Os remédios tradicionais, entre eles o popular Rivotril, pareciam não fazer mais efeito quando V., de 59 anos, conheceu o extrato da maconha, no começo de 2018. Segundo ela, a cannabis sativa, uma das espécies da droga, a fez dormir e acordar tranquila pela primeira vez depois de anos. Diagnosticada com depressão em 2014, V. conseguiu os primeiros frascos de extrato de cannabis com um médico – a importação pode chegar a custar R$ 7 mil por mês.
Sem dinheiro, disposta a dar continuidade no tratamento e a não ser presa, ela decidiu entrar na justiça para conseguir a autorização do cultivo.
Deu certo: no último dia 31 de outubro o juiz federal Mário Jambo, do Rio Grande do Norte, a autorizou a ter até seis plantas e a transportá-las. Foi a primeira vez que a justiça brasileira liberou a maconha para tratamento de um paciente de depressão.
A ação também se estende a sua filha, que a ajuda no cultivo. Sem o apoio da justiça, ambas poderiam ser presas. Com a autorização, V. agora pode, além de plantar, também extrair o óleo de cannabis em sua própria casa. O juiz considerou que, se o uso recreativo não é considerado crime pela lei, o uso médico também não pode ser. Os argumentos do jurista coincidem com os da Comissão de Reforma da Lei Antidrogas, que apresenta nesta quinta-feira o relatório final que propõe da descriminalização do uso pessoal da maconha, de que o usuário não pode ser punido. Mario Jambo ainda reforçou que a Anvisa reconhece o uso medicinal da planta.
O caso de V. abre novas perspectivas para a maconha medicinal no Brasil – e a decisão antecipa o debate que acontece nesse momento no Senado. A Comissão de Assuntos Sociais da casa aprovou em novembro do ano passado o projeto de lei 514/2017, que modifica um trecho da legislação sobre drogas e libera o cultivo de maconha para uso pessoal terapêutico. O projeto, agora, segue para a Comissão de Constituição e Justiça e, de lá, para a Câmara dos Deputados.
O avanço do conservadorismo no Congresso deve dificultar a tramitação da proposta, mas as autorizações judiciais já antecipam o impacto da liberação para as famílias que precisam da cannabis para tratamento. Como a autorização concedida pelo Tribunal de Justiça de SP – feito inédito nesta instância– nesta semana para uma servidora pública de Campinas, mãe de uma menina de 6 anos diagnosticada com autismo.
Produção caseira
Não foi fácil para V. conseguir a autorização. Sua defesa reuniu artigos científicos, reportagens, laudos médicos e depoimentos de familiares relatando a melhora da paciente. “O mais complicado é que a depressão é uma patologia que lá fora já é tratada com cannabis, mas aqui a Sociedade Brasileira de Psiquiatria tem uma rejeição ao uso terapêutico da planta”, disse o advogado Ubaldo Onésio de Araújo.
A defesa também conseguiu uma declaração do Instituto do Cérebro, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, afirmando que seus laboratórios poderiam ser utilizados para analisar o extrato e garantir que o medicamento tenha as dosagens receitadas pelo médico. Isso já acontece, por exemplo, no caso do paciente que recebeu autorização para plantar maconha para tratar a Doença de Parkinson no início deste ano também no Rio Grande do Norte.
O tipo de óleo e a dosagem de canabinoides, as substâncias que ativam receptores no cérebro e que são encontradas na maconha, mudam de acordo com o paciente e a doença. Na fabricação artesanal é um desafio alcançar as doses adequadas e encontrar qual o tipo de maconha que atende melhor ao tratamento. Para a depressão, V. precisa de um extrato híbrido com níveis diferentes de canabidiol, que tem efeitos mais relaxantes, e THC, um estimulante.
A substâncias extraídas da planta imitam moléculas encontradas em humanos e outros animais e criam sensação de conforto e bem-estar ao ativarem determinados receptores no cérebro. Os canabinoides, naturais do cérebro ou encontrados na herva, são neurotransmissores e fazem a comunicação entre neurônios.
“Muitas vezes as pessoas usam o extrato sem segurança do conteúdo que está ali dentro. Isso pode até fazê-la não sentir uma melhora, quando na verdade a combinação é que não está correta para a doença”, explica Cláudio Queiroz, professor do Instituto do Cérebro.
V. conheceu o tratamento com cannabis em uma palestra do Coletivo Delta 9 e do Instituto do Cérebro. O coletivo trabalha em parceira com a ONG Reconstruir Cannabis, de Natal, no Rio Grande do Norte, que no momento auxilia quatro pessoas com depressão e três com ansiedade. O Reconstruir está buscando na justiça a autorização para o cultivo e extração do óleo. A entidade segue os passos da Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança, da Paraíba, que conseguiu liberação no ano passado.
Maconha como antidepressivo
Existem pesquisas que associam o uso da cannabis ao desenvolvimento de quadros depressivos – especialmente relacionado ao uso excessivo e precoce, na adolescência. No entanto, segundo o neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro, isso só ocorre em casos específicos. “Perguntar se maconha causa depressão só faz sentido se você perguntar qual maconha. São várias espécies diferentes”, disse ao Intercept. Segundo ele, o efeito depressivo relacionado aos jovens desaparece nos adultos e idosos.
“O THC produz novas sinapses e o jovem já tem muita atividade neural, o que leva a um desequilíbrio. No caso dos idosos, o aumento da comunicação entre os neurônios com a maconha funciona como uma suplementação. O efeito é o mesmo dos antidepressivos”, diz Ribeiro. Com uma diferença: eles não causam efeitos colaterais como disfunção sexual, irritabilidade e agitação, além de terem uma taxa de dependência menor.
“A maconha é a coisa mais importante para a medicina do século 21. Ela trata epilepsia, Parkinson, Alzheimer, câncer e depressão. Tem que ter alguém com muita grana que banque um ensaio clínico sobre a planta, isso não existe porque a planta não dá para patentear. Existe um lobby para que a maconha fique ilegal. No futuro, vamos lamentar todos os anos em que não usamos a maconha para fins terapêuticos”, garante o diretor do Instituto do Cérebro.
Outra pauta sobre maconha está no Supremo Tribunal Federal – mas, desta vez, seu uso recreativo. Quando foi à votação, em 2015, três dos 11 ministros votaram pela liberação do porte de maconha para uso pessoal: Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso.
O julgamento, no entanto, estava suspenso desde setembro de 2015, quando ministro Teori Zavascki pediu vistas do processo. Agora, o ministro Alexandre de Moraes liberou o projeto para ir a plenário. Os ministros do STF devem votar neste ano.
Correção: 7/02, 15h42
O título anterior desse texto falava em “curar” a depressão com maconha. Alertados por um leitor, reconsideramos e modificamos para “controlou a depressão”, uma vez que V. tem tido sucesso em aliviar seus sintomas com a medicação a base de cannabis, não necessariamente foi curada.
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