu e meu irmão tínhamos passado a tarde vendo filmes na HBO. Era a primeira vez que tínhamos TV a cabo em casa. Vimos naquele domingo “As pontes de Madison”.
Por volta de 10 da noite, logo após o final do filme, eu me lembro de ter sentido um aperto no peito e uma angústia fora do comum. Liguei para minha amiga Karime. Ela tentou me acalmar e mandou eu ligar para minha mãe.
Ligava e nada de ela atender. Quando ela finalmente atendeu, percebi que estava tão bêbada que mal conseguia falar. Tentei convencê-la a pegar um táxi, e, uns 40 minutos depois, ela chegou em casa. Ela havia sido roubada e não tinha nem dinheiro para o táxi. Mal conseguia andar, tive que buscá-la no carro e trazê-la no colo para o nosso apartamento no segundo andar.
A partir daí foi tudo muito rápido. Eu me lembro que procurei sua arma em todos os locais onde eu sabia que ela escondia porque estava intuindo que algo ruim podia acontecer. Não achei.
Coloquei ela na cama. Tirei suas botas de couro e falei para ela que ela me envergonhava. Ela chorou e disse que estava muito triste. Eu estava cansado daquilo tudo, com raiva e disse que ia descer para pagar o táxi. Eu mal cheguei à porta e ouvi o tiro. Meu irmão tinha 13 anos. Eu tinha 21. Ele gritava e pulava de desespero. Eu congelei.
Voltei pro quarto e senti um cheiro de sangue queimado. Ela com a arma na mão. Sangue jorrava de sua cabeça. Ainda tive a frieza para sentir seu pulso. Nada. Ela morreu na hora. Chamei a polícia, liguei para minha família. A polícia chegou, a examinou, e o policial me falou: “Sua mãe entrou em óbito.” Foi só aí que o choro transbordou.
Tudo o que eu consegui pensar era que aquilo não podia ser verdade. Apenas 40 minutos atrás ela estava viva. De repente, com apenas um estampido, tudo acabou, tudo mudou. Minha família, que já não era harmônica, havia se despedaçado. Eu e meu irmão nunca mais dividiríamos o mesmo teto. Nunca mais veríamos filme deitados no colchão no chão da sala. E não havia qualquer possibilidade de que aquele cenário fosse revertido porque a arma, diferente do veneno, da faca, da corda no pescoço, é inexorável. É a solução final, definitiva e fácil. A arma é um convite à tragédia.
Com a arma, a morte é a regra
Quando postei fragmentos desta história no Twitter já estava preparado para a chuva de ataques, questionamentos e julgamentos. A primeira e mais esperada contestação era que ela, assim como meu avô, poderia ter usado outra coisa para se matar. De fato, com seu estado psicológico, ela poderia. Mas talvez ela tivesse sobrevivido a uma tentativa de suicídio. A arma não deu essa chance. Foi imediato. Em cinco segundos, eu e meu irmão estávamos órfãos.
Já na década de 1990, antes da minha mãe se matar, estudos comprovavam a ligação direta entre números de suicídios e fácil acesso a armas de fogo. O New England Journal of Medicine, por exemplo, publicou um artigo em 1992 que diz que, até então, anualmente, 29 mil americanos se suicidavam nos Estados Unidos. O estudo analisou todos os casos de suicídio ocorridos em uma região de população predominante branca e de classe média alta em Seattle e uma região de população predominantemente negra e de classe média baixa em Memphis entre os meses de agosto de 1987 e abril de 1990.
A narrativa de que a maioria das pessoas quer uma arma de fogo para se defender de crimes também não se baseia em fatos.
Durante o período, ocorreram 555 suicídios em Seattle (69% dos casos aconteceram na casa da vítima). Em Memphis foram, no mesmo período, 248 suicídios (73% na casa das vítimas). Metade dos suicídios de Seattle e e 73% dos suicídios em Memphis foram cometidos com armas de fogo.
Segundo o CDC, principal órgão americano de saúde pública, pelo menos 47 mil pessoas cometeram suicídio nos EUA em 2017. As armas de fogo continuam sendo o meio mais utilizado. Suicídios, aliás, não são o único risco de tragédia dentro da casa onde há uma arma de fogo. No dia 4 de fevereiro, o jornal The Washington Post publicou uma reportagem sobre um menino de quatro anos que encontrou a arma da família carregada dentro de casa e disparou contra o rosto da própria mãe grávida, no subúrbio de Seattle.*
O Harvard Injury Control Research Center também concluiu com diversos estudos que armas de fogo são usadas muito mais para intimidação do que para autodefesa e as que são mantidas em casa são mais frequentemente usadas para intimidar familiares e amigos que para combater o crime. Mas talvez o dado mais interessante seja o de que a maioria das armas alegadamente usadas em legítima defesa são ilegais e usadas após discussões acaloradas.
E aqui chegamos talvez ao ponto mais importante dessa discussão: como uma mulher como minha mãe, com histórico de depressão, que já havia passado por um hospício, com histórico de suicídio na família, conseguiu comprar uma arma de fogo?
O mito do laudo psicológico
Este foi o argumento usado por alguns armamentistas que apareceram em meu Twitter para me ofender ou desqualificar a história do suicídio de minha mãe. Segundo eles, o erro todo está no fato de a arma não ter registro. Porque, afinal, se tudo tivesse sido feito na legalidade, nada disso teria acontecido, pelo menos não com uma arma de fogo.
É preciso esclarecer uma coisa: minha mãe não comprou a arma dela em uma boca de fumo. Minha mãe não era envolvida com criminosos e nem saberia como chegar a esses locais. Era um mulher doente, mas simples, trabalhadora e, como todo mundo, apenas queria viver bem e ser feliz. E, como todo “cidadão de bem”, ela foi comprar sua arma na melhor loja do ramo, no centro de Curitiba. Uma loja de caça e pesca, que sempre colocou anúncios nos jornais e canais de televisão locais.
Ao chegar lá, ela deveria ter apresentado uma licença para porte de armas, que poderia ser obtida fazendo um curso de tiro – a compra ocorreu em 1996, vale lembrar, antes do Estatuto do Desarmamento. Ela não tinha nada disso. Mas tinha algo irresistível: dinheiro vivo. Levou o revólver calibre 38 e dois cartuchos com seis balas com a promessa de fazer o curso e registrar a arma posteriormente, algo que nunca fez. Tem uma coisa que é bom deixar claro: quem vende arma é igual a um traficante de drogas. Eles não estão interessados em saber se você vai morrer. Querem é saber do seu dinheiro.
Depois de sua morte, a arma foi confiscada pela polícia e não se sabe onde foi parar. Tampouco recebi qualquer retorno sobre uma possível responsabilização do estabelecimento comercial que vendeu a arma. Quando dei meu depoimento sobre o caso, entreguei inclusive o recibo de venda.
Enquanto houver corrupção e policiais trabalhando para o tráfico, não vai ter bandido que respeite a lei.
E é aí que eu me pergunto: podemos confiar que os vendedores de armas irão vender esses artefatos seguindo todas as exigências legais com a posse de arma afrouxada, como decidiu o presidente Jair Bolsonaro? Segundo: quem vai fiscalizar? Vamos onerar o estado mais ainda para fiscalizar uma ação comercial em vez de usar esse dinheiro para fazer algo muito mais efetivo que seria investir nas forças policiais e obrigá-las a tirar as armas das mãos dos bandidos?
E, falando em armas nas mãos dos bandidos, já se perguntaram como as armas que causam mais de 60 mil homicídios por ano no Brasil vão parar nas mãos deles? Quem fornece? Quem facilita a entrada dessas armas através de nossas fronteiras? Como armas de uso militar vão para nas mãos de traficantes?
Há algum plano deste governo para moralizar as Forças Armadas e as forças policiais e acabar com o tráfico de armas e a corrupção dentro dessas corporações? Porque, enquanto houver corrupção e policiais trabalhando para o tráfico, não vai ter bandido que respeite a lei.
Outra questão: como um laudo psicológico poderá dar conta de revelar tantas questões como as apresentadas aqui (e mais inúmeras outras que renderiam um livro) quando sabemos que tratamentos psicológicos e psiquiátricos levam anos até chegar a alguma conclusão?
Mais do que ser contra armas por causa do que houve com a minha mãe, mais do que ser contra armas por não confiar no que uma pessoa dita “de bem” pode fazer com elas em momentos de tensão e de desequilíbrio psicológico, eu sou contra as armas nas mãos dos cidadãos porque acho que temos que exigir que o estado cumpra o seu papel de nos manter seguros, em vez de difundir a barbárie como solução paliativa para um problema complexo, porém solucionável, como é o da criminalidade no Brasil.
A liberação do porte e da posse de armas tem todos os elementos para dar errado. Mas vai ser uma fatura a ser paga sem direito a reembolso – as vidas perdidas jamais serão repostas.
* O jornalista optou por não receber cachê por este trabalho.
* ATUALIZAÇÃO, 8/2, 14h58: Novo trecho incluído.
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