Os jovens kamikazes: como nascem as crianças-soldado das facções do Ceará

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Os jovens kamikazes: como nascem as crianças-soldado das facções do Ceará

Os padrinhos do crime estão batizando aos 13 anos de idade.

Os jovens kamikazes: como nascem as crianças-soldado das facções do Ceará

Mateus* ouviu cochichos e achou estranho. Com apenas 14 anos, ele dividia o alojamento de um centro socioeducativo de Fortaleza com quatro adolescentes da sua idade, todos membros do Comando Vermelho.

Mas Mateus era um rival: havia jurado lealdade à facção Guardiões do Estado. O menino sentiu medo,  já sabia das mortes provocadas por disputas entre adolescentes de facções rivais dentro da instituição e precisava agir rápido.

Ele chamou o responsável pelo setor, encheu uma vasilha com a própria urina e jogou no rosto no homem. “Pedi pra sair, mas ele disse que não ia me tirar. Eu avisei que se ele não tirasse por bem, ia ser por mal”.

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Conseguiu o que queria: ser levado para um local isolado dos demais internos, equivalente à solitária nas prisões – a “tranca”. “Se eu dormisse [no mesmo alojamento dos rivais], eles iam querer me enforcar”, ele me disse em uma conversa na sede de uma ONG na capital cearense. Ele estava sentado ao lado da mãe, que não sabia da história.

Mateus não é o único adolescente nas fileiras da Guardiões do Estado, a GDE. Criada em janeiro de 2016, ela é hoje a maior facção do Ceará, e tem predileção por alistar garotos pré-adolescentes. São seus “batizados”.

Ao entrar no grupo, o novo membro se transforma em um soldado a serviço da facção. Como um adulto, deve estar preparado para defendê-la com a própria vida, se necessário. Em troca, ganha respeito e proteção.

Parte do apelo da GDE é sua estrutura flexível, sem hierarquia rígida, o que a torna mais atrativa para os jovens que têm dificuldades em cumprir as regras das facções tradicionais. Abrindo seu leque para os pré-adolescentes, a GDE cresceu de modo avassalador – hoje, cerca de três anos depois de fundada, ela teria cerca de 15 mil homens. Com medo de serem esmagados, Comando Vermelho e PCC, que também atuam no Ceará, abriram as portas para os garotos. “Têm muitos molecotes que, você sabe, além de ser de menor, são bandido e têm muita atitude. Poderia ser feito uma matrícula pra eles ficarem do nosso lado e não virar a cabeça”, sugere um membro do PCC no Ceará em um áudio enviado a comparsas pelo WhatsApp. Em São Paulo, o PCC só aceita maiores de 18 anos e o CV, no Rio de Janeiro, só permite que crianças e adolescentes desempenhem funções secundárias, como a de fogueteiro (responsável por soltar fogos para avisar sobre a chegada da polícia na favela).

Não foi por acaso que as facções tiveram facilidade em recrutar crianças justamente no Ceará. Essa história começa alguns anos antes, com as gangues de adolescentes.

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Das gangues às facções

Até 2015, a disputa pelo tráfico de drogas se concentrava entre as inúmeras gangues que dominavam a periferia de Fortaleza. Em 2014, de acordo com um levantamento da Polícia Civil do Ceará divulgado pelo jornal O Povo, havia 33 bairros de Fortaleza dominados por gangues.

As disputas de então já eram protagonizados por adolescentes. A rivalidade envolvia, em especial, o território, me disse o pesquisador Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará. Passar de um bairro para outro desavisadamente poderia significar uma sentença de morte.

As facções, em especial a Guardiões do Estado, diz Paiva, organizaram essas ‘lideranças juvenis’, colocando-se acima da lealdade aos bairros. E foi este o contexto que o PCC e o CV encontraram.

“Quando essas facções chegaram aqui, já havia as gangues nos bairros de Fortaleza, com conflitos armados entre os adolescentes. Esses meninos eram muitos e tinham força dentro da periferia. Com o surgimento da GDE e sua tropa de menores, as outras facções tiveram que entender essa demanda, mesmo que isso fosse contra a ética deles.”

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Alice foi presa depois que policiais encontraram drogas dos filhos em casa. Agora, convive com uma tornozeleira eletrônica.

Foto: Zerosa Filho/The Intercept Brasil

Eu perdi meu filho

Falar sobre o envolvimento dos três filhos com o crime é a única coisa que acaba com o jeito divertido de Alice*. “Às vezes eu me pergunto porque eles mudaram desse jeito”, me contou, enquanto conectava a tornozeleira eletrônica à tomada. Em 2 de outubro de 2018, a polícia entrou na sua casa e encontrou drogas, segundo ela, escondidas por um dos filhos, um integrante do Comando Vermelho que entrou para a facção aos 13 anos de idade. Única maior de idade da casa, ela foi presa. Ficou nove dias na cadeia e, hoje, não trabalha. “É difícil criar os filhos na periferia, mas a gente tem que morar aqui dentro, né? Eu, por mim, já tinha me mudado, mas não tenho pra onde ir”, lamenta.

“Eu saía para trabalhar 5h da manhã e só chegava de noite. Aí ficava sabendo que eles não tinham ido pra escola, que faltaram no projeto social. Eu brigava, batia, mas não adiantou.”

Depois que a mãe foi presa, um dos filhos, de 16 anos, saiu de casa e não voltou mais. Ficou a lição, ela me disse, para os irmãos mais novos, que dormiam no quarto enquanto conversávamos na sala de sua casa de dois cômodos por volta das 10h30 da manhã. Quando acordaram por causa do nosso barulho, um deles me disse: “Se o traficante me pedir pra esconder droga, eu escondo, mas não aqui dentro de casa”. Com 14 anos, o menino já foi apreendido duas vezes. Em uma delas estava na casa de um traficante do Comando Vermelho.

Na minha passagem por Fortaleza, também encontrei Valéria*, mãe de um jovem detido aos 14 anos pelo roubo de uma moto. Para punir o garoto, ela o deixou no centro socioeducativo da cidade. A ideia era que o filho passasse 45 dias lá, tempo mínimo da internação provisória. Queria que ele voltasse a obedecê-la como antes. Mas o plano deu errado. No dia em que foi buscá-lo, soube que ele havia sido sentenciado pela Justiça e que ficaria mais seis meses no local.

A pena fez o filho de Valéria peregrinar por três diferentes unidades de internação, onde, ele diz, foi agredido, humilhado e recebeu droga das mãos dos socioeducadores que deveriam cuidá-lo. Se transformou no oposto do que a mãe queria. “Eu não vou mentir. Ali ninguém se ressocializa. No natal e no ano novo, um orientador ia me entregar mais 25 gramas de maconha e um isqueiro pra eu curtir. Só não peguei porque eu saí do sistema antes das festas”, disse o adolescente, ao mesmo tempo em que, chorando, a mãe lamentava. “Eu não vejo mais felicidade nele. Está um menino recalcado, não quer mais carinho. É uma pessoa que eu desconheço. Eu perdi meu filho. Fico tentando resgatar ele, mas não estou conseguindo”.

Ritual de batismo começa com uma foto

A vida das crianças do tráfico começa com um batismo. Em uma comunidade dominada pelo Comando Vermelho, conversei com Mariana*, uma jovem de 22 anos íntima de membros do conselho local da facção. Ela me contou como acontecem os rituais: tudo começa com o envio de uma foto do candidato por um “padrinho” para os grupos espalhados em todo o Brasil. O objetivo é saber se alguém tem algo contra o futuro integrante. “Se nenhum irmão barrar, a pessoa responde a umas perguntas”, disse. O CV, conta Mariana, pede então para que o padrinho pergunte ao candidato se ele já usou crack, se é estuprador, se matou “sem ser necessário”. “Até pra ser criminoso você tem que ter escrúpulos”, divaga. “Se estiver tudo certo, a pessoa é batizada.”

Na GDE, o ritual é semelhante. E mesmo que as regras sejam mais frouxas, há obviamente controle. “Não pode tomar atitudes isoladas sem comunicar aos membros superiores. E também não pode roubar na sua área”, me disse o iniciado Mateus.

Perguntei a Mariana se no CV crianças também podem ser batizadas. Ela estava com a própria filha no colo quando me respondeu que depende do que considero criança. “Para mim, é só enquanto é inocente. A partir do momento em que rouba, que mata, já não é mais. Eu conheço meninos que têm uma mentalidade que adulto não tem. Eles pensam planos de crime que eu não conseguiria.”

Ao ser batizado, o membro da facção também assume a responsabilidade de matar qualquer rival que encontrar, principalmente se o inimigo estiver fora da sua área. Há ainda uma mensalidade, que varia entre R$ 100 e R$ 200. O dinheiro fica com os líderes no estado e é usado para financiar a organização.

Mariana me disse que muitos meninos aceitam o batismo depois de terem sofrido alguma violência por parte de outra facção ou da polícia. Mas também há outros motivos. “Uns é por falta de opção, outros em busca de adrenalina. Conheço outros que foram só por diversão, pra se achar o bandidão e impressionar as meninas.”

“As facções criaram uma situação na qual vários meninos falam de si como jovens kamikazes, que vão fazer o que for preciso, porque é dever e eles têm que cumprir”, diz o pesquisador Luiz Paiva.

Para Paiva, além da falta de oportunidades, o interesse dos meninos pelo crime tem relação direta com a proximidade que eles criam com a morte desde a infância. “O horizonte desse jovem é muito curto”, diz o pesquisador. “O que as facções fazem para atrair esses meninos é oferecer um projeto de vida que pode não ser o mais longo e feliz, porém é o que faz sentido no contexto em que eles estão inseridos”.

Facção como plano de carreira

Felipe*, de 18 anos, vive em Bom Jardim, favela na periferia de Fortaleza marcada pelos altos índices de assassinatos de adolescentes. Em 2017, ele perdeu seis amigos em menos de um mês. Apesar de não fazer parte de nenhuma facção, ele diz entender o que leva os amigos a serem batizados e vê os criminosos como responsáveis pela segurança da favela. “Aqui na periferia, a gente entende que nem tudo vai dar certo. E aprende isso com sangue, quando vai abraçar um amigo nosso e ele está no chão, baleado. A periferia é isso.”

A relação com a polícia é outro incentivo. Felipe lembra de pelo menos três ocasiões em que esteve na rota de uma bala, em tiroteios dentro da favela, e de quando apanhou de policiais.

Em 2017, o Ministério Público de São Paulo grampeou uma ligação entre membros do PCC na qual eles falavam sobre a grande quantidade de membros do GDE no Ceará. “Eles têm 15 mil integrantes dentro do estado e nós tem sabe quantos? Mil e pouco (…) Como é que nós vai declarar guerra com eles? (…) Os cara batizam qualquer um. Você não viu que o CV matou quatro moleques deles esses dias aí de 12, 13 anos?”, dizia um dos interlocutores. Atualmente, estima-se que existam cerca de 2.500 membros do PCC batizados no estado.

O PCC e o CV se fortaleceram no Ceará a partir de 2015. Antes, havia apenas alguns membros que atuavam em casos específicos, como o famoso assalto ao Banco Central em Fortaleza, conhecido como o maior do país, e em roubos a agências bancárias pelo interior.

O exército de adolescentes do GDE foi um dos motivos que levou o PCC a se aliar à facção local no início de 2017, parceria que se mantém até hoje. Policiais federais do Ceará acreditam que os portos de Pecém e Mucuripe são úteis para controlar a rota do tráfico internacional. A rivalidade pelo mercado de drogas é com o Comando Vermelho, a segunda maior facção no estado, com mais de 9 mil membros. Estar em uma dessas organizações é como ser funcionário de uma multinacional, oportunidade que a maioria das crianças da periferias não tem.

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Matheus e a mãe. Para ele, a entrada na facção foi uma forma de sobreviver ao sistema socioeducativo.

Foto: Zerosa Filho/The Intercept Brasil

Menos assistência, mais mortes

O próprio estado tem ajudado as facções a conseguirem membros cada vez mais jovens. Quando entram no sistema socioeducativo, diz Mara Carneiro, coordenadora do Cedeca, os meninos são separados por bairros, de acordo com a facção que domina a área onde moram.

Há ainda as “regalias”. “Um instrutor não mexe com adolescentes iniciados nas facções. Quem sofre são os adolescentes que não são batizados. Ser de um grupo é uma forma de estar mais seguro”, afirma Carneiro.

O mesmo estado que já separa meninos em facções dentro do sistema em que eles deveriam entrar para se regenerar também não parece ter interesse em ajudá-los a terem um futuro melhor. Em 14 anos, de acordo com levantamento do Cedeca, os investimentos em assistência social de crianças e adolescentes caíram drasticamente. Os recursos da Fundação da Criança e da Família Cidadã, órgão da prefeitura de Fortaleza responsável por promover políticas de defesa e assistência a jovens da periferia, encolheram 72%. A média é de R$ 1,7 milhão a menos por ano.

Também perdeu orçamento o programa Adolescente Cidadão, cuja missão é profissionalizar jovens da periferia. A redução foi de 97,6% entre 2005 e 2018. Talvez não por coincidência, dados do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência mostram que apenas 2% dos adolescentes assassinados em Fortaleza tiveram alguma experiência como estagiário ou aprendiz.

Um relatório do Unicef coloca ainda o Ceará como o estado brasileiro em que mais jovens morrem. O Índice de Homicídios de Adolescentes é de 8,71 a cada 100 mil habitantes, o dobro do índice no Rio de Janeiro e cerca de cinco vezes maior que o índice de São Paulo. As vítimas são quase sempre meninos negros da periferia – o mesmo alvo das facções. “Fortaleza é a quarta capital brasileira com menor investimento em assistência social a crianças e adolescentes. É também a capital que mais mata adolescentes. Isso não é coincidência”, diz Carneiro.

Apesar de entrar em uma facção significar de imediato proteção e prestígio, é o tipo de decisão difícil de voltar atrás. A única forma de sair e permanecer vivo é se convertendo a alguma igreja evangélica e abandonando o crime de vez. Ou então, claro, assinando ficha em outra facção.

* Os nomes foram modificados para não colocar em risco a vida das pessoas entrevistadas.

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