As relações da família Bolsonaro com a Suprema Corte nunca foram amistosas. Para nomear o maior número de juízes dóceis, o presidente da República prometeu em campanha aumentar o número de ministros do STF: de 11 (previstos constitucionalmente) para 21. Indignado com a Segunda Turma – Lewandowski, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Edson Fachin –, que soltara condenados como José Dirceu, o então presidenciável disparou: “São decisões que lamentavelmente têm envergonhado a todos”. Para Bolsonaro, o Supremo nunca passou de uma massa de manobra de interesses que não os seus.
Mas transformar juízes em marionetes de um fascistoide, se cai bem aos ouvidos dos deslumbrados, não é tão simples e exige a mudança formal da Constituição. Para aumentar o número de ministros do STF é necessária uma Emenda Constitucional. Sua aprovação, que não pode acontecer durante intervenção federal, estado de defesa ou estado de sítio, por exemplo, é páreo-duro: exige discussão em cada casa do Congresso, em dois turnos, e só é aprovada se alcançar, em ambos, três quintos dos votos dos seus membros.
Existe um caminho mais fácil para aumentar o número de ministros amigos no STF: arrancar os que hoje estão por lá via impeachment. É essa a ideia tacanha que está tomando corpo e pode ser concretizada pelo plácido caminho da “legalidade” com a vitória do desconhecido Davi Alcolumbre, o protegido de Onyx Lorenzoni que desbancou Renan Calheiros da Presidência do Senado. Sim, a lama da cassação politiqueira também pode alcançar as togas do Supremo Tribunal Federal. Se praticarem crimes de responsabilidade, os ministros respondem da mesma forma que o presidente da República, e recebem as mesmas penas. Quem é peça fundamental no andamento dos processos? Ele, Davi Alcolumbre. A guerra fria entre Senado e STF começou.
Até agora, pedidos de impeachment nunca tiraram o sono dos ministros do STF. Mas a tumultuada eleição de Alcolumbre, do Democratas do Amapá, pode mudar esse paradigma. A Câmara também começa a se movimentar para ajudar Bolsonaro a controlar o Supremo. Aliados do governo pretendem aprovar, já no início da legislatura, uma PEC tornando a fixar em 70 anos a idade para aposentadoria de ministros de tribunais superiores, revogando a PEC da bengala. Com a medida, Bolsonaro ampliaria sua influência no STF, conseguindo nomear quatro dos 11 membros da corte, e não apenas dois, como previsto.
O atual presidente do Senado já está acostumado ao descumprimento de decisões judiciais e ao enfrentamento do STF. Investigado em dois inquéritos no Supremo, ele fez parte do conluio para impedir que, em 2017, Aécio Neves fosse afastado por ordem do STF.
Pelo jeito, as armas já estão escolhidas e municiadas. O parlamento já não mede as palavras. O senador Alessandro Vieira quer a instalação de uma CPI para investigar manobras políticas em processos judiciais. “Se isso acabar mostrando erros e eventuais crimes, paciência”, disse. O Movimento Brasil Livre, o Movimento Vem pra Rua e o advogado e professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Modesto Carvalhosa já anunciaram que, nesta sexta-feira, vão dar entrada no impeachment de Dias Toffoli. O argumento é de que, ao determinar votação secreta para a presidência do Senado, o presidente do Supremo invadiu o espaço de atuação do Legislativo.
Toffoli, presidente do STF, no dia 9 de janeiro, derrubou decisão do ministro Marco Aurélio e determinou que, como prevê o Regimento Interno do Senado, a votação para a presidência da casa fosse secreta.
Alcolumbre manobrou e conduziu uma tumultuada e até ridícula sessão no Senado – na qual ele era um dos candidatos – que, por 50 votos a 2, deliberou que a eleição para presidente do Senado seria aberta. Na madrugada de sábado, dia 2, o presidente do STF, atendendo a pedido do Solidariedade e do MDB, anulou a deliberação do Senado e reafirmou sua decisão: a votação deveria ser secreta. Afrontou Alcolumbre. Depois de uma primeira votação anulada porque na urna havia 82 votos de 81 senadores, e da desistência de Renan, Alcolumbre foi eleito com 42 votos.
Caça aos ministros
Ministros do STF podem ser cassados, por exemplo, 1) se alterarem, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal; 2) se proferirem julgamento sendo suspeitos na causa; 3) se exercerem atividades político-partidárias; 4) se forem desleixados no cumprimento dos seus deveres de juiz; 5) se agirem de modo incompatível com a honra, a dignidade e o decoro de suas funções. Está tudo lá, na arcaica Lei nº 1.079/50. A lei, como se vê, é bastante subjetiva (decoro das funções?) e comporta pedidos de qualquer natureza. Mas será que todo esse aparato legal funciona na prática? Até hoje, nenhum juiz da Suprema Corte foi cassado.
Em 30 de dezembro de 2018, a Folha de S. Paulo apurou que o Supremo contava com 28 pedidos de impeachment de seus ministros. Do total, 23 deles, ou seja, em torno de 82%, haviam sido protocolados de 2015 em diante. Até o final de 2018, havia apenas sete requerimentos em tramitação.
O saco de pancadas é Gilmar Mendes, com nove pedidos movidos contra si. Depois estão Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso (quatro cada um), e Ricardo Lewandowski e Luiz Fux (três representações cada um). A maioria dos pedidos é baseada em decisões polêmicas da Corte – que não são poucas, convenhamos, porque a sociedade brasileira é um manancial profundo de conflitos – e acaba engavetada por um canetaço do presidente do Senado*.
De acordo com a lei, se passar pela triagem do presidente do Senado, o pedido é objeto de parecer elaborado por uma comissão especial e só tem prosseguimento se aprovado por maioria simples de votos. Se isso acontecer, o presidente do STF conduz o processo, que deve ser concluído em 120 dias*. Durante esse período, o investigado é afastado das funções. Caso o presidente do Supremo for o denunciado, o vice (hoje, Luiz Fux) assume a batuta. Para cassação é necessário o voto de dois terços dos senadores. Além de perder o cargo, o condenado fica inabilitado para exercer funções públicas por oito anos.
As rusgas entre Judiciário e os outros poderes fazem parte do sistema de freios e contrapesos. O STF, inclusive, fechou os olhos para evitar choques com a ditadura nos anos de chumbo, a ponto de o ministro Nelson Hungria, que deixou o Supremo em 1961, ter profetizado em voto, dado à luz do golpe que envolveu o governo Café Filho,* que os tanques e as baionetas “estão acima das leis, da Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal”. Uma espécie de covardia reconhecida.
Em seu discurso, ao assumir o comando do Senado, Alcolumbre disse que não vai se curvar “à intromissão amesquinhada do Judiciário”. A declaração é estratégica para firmar terreno em uma disputa de forças colossais. Mas também é muito perigosa, porque a toga não gosta de ser posta à prova. O embate verbal parece ser uma trombeta do que vem pela frente.
*CORREÇÃO, 7 de fevereiro, 12h06: Trecho alterado. A frase anterior se referia erroneamente ao impeachment do presidente da República e não do presidente do STF.
*CORREÇÃO, 7 de fevereiro, 12h9: Trecho alterado. A frase anterior dava a entender que Hungria se referia ao regime militar que governou o país de 1964 a 1985. Mas o ministro deixou o STF antes do golpe.
*CORREÇÃO, 7 de fevereiro, 17h23: Trecho alterado. A frase anterior dizia erroneamente que os pedidos de impeachment eram engavetados pela presidência da Câmara dos Deputados.
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