Jair Bolsonaro tinha 9 anos quando os militares derrubaram a democracia em 1964. Era apenas uma criança que sonhava entrar para o Exército. Logo após o fim da ditadura, aos 31 anos, já militar, Bolsonaro escreveu um artigo para a revista Veja reclamando dos baixos salários dos militares. A indisciplina lhe custou 15 dias de cadeia. Mas a reclusão não foi capaz de segurar seu espírito incendiário. No ano seguinte, o capitão continuou a luta por reajuste salarial e elaborou um plano que lhe pareceu infalível: bombardear quartéis e academia militares.
O plano foi descoberto e rendeu mais um processo contra ele. Em 1988, Bolsonaro foi considerado culpado pelos coronéis, mas absolvido depois em recurso aceito pelos ministros do Superior Tribunal Militar. Apesar disso, o capitão deixou as Forças Armadas pela porta dos fundos. Militares de alta patente o consideravam um “oportunista” com “excessiva ambição financeira e econômica” — fama adquirida ainda como um tenente novato, quando liderou um grupo de militares para procurar ouro ilegalmente em Serra Pelada.
Ainda em 1988, Bolsonaro entrou para a política e foi eleito vereador do Rio de Janeiro. Mesmo eleito, a má fama entre militares de alta patente fez com que sua entrada fosse proibida em muitos quartéis. Hoje, 30 anos depois, o militar baixa patente que quis bombardear quartéis virou chefe supremo das Forças Armadas, posição conquistada democraticamente.
Duas correntes principais formam o governo bolsonarista: o olavismo e os militares. Enquanto a primeira é baseada unicamente na ideologia extremista do velhinho caçador de urso da Virgínia (EUA), a segunda é mais moderada (lembrando que até um trezoitão carregado parece moderado ao lado de Bolsonaro) e pragmática. O presidente tenta se equilibrar entre as duas, mas já está claro que o olavismo é o que tem mais influência sobre ele e seus filhos.
Apesar de compor um governo com mais ministros militares que os da ditadura militar, Bolsonaro e as Forças Armadas ainda mantêm uma relação tensa. Se não fosse o freio da cúpula militar, por exemplo, Bolsonaro talvez já teria entrado em guerra contra a Venezuela.
Nesta semana em que o golpe militar completa 55 anos, Bolsonaro determinou às Forças Armadas que se comemore a data nos quartéis. O presidente quer que integrantes do governo exaltem o período em que estupros, torturas e assassinatos contra civis — o que ele chama de “probleminhas” — foram encomendados pelo governo.
Meio século depois, temos um presidente eleito exaltando o regime que impediu que presidentes fossem eleitos. Para ele, não houve golpe nem ditadura, mas uma revolução que nos salvou do comunismo. A falsa lógica é a seguinte: os crimes cometidos pelo estado foram necessários para impedir que um outro regime cometesse os mesmos crimes.
O governador Witzel e o chanceler Ernesto Araújo usaram a mesma justificativa mentirosa e apresentaram como se ainda houvesse uma disputa de narrativa. Como se chamar de “golpe” ou de “revolução” fosse uma questão de ponto de vista. Não é. Chamar o golpe de 64 de revolução é o terraplanismo aplicado à História. É simplesmente falso. A ameaça comunista de 1964 é fruto do mesmo delírio que garante haver ameaça comunista hoje. Ou melhor, delírio coisa nenhuma, a criação desses fantasmas é estratégica. A mentira como método é o que norteou e norteia todos os golpes contra a democracia e sustentou todos os regimes totalitários conhecidos.
Os militares, que sempre relembraram a data de forma discreta, pretendiam ser ainda mais discretos neste ano para não contribuir ainda mais para o acirramento ideológico promovido pelo presidente. Após a determinação de Bolsonaro, a cúpula militar escreveu uma ordem do dia com um linguajar mais moderado que o do presidente, mas igualmente mentirosa. O texto ignora o fato de que o estado brasileiro já assumiu os crimes praticados durante a ditadura militar após a conclusão do relatório da Comissão da Verdade em 2014.
Uma juíza federal deu cinco dias para o presidente se manifestar sobre uma ação aberta por um advogado que pede a proibição, em caráter liminar, da comemoração do aniversário do golpe nos quartéis. Algumas horas depois, a Defensoria Pública da União abriu um processo idêntico. Já o Ministério Público Federal, por meio da Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, emitiu nota afirmando que o ato de Bolsonaro se reveste de “enorme gravidade constitucional” e representa um crime de responsabilidade.
“O apoio de um presidente da República ou altas autoridades seria, também, crime de responsabilidade (artigo 85 da Constituição, e Lei n° 1.079, de 1950). As alegadas motivações do golpe – de acirrada disputa narrativa – são absolutamente irrelevantes para justificar o movimento de derrubada inconstitucional de um governo democrático, em qualquer hipótese e contexto”.
Enquanto integrava o Legislativo, Bolsonaro era só um um zé ruela folclórico de extrema direita querendo reescrever a História como todo bom reacionário. Agora, como chefe do Executivo eleito democraticamente, a coisa muda de figura. Não se trata apenas de revisionismo histórico vagabundo. É pior do que isso. É o chefe das Forças Armadas incentivando subordinados a comemorar um ato que rasgou a Constituição e abriu caminho para as atrocidades comandadas pelo estado contra o seu povo. Ele usa um poder concedido pela democracia para atentar contra ela. Se Bolsonaro determina que os militares louvem a data em que se matou o regime democrático, quais garantias temos de que o mesmo não pode acontecer no decorrer do seu mandato? Nenhuma.
O modo como o bolsonarismo iniciou o governo, criando conflitos sistemáticos com outros poderes constituídos, torna tudo ainda mais preocupante. Do que ele será capaz se virar alvo de um processo de impeachment? Motivos jurídicos para isso já existem, faltam os políticos. Bolsonaro se mostra arredio às regras desde os tempos de tenente e já cometeu mais de um crime de responsabilidade em apenas três meses de governo. O fato da cúpula militar não parecer disposta a embarcar nas suas loucuras autoritárias é um atenuante, ainda mais porque o general Mourão assumiria a presidência em caso de impeachment, mas quem garante que esse cenário não mudará?
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