Conheci a AIESEC em um anúncio na minha faculdade, que ofertava estágio e voluntariado no exterior a baixo custo. Sou estudante de jornalismo na UFRGS, e sempre sonhei em viajar pelo mundo, então decidi abraçar a chance. Na sede da ONG em Porto Alegre, fechei um estágio em marketing digital, que duraria três meses, na cidade de Ahmedabad, Índia. Planejei um crowdfunding para cobrir os altos custos, comprei passagens, seguro-viagem, tudo. Mas nunca embarquei.
Fundada em 1948 na Europa, a Aiesec nasceu com o objetivo de criar uma cooperação internacional de estudantes. Hoje, a ONG tem reconhecimento da Unesco, está presente em mais de 120 países e é composta por membros voluntários de idade entre 18 e 29 anos. Esses jovens são os responsáveis por vender e gerenciar oportunidades globais de trabalho e voluntariado. De setembro de 2017 a agosto de 2018, foram 41 mil intercâmbios em todo o mundo, cerca de 4 mil apenas para brasileiros, como me informou Gabriela Toso, a relações públicas da organização no Brasil.
No meu caso, o intercâmbio dependia das sedes da Aiesec em Porto Alegre e em Ahmedabad, já que cada oportunidade é resultado da cooperação entre escritórios de países diferentes. Só no Brasil, 50 escritórios da organização operam em parcerias com outras sedes no mundo inteiro. Para minha viagem, brasileiros e indianos me orientavam na documentação do visto e nos preparativos para conhecer uma cultura totalmente diferente.
Na Aiesec, todas essas responsabilidades de venda, negociação e assistência ao viajante são assumidas por seus voluntários: jovens que não recebem salário. Se eu tivesse ido para a Índia e tivesse qualquer problema em relação ao meu intercâmbio, da chegada no país a problemas com o estágio e hospedagem, eles seriam os responsáveis pelo meu bem-estar.
A comédia de erros
Na prática, após um mês sendo orientado por voluntários dedicados ao “desenvolvimento de meus potenciais de liderança”, comecei a ver a comédia de erros em que me meti. Quando dei por mim, percebi que havia assinado um contrato que dizia que eu cumpriria um intercâmbio social de 50 horas semanais por meio da Aiesec. Não havia nenhuma referência a estágio ou vínculo de trabalho com qualquer empresa. Precisei ligar os pontos sozinho.
Logo descobri que esse “intercâmbio social” é que era o meu “estágio”. Uma jornada de trabalho de 200 horas mensais, de segunda a sábado – muito superior ao permitido pela Lei do Estágio brasileira e pela CLT. O salário? Apenas 2.500 rúpias indianas por mês – R$ 0,65 a hora, ou R$ 130 mensais. Meu salário diário seria R$ 1,63 abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial: R$ 7,05 por dia.
Confiei e aceitei. Você joga “Aiesec” no Google e recebe relatos positivos na imprensa, posts institucionais e blogueiros da moda falando mil maravilhas. As críticas se resumem a uns poucos reclamões no Medium e no submundo das avaliações da ONG no Facebook. Incrível como um bom trabalho de propaganda manipula a gente.
Uma proposta indecente
Minha viagem estava marcada para 3 de fevereiro. Mesmo chateado, ainda queria muito o intercâmbio. Ahmedabad foi por anos a casa de Mahatma Gandhi, meu ídolo pessoal, e eu até já tinha planejado trabalhos extras para compensar o baixo salário. Como estudo jornalismo, a ideia era fazer reportagens freelancer no exterior. Fiz planos de contingência, contatos no país, tudo. Só faltava emitir meu visto em São Paulo, no Consulado-Geral da Índia.
Ao pesquisar os requisitos para entrada no país, percebi que meu salário não era suficiente para o visto de estágio, apesar da própria Aiesec ter me orientado a solicitá-lo. Ao falar isso para eles ouvi que eu trabalharia numa startup, que haveria regras diferentes das aplicadas em empresas tradicionais. Na Índia, ONGs e startups seriam equivalentes. Pareceu furada, mas resolvi dar mais um voto de confiança.
“Eles estão na maior ONG jovem do mundo, trabalham toda hora com relações internacionais, devem entender dessas coisas”, pensei, e embarquei para São Paulo, já que a solicitação de visto só poderia ser feita pessoalmente. Cheguei lá em 23 de janeiro e fui direto ao Consulado-Geral da Índia, na Avenida Paulista. Paguei a taxa de R$ 325, entreguei os documentos e depois tive a honra de ter o visto rejeitado pelo cônsul indiano em pessoa. O salário era baixo demais, ele disse.
Apesar da recusa, eu tinha mais um dia em São Paulo, e a Aiesec propôs outra tentativa para salvar o intercâmbio. Em uma nova requisição, queriam que eu mentisse o propósito da viagem. Pediram para eu solicitar um visto de trabalho voluntário e social, apesar de meu estágio seguir o mesmo. Preferi recusar e evitar transtornos, como o da intercambista da Aiesec que foi presa na China por trabalhar com um visto inadequado, em 2014. Ouvi ainda de membros da Aiesec em Porto Alegre que havia deixado de viajar “por razão fútil”.
Com o intercâmbio cancelado, minha família teve um prejuízo de R$ 3 mil. Comecei a me perguntar como uma ONG internacional que funcionou tão mal comigo poderia dar tão certo com outros. Certamente deveria haver mais casos como o meu, talvez até piores.
Por isso, decidi investigar como a Aiesec auxilia os jovens que embarcam em seus intercâmbios. Uma coisa é você ser mal orientado em casa, outra num continente distante. Busquei nas avaliações da ONG no Facebook e também nas menções a Aiesec no Twitter por usuários que também tivessem tido problemas. No Medium, diversos textos relatam experiências terríveis.
A primeira história que conheci veio de um grupo no WhatsApp de brasileiros que moram na Índia ou já viajaram para lá, no qual entrei logo após assinar com a Aiesec. Quando comecei a ter problemas com o visto, participantes que tinham ido ao país pela ONG se compadeceram. Entre nós, começamos a compartilhar nossas más experiências com a organização. Uma delas aconteceu em Surate, a 250 km de Ahmedabad.
Pesadelos em um continente distante
“Não sei como essas pessoas foram capazes de fazer isso, de me tratar como trataram, e não sei como consegui sair de lá e me recuperar”, me disse a arquiteta Isabela, 22 anos, sobre a experiência com a Aiesec de junho a outubro de 2018.
Conversei com Isabela, que pediu para não ter o sobrenome publicado, via WhatsApp, em fevereiro. Ela viajou a Surate para trabalhar por seis meses na faculdade de Arquitetura da Fundação Bagwan Mahavir. Ainda no Brasil, membros da ONG na Índia disseram que a hospedagem seria em uma residência universitária, compartilhada com mais sete intercambistas estrangeiros. Uma promessa parecida à feita a mim. Não pude comprová-la, mas Isabela sim – e foi enganada.
A arquiteta acabou em uma casa lotada de homens indianos que não falavam inglês. Cerca de dez dormiam na sala, outros incontáveis nos demais cômodos e Isabela sozinha num quarto, em um país notório por casos de estupro coletivo. O lugar, na verdade, abrigava funcionários temporários da faculdade, que prestavam todo tipo de serviços, e não estudantes.
“Fazer um intercâmbio na Índia era um sonho de infância. Hoje se tornou meu pior pesadelo”, escreveu Isabela para as sedes da ONG em Surate e Aracaju, em julho de 2018.
Isabela evitava andar pela casa para não ser assediada. Passava o dia trancada no quarto e logo aprendeu a xingar em hindi, a língua local, para repelir abusos. Mesmo assim, trancafiar-se não foi suficiente. O zelador da casa, Jayesh, costumava entrar em seu quarto sem permissão, destrancando a porta com uma chave-mestre, a pretexto de lhe entregar lanches ou garrafas d’água. “Eu dormindo ele começava a bater no quarto, eu de pijama, não queria abrir, estava mal… Ele simplesmente abria e entrava.”
Um mês depois, Isabela conseguiu se transferir de acomodação. Dessa vez, moraria sozinha, em outra casa cuidada pelo mesmo Jayesh. Ela conta que, dias depois, o zelador invadiu o quarto enquanto ela dormia, acompanhado de outro indiano. A justificativa era verificar o chuveiro, sem aviso prévio.
“[Na casa] sentia-me insegura e abandonada em uma realidade oposta à que me foi prometida no Brasil”, escreveu Isabela, em carta de reclamação enviada em julho de 2018 às duas sedes responsáveis por sua viagem. Sozinha na Índia e ignorada pelos membros de Surate, a intercambista pediu ao seu escritório da ONG no Brasil, em Aracaju, a transferência para outra “oportunidade”, como são chamadas as vagas de estágio.
Todo intercâmbio da Aiesec é pago. A organização vende ao viajante sua assistência e intermediação com alguma empresa (ou ONG, para voluntários) no país de destino. Empresas compram da Aiesec assistência e intermediação para contratar intercambistas – nome chique para mão de obra barata. O escritório brasileiro recusou-se a realocar Isabela a menos que ela pagasse a taxa de compra para outro estágio: R$ 2.088, valor que a brasileira não pôde pagar.
Isabela teve de permanecer em Surate. Sem companhia, a arquiteta passou a ter diarreia e dores pelo corpo e adoeceu a ponto de não conseguir trocar de roupa sozinha. Descobriu que a água fornecida à moradia estava contaminada. Doente, ela pediu mais uma vez ajuda à ONG no país, mas o voluntário que supervisionava seu intercâmbio havia se desligado.
A jovem só foi levada ao hospital no décimo dia de infecção, quando um novo voluntário foi designado para auxiliá-la. Acompanharam Isabela até o hospital Green Leaf e lá a abandonaram. Os membros da ONG queriam ir para uma conferência nacional da Aiesec em Goa, cidade a 800 km de Surate.
Ao sair, Isabela foi avisada de que novas intercambistas chegariam à moradia para um voluntariado de um mês. Antes disso, a brasileira quis se reunir com a Aiesec local para discutir os problemas. Ouviu de Siddarth, um dos membros da ONG, que todos os problemas só aconteceram porque ela “não cooperava”. Ele ainda sugeriu que a faculdade estava insatisfeita com seu trabalho, o que a arquiteta descobriu ser mentira.
Com contrato até novembro de 2018, a arquiteta resolveu desistir do intercâmbio em outubro, quando seu visto no país venceu. A Aiesec havia a orientado errado na emissão, que saiu com um mês a menos que o necessário.
Um problema global
A plataforma internacional da Aiesec promove o intercâmbio de jovens entre quaisquer de seus escritórios. Após o cadastro de um interessado no Brasil, por exemplo, os membros da organização podem oferecer programas no outro lado do mundo e vice-versa.
Foi assim que me ofereceram vaga em marketing digital na Índia, e a D. H., uma veterinária egípcia, um estágio na América do Sul. Conheci-a através de uma brasileira que foi sua colega de trabalho insalubre. A jovem, que pediu para não ter seu nome revelado, chegou em agosto de 2018 a Chía, Colômbia, para uma experiência de um ano como professora de biologia. Precisou se demitir em dezembro porque não aguentou o jeito com que a tratavam.
Segundo D. H., nada do que estava em seu contrato com a Aiesec era mentira. O problema é que questões importantes sobre seu empregador lhe foram omitidas. “Seria mais honesto nos avisar: ‘Essa escola tem tais problemas, você aceita vir?’. Se eu soubesse de algumas coisas talvez não aceitasse a vaga”.
Na escola de classe alta em que foi trabalhar, a veterinária e outros estagiários da Aiesec eram obrigados a trabalhar nove horas corridas por dia sem pausas para descanso. No almoço a egípcia tinha 15 minutos para comer e no resto do tempo deveria “supervisionar” os estudantes.
“Você não é tratado como um ser humano, é tratado como um escravo”, disse D. H.
Isso trouxe constrangimento para D. H., que é muçulmana e respeita o Salat, as rezas diárias feitas ao longo do dia. Para isso, ela precisaria de duas pausas curtas para preces, de três a cinco minutos cada, durante o meio-dia e na metade da tarde, num total de sete minutos diários. Mesmo assim, ela diz que suas chefes viam isso como “um desrespeito aos horários da escola”.
Segundo ela, uma das coordenadoras lhe disse: “Não estamos te pagando para rezar”. Durante o Eid Al Adha, festival muçulmano que ocorre em agosto, a jovem pediu permissão para sair do trabalho uma hora mais cedo e ir a uma mesquita em Bogotá, a uma hora de Chía. Apesar de ter terminado seu trabalho com antecedência, o pedido foi negado.
A escola também dava muitas tarefas burocráticas às estagiárias, que não conseguiam terminá-las durante o expediente. Por isso, trabalhavam em casa, às vezes das 18h à meia noite, e até aos finais de semana. “No fim do mês, diziam que não nos dariam o salário até acabarmos essas atividades”, relata.
A veterinária disse que reclamou várias vezes à direção do colégio, sem sucesso. “Diziam que eu não era uma boa professora ou que eu não sabia gerenciar meu tempo”, afirma D. H. Ela conta que pediu ajuda à Aiesec, mas foi informada de que seu visto no país estava vinculado à ONG e que não havia outros cargos semelhantes. Se saísse da vaga, precisaria deixar a Colômbia.
“Eu não estou feliz nesse lugar. Sinto-me desapontada e deprimida”, relatou D. H., em e-mail à Aiesec Egito.
A egípcia não aguentou e pediu demissão em 27 de dezembro, cinco meses após o início do intercâmbio. Três semanas depois, conseguiu outra vaga como professora, ainda vinculada à Aiesec. Em fevereiro, demitiu-se novamente e pediu a quebra de seu vínculo com a organização.
Para a veterinária, a gota d’água foi o atraso no pagamento de sua remuneração pela Aiesec local, que recebia em dia da nova empresa. Em alguns locais, em vez de o salário ser pago ao estagiário, é entregue à Aiesec, que o repassa aos estagiários. Isto evita vínculos trabalhistas e é uma das formas de intermediação entre iniciativa privada e viajante promovidas por escritórios da organização.
Contratos quebrados e promessas não cumpridas
Izabela Souza formou-se em Letras na Universidade Mackenzie com bolsa do ProUni. Foi a primeira da família a ter ensino superior e sentia o peso das expectativas sobre si. Negra e moradora de Jaçanã, periferia de São Paulo, a jovem de 26 anos decidiu fazer intercâmbio como forma de melhorar o currículo. Em 2017, também seria a primeira de casa a ter experiência internacional – que terminou em uma denúncia publicada no Medium.
Viajou pela Aiesec para uma vaga de professora de inglês na Escola de Línguas Kavacik Branch, em Istambul, Turquia, onde cumpriria 160 horas mensais – uma média de 8h por dia, num expediente regular de segunda a sexta. Chegou em julho de 2017 para trabalhar um ano. Resistiu até dezembro. “Num domingo sentei no chão da escola e só conseguia chorar. Entrei em pânico”, relatou.
A escola recebia outros estagiários da Aiesec, e, segundo ela, tudo começou a dar errado a partir do terceiro mês, quando a intercambista mais antiga, uma russa chamada Elena, saiu do projeto. “Você vai entender por que esse lugar é terrível”, disse a Souza antes de partir. Foi aí que a brasileira começou a ter de fazer horas extras sem ser consultada. Foram 3 horas em outubro e 39 horas em novembro.
“Quando a Aiesec diz que ‘não acham que eu posso me demitir’, bom, o trabalho escravo é o único que conheço em que não se pode pedir demissão”, disse Souza, em e-mail à ONG.
A atribuição de horas extras não notificadas ou sem mútuo acordo violava o contrato assinado por Souza. Enquanto a intercambista cumpria 199 horas em um mês, outros professores faziam apenas 100. Nessa escala, a brasileira trabalhava seis vezes na semana com um dia de folga, em jornadas que chegavam a 12 horas diárias.
Souza resolveu reclamar ao escritório da ONG em Istambul e pediu para que a trocassem de estágio. Relatou estar doente, se alimentando mal, com problemas de sono e deprimida. Chegou a trabalhar 32 horas em três dias – dois deles num fim de semana. Ouviu de um membro da Aiesec que precisaria da aprovação de Esra, sua chefe, para deixar a escola.
Quando falou com Esra, foi destratada. A gerente teria dito que “era falta de ética dela” e que “ia ver com a diretoria da escola se a liberariam”. A brasileira argumentou que a escola violara o contrato ao escalá-la em horas extras não acordadas. Acertaram que a intercambista trabalharia somente mais 15 dias, até o fim de 2017.
No dia seguinte, surpresa. Esra afirmou ter decidido com a Aiesec local, sem o consentimento de Souza, que ela trabalharia janeiro inteiro. O escritório da ONG no Brasil, Aiesec USP, interveio e orientou a professora de inglês a abandonar o serviço. Turcos então começaram a pedir à brasileira que permanecesse na vaga. “Você não acha cruel abandonar as crianças que estão sendo educadas por você?”, disse o vice-presidente do escritório em Istambul.
Em 23 de dezembro, Souza abandonou o cargo e cortou seu vínculo com a Aiesec. Conseguiu uma vaga noutra escola, sem associação nenhuma com a ONG, em Balikesir, a cerca de 300 km da capital turca. Dias depois, precisou retornar a Istambul para buscar o salário das 132 horas trabalhadas em dezembro. Nova surpresa: a escola resolveu pagar 1.000 liras turcas a menos do que devia.
Por sentir-se ameaçada pela ex-chefe e membros da Aiesec local, Souza decidiu tratar da questão somente quando voltasse ao Brasil. Mas levou mais três meses para que a professora recebesse a remuneração faltante, com descontos de R$ 138, já que a escola não quis assumir os custos bancários e de câmbio.
Por que não processar a Aiesec?
A Aiesec oferece três programas de intercâmbio global: trabalho voluntário, estágio em startups e oportunidades em empresas. Empregos e estágios duram de três meses a um ano, e projetos sociais entre quatro e doze semanas. Menos tempo, mas ainda o suficiente para problemas.
A advogada Thaís Ferreira, por exemplo, formalizou por e-mail, em julho passado, pedido de reembolso por conta de uma experiência frustrada no Vietnã entre janeiro e maio de 2018. A brasileira precisou trabalhar numa empresa com a qual ela não assinou nenhum contrato porque, ao chegar ao país, descobriu que a vaga prometida a ela não existia. Por isso, a advogada precisou receber um salário 200 dólares menor do que o esperado e custear a acomodação do próprio bolso (a Aiesec se comprometera em contrato a providenciar e cobrir a estadia).
A intercambista havia comprado o intercâmbio por R$ 1.350 no escritório da organização na USP e alegou quebra de contrato quando voltou ao Brasil. Desde então, tem sido enrolada. Hoje, nove meses depois da reclamação inicial, a Aiesec USP ainda diz “analisar” o caso.
Como a organização é uma entidade internacional, a culpa se dilui entre escritórios de diferentes países, os parceiros da organização e seus membros voluntários.
Em meu caso, por exemplo, quando nos reunimos para discutir a rejeição do visto indiano, o presidente da Aiesec em Porto Alegre chegou a dizer que eu teria prejuízos muito maiores caso os processasse, para além dos R$ 3 mil que perdi. E tinha razão.
Primeiro, por causa do status de ONG da Aiesec. O que vou tirar de uma organização sem fins lucrativos? Além disso, cada escritório local e diretório nacional são pessoas jurídicas diferentes, todos reunidos sob a marca “Aiesec” por um modelo de associação. Segundo, quem me mandou documentos imprecisos foram indianos, e não brasileiros. Como provar que a sede daqui me deve alguma coisa? Como processar um indiano?
Quando comecei a conversar com ex-voluntários da ONG, descobri que existe um documento que define as responsabilidades de cada escritório da Aiesec nesses casos e os direitos dos intercambistas em caso de problemas. A questão é que a maior parte dos membros da ONG desconhece essas regras, dispostas na política interna de intercâmbios da organização, o chamado XPP Policy, um documento de 51 páginas, disponível somente em inglês (o que dificulta o acesso de quem não é fluente).
Uma organização que desconhece as próprias regras
A Aiesec provê uma espécie de “tribuna internacional”, em que um escritório em Porto Alegre pode cobrar outro em Ahmedabad. Em meu caso – recusa de visto em função de orientação errada –, a cláusula 1.3.17.7.1 prevê que a Aiesec em Ahmedabad seria a responsável por me reembolsar. O chocante é que a sede em Porto Alegre nunca me orientou nesse sentido.
No fim de fevereiro, entrevistei a diretora de Relações Públicas da Aiesec Brasil, Gabriela Toso. Contei a ela o caso de Isabela, abandonada sem água potável e doente em Surate, Índia. Toso respondeu que “a responsabilidade de atendê-la era do seguro-saúde, e não nossa”, e eximiu a organização de quaisquer responsabilidades. Mas, segundo o XPP (cláusulas 1.3.9.11 e 1.3.9.12), é obrigação da Aiesec auxiliar o intercambista na obtenção de recursos essenciais, como água, luz e eletricidade.
Uma semana após essa entrevista com a diretora de Relações Públicas, recebi de um advogado da Aiesec Brasil um e-mail em que ele afirmava que a apuração jornalística sobre a ONG constitui “fato grave” sujeito a “eventual ação indenizatória”. Enviei mais perguntas a Toso, para confirmar dados da entrevista e questionar por que a diretora nacional desconhece as regras da própria companhia. A Relações Públicas recusou-se a responder e argumentou que existiam “cláusulas de confidencialidade” sobre as oportunidades de terceiros, apesar das perguntas se referirem diretamente às políticas internas de intercâmbio da organização.
De lá para cá, conversei (entre entrevistas e recusas) com cerca de 30 pessoas, de intercambistas a voluntários, analisei mais de 100 páginas de documentos em três línguas e reuni inúmeros prints de tela, vídeos e fotografias para essa reportagem. Ressalto isso porque, segundo o e-mail do advogado da Aiesec Brasil, ela é apenas uma tentativa de sujar “de forma injusta e gratuita” a imagem da ONG no Brasil.
O XPP, que é público, prevê ainda protocolos antiassédio e para denúncias de irregularidades que não são sempre seguidos por seus membros. Para entender a questão, localizei ex-voluntários da organização, que entrevistei via WhatsApp. Segundo três deles, que não quiseram se identificar, nem os próprios membros conhecem ou se importam com as regras internas da organização que coibiriam abusos.
Vender intercâmbios é mais importante, na Aiesec, do que garantir boas experiências.
“Eles são mestres em ficar jogando a culpa pro outro e se isentando. Não conseguem enxergar que, quando alguém erra, é culpa da organização e de seus processos falhos”, relata J.S., ex-voluntário.
Além disso, como poucos estão cientes da importância do documento, viajantes não sabem que podem requerer quebra de contrato ou solicitar novas oportunidades por conta das violações sofridas. Nenhum dos intercambistas dos casos que citei sabia da existência do XPP e que as situações que enfrentaram eram passíveis de reembolso ou reparação nos termos dele.
Para os ex-voluntários entrevistados, vender intercâmbios é mais importante, na Aiesec, do que garantir boas experiências. Segundo J. S., muitos escritórios locais estão dispostos a sacrificar intercambistas a fim de manter números e metas. Viajantes tornam-se “tubo de ensaio” de jovens voluntários que não têm ideia de como gerenciar oportunidades internacionais.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?