Eles morrem de medo da gente. De mulheres que transam porque querem (quanto medo esses homens têm de serem ridicularizados na cama, né?); que não transam quando não querem (haja medo de rejeição); que criam os próprios filhos; que resolvem não tê-los; que vestem, fazem e falam o que querem. De mulheres que sobrevivem, resistem e se organizam. É por isso que eles são agressivos, endurecem no discurso, tentam controlar os costumes, definir de que maneira deveríamos nos comportar e desqualificam nossos movimentos. É porque eles têm medo.
Sabem que, a partir do momento em que a gente avança, eles perdem espaço – um espaço que jamais conseguirão recuperar, ainda que se esforcem com todo tipo de retrocesso em um governo. Em “O segundo sexo”, Simone de Beauvoir definiu muito bem o que há por trás desse comportamento masculino:
Ninguém é mais arrogante em relação às mulheres, mais agressivo ou desdenhoso, do que o homem que duvida de sua virilidade.
Intimidados pelos semelhantes, os machos inseguros se confortam na ideia de que existe uma espécie de casta sempre inferior a eles: as mulheres. “O mais medíocre dos homens julga-se um semideus diante das mulheres”, Beauvoir escreveu. Poucos homens estão verdadeiramente comprometidos com o rompimento das regras do patriarcado – palavra que faz muitos pensarem em ‘feministas peludas’, mas que resume esse mundo de machos e para machos a que estamos tão acostumadas. Mas os medíocres, os inseguros, os pequenos, esses são os que vão defendê-las com mais afinco.
É por isso que o bolsonarismo é um governo de homens e para homens. Homens tão inseguros que acham que o simples fato de serem expostos a tarefas domésticas ou a bonecas na infância coloca suas masculinidades em risco. E que, por isso, resistem a qualquer iniciativa que coloque em xeque esses padrões.
Esse governo é contra a educação sexual nas escolas, por exemplo, que é uma maneira de prevenir que sejamos estupradas. Também colocou uma ministra mulher para defender rigidez na manutenção dos papéis de gênero – o que, na prática, nos aprisiona à maternidade e a tarefas domésticas. E transformou em prioridade o homeschooling, ou seja, incentivar que as famílias – na prática, as mães – ensinem as crianças em casa, longe da escola.
O bolsonarismo tem medo da nossa liberdade.
O ódio e o medo
Diante da libertação feminina, os homens ficam aterrorizados: é porque suas inseguranças aparecem. Eles não têm mais como escondê-las. Com mulheres livres, que competem de igual para igual, eles deixam de ter uma casta inferior para que mesmo os mais medíocres se sintam superiores.
É por isso que reagem com raiva e agressividade. Passam a valorizar as “puras” que se comportam exatamente como eles querem, e são agressivos, ameaçam e tentam desqualificar as que os desafiam. Michele Bolsonaro e Damares Alves, as escolhidas para representar os valores patriarcais que eles querem perpetuar, que o digam.
“É uma nova era no Brasil” – Tia Damares, 1 Temporada: The Handmaid’s Tale Brasil. pic.twitter.com/E6oyvu1YIx
— The Handmaid’s Tale Brasil (@HandmaidsBR) 3 de janeiro de 2019
No mundo perfeito dos homens medíocres, inseguros e medrosos, só há espaço – limitado e controlado – para as mulheres brancas e heterossexuais (as recatadas e do lar, é claro). Essas são suas joias raras (apesar de terem nascido de fraquejadas). O resto? Lida com as consequências desse sistema.
Esse sistema trabalha para eliminar as mulheres que não se comportam como o esperado. A cada 36 horas, uma mulher é vítima de feminicídio – e os parceiros são responsáveis pela maior parte desses assassinatos. Entre as mulheres negras, a violência de gênero é ainda pior – além de serem também o grupo com as piores condições de vida no país, as que mais choram a morte de seus filhos legitimadas pelo racismo da política de segurança pública e as que mais sofrem problemas e violência durante a gravidez.
Mulheres lésbicas também são alvos preferenciais – 126 foram assassinadas entre 2014 e 2017 no Brasil pela simples razão de serem lésbicas, mostra o dossiê “Lesbocídio – As histórias que ninguém conta”. O país também é o que mais mata transexuais: foram 167 homicídios motivados por transfobia entre outubro de 2017 e setembro de 2018. Enquanto isso, as mulheres bissexuais são rebaixadas a meros objetos de desejo e, segundo estudos internacionais, vivem com uma saúde mental pior do que as mulheres monossexuais.
Além da violência e da intolerância, a política de homens com medo também passa por deslegitimar qualquer iniciativa de mulheres que ouse desafiar o poder. O grupo de Facebook Mulheres Unidas Contra Bolsonaro foi repetidas vezes hackeado e invadido por opositores. Nas manifestações do #EleNão, em setembro do ano passado, a máquina de fake news da campanha bolsonarista foi muito eficiente em reduzir os protestos a mulheres feministas sujas, mal amadas, mal comidas e promíscuas. Na guerra cultural em que o conservadorismo está vencendo, e em uma nação que está se tornando cada vez mais evangélica, não é difícil deduzir que o discurso colou.
Eu não vi vídeo nenhum porque não sou obrigada, mas pelo que pude entender o @jairbolsonaro condena quem põe o dedo no próprio rabo enquanto ovaciona os que enfiam rato na vagina de mulheres. É esse o resumo, mais ou menos? — Marcela Hippe (@MarcelaHippe) 6 de março de 2019
Assim como fizeram no carnaval ao selecionar uma cena isolada para tentar desqualificar todo o movimento de oposição. Cenas extremas que despertam sentimentos primitivos de medo, nojo e repulsa, suficientes para delimitar o inimigo – os LGBTs, as mulheres, os negros, os favelados – e alimentar a retórica do nós contra eles. O carnaval, “deles”, é isso aqui. Nós não fazemos isso, somos puros. Essas manifestações feministas, “delas”, é isso aqui: peitos de fora e sovacos peludos. Nós somos limpinhos. É a comunicação fascista básica: os outros (feministas, gays, esquerdistas, insira aqui o substantivo que quiser) são sujos; só o líder, o pai, nós, podemos purificar isso-tudo-que-tá-aí.
Não é difícil deduzir que, quanto maior o grito de “ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”, maior vai ser o esforço da máquina bolsonarista para tentar destruir o nosso movimento. Spoiler: não vão conseguir.
Trazer quem ficou para trás
A derrota eleitoral fez com que emergisse uma série de críticas ao setor progressista. Já falamos sobre isso: sobre como não soubemos comunicar as pautas identitárias, como não falamos com as mulheres negras e pobres, que não se sentiram parte dos movimentos de resistência, sobre o efeito contrário indesejado do #EleNão. Por outro lado, também mostramos como os movimentos identitários – que parte da esquerda mofada insiste em culpar – saíram fortalecidos mesmo com a derrota. Se dependesse das mulheres mais jovens, vale lembrar, Bolsonaro sequer estaria eleito.
Em janeiro, Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre como a ascensão da direita também está fazendo emergir uma série de movimentos políticos de esquerda – com reflexos, inclusive, eleitorais. E ela aposta: a revolução irrefreável está vindo. E está vindo debaixo:
Quando o desespero bater sob o governo autoritário e misógino de Jair Bolsonaro, é importante olhar adiante e lembrar que muita energia está vindo de baixo, a qual, aos poucos, vai atingir os andares de cima. É uma questão de tempo: as adolescentes feministas irão crescer, e o mundo institucional terá que mudar para recebê-las.
Para não cair nas armadilhas da eficiente máquina de comunicação bolsonarista, precisamos ser claras ao dizer o que queremos e incluir mais gente no debate. Nós estamos avançando, mas precisamos lembrar de trazer também quem ficou para trás. Levar em conta as particularidades de cada grupo – que inclui também as mulheres que não entendem o que é feminismo – e lembrá-las que, se avançarmos, elas avançam com a gente. E, principalmente, levar em conta o sistema que atinge diferentes mulheres de diferentes formas, como as negras, por exemplo, que sofrem com o racismo, além do machismo. Precisamos do que está sendo chamado de feminismo para os 99%: o que contempla as mulheres mais vulneráveis e não só as mais privilegiadas.
O dia de hoje é da luta de todas nós, e a gente não pode deixar que a nossa diversidade seja apagada por meia dúzia de homens com medo que têm a sorte de estar com o poder nas mãos neste momento. A história é cíclica, e nós já vimos esse filme muitas vezes. Nós estamos avançando, e não será um governo de homens medíocres e inseguros que vai nos frear.
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