Há 61 anos, Zé Diabo produz ferramentas de orixás e agogôs no Arco 26 da Ladeira da Conceição, no centro histórico de Salvador. Da sua forja saem os instrumentos que ditam o ritmo do ijexá no Filhos de Gandhy, um dos mais importantes blocos afros do Carnaval de Salvador. “A vibração dos metais se irradia por todo meu corpo, nas partes internas, dos pés à cabeça”, disse Gilberto Gil enquanto levitava tocando um desses agogôs em um desfile do Gandhy em 2009.
Mas a produção dos instrumentos de Zé Diabo, hoje com 71 anos, pode ser interrompida. Ele e seus vizinhos temem ser retirados da Ladeira da Conceição por causa de um projeto de “revitalização” da área – considerado pelo prefeito ACM Neto, do DEM, seu principal legado urbanístico para a capital baiana. “Cheguei para trabalhar nos arcos com 10 anos de idade”, disse Zé Diabo, cujo nome de batismo é José Adário dos Santos.
Inicialmente, o projeto, batizado 4º Eixo do Programa Salvador 360º, que engloba ações no Centro Antigo, previa investimentos de R$ 200 milhões. Mas o prefeito ACM Neto disse que os valores chegarão a R$ 300 milhões, oriundos da prefeitura, da Caixa Econômica Federal e empréstimos do Banco de Desenvolvimento da América Latina, para “mudar completamente o perfil urbanístico” da região. O projeto prevê a reforma dos “arcos”, como são chamados os casarões de Zé Diabo e seus vizinhos. Os casarões da Ladeira da Conceição têm esse nome porque ficam sob os arcos de sustentação da ladeira da Montanha, que está acima da Ladeira da Conceição.
Ali vivem e trabalham há décadas ferreiros, serralheiros e marmoristas, herdeiros de ofícios tradicionais de matriz africana, alguns deles instalados no local há gerações. Muitos artesãos chegaram escravizados à Bahia, provenientes do antigo Reino do Congo (onde hoje é Angola).
É comum, no centro antigo de Salvador, que imóveis ocupados há muito tempo não tenham a propriedade definida. Alguns artesãos que ocupam os arcos não têm as escrituras dos imóveis – por isso, vivem com medo do despejo. Isso já aconteceu na década de 1990, quando o então governador Antonio Carlos Magalhães – avô do atual prefeito – fez um projeto de revitalização nessa mesma linha, ainda que mais agressivo.
Em 2014, os trabalhadores fizeram um acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional, o Iphan, e com a prefeitura para que não fossem retirados do local. Mas, no ano seguinte, parte dos imóveis foi derrubada pela Defesa Civil sob a alegação de irregularidades e risco por conta das chuvas. Alguns tiveram de deixar o espaço sem receber indenização – caso de Vera Lúcia, que teve a casa construída nos arcos demolida após 25 anos trabalhando como ferreira no local. Seu filho, Telmiro Rocha, de 32 anos, permanece na mesma rua, ocupando o casarão do tio marmorista aposentado.
No novo projeto de revitalização, os artesãos alegam ter a posse dos espaços, mas a prefeitura insiste na reforma porque a área é tombada como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Alguns moradores têm comprovantes de compra dos imóveis, como Zé Diabo. “Eles deveriam preservar isso aqui, não querer tirar a gente”, reclama, enquanto exibe o documento de compra e venda do arco 26, datado de 1967. “Com essa idade, se eu sair daqui, vou fazer o quê da vida?”
A 200 metros do casarão de Zé Diabo ficam os hotéis de luxo Fera Palace e Fasano, cujas diárias variam de R$ 400 a R$ 3,7 mil. Os dois foram contemplados com isenções fiscais no Salvador 360º, de acordo com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo. O programa prevê ainda a reforma de praças e ruas no Centro Antigo, a construção de museus, a mudança de várias secretarias municipais para o Comércio, bairro vizinho do Pelourinho, e incentivos para marinas e empresas da indústria criativa. O objetivo principal do projeto é atrair investimento privado para a área.
Para dar lugar aos novos empreendimentos, as comunidades empobrecidas estão sendo ameaçadas de despejo na região. Sem dinheiro para comprar, reformar ou regularizar os imóveis, em grande parte condenados e com aluguéis em alta, a população pobre que vive no local é forçada a sair de lá.
Ao ouvir que os hotéis de luxo ganharam isenção fiscal, o comerciante Clarindo Silva respirou fundo e não segurou as lágrimas. Dono do restaurante Cantina da Lua, que funciona há 74 anos (Clarindo está no comando há 48), ele luta para pagar dívidas – situação comum entre os comerciantes da região. De acordo com Silva, presidente da Associação dos Comerciantes do Centro Antigo, 189 estabelecimentos já teriam fechado as portas. “Tenho 76 anos, trabalho 18 a 20 horas por dia para segurar isso aqui. Abro a casa, fecho a casa, faço compras, em nome de poder manter esse espaço de resistência. Aí vem um cara da profundeza dos infernos e ganha isenção de imposto por não sei quantos anos”, desabafa. “Isso mexe muito comigo.”
Silva lembra que, na década de 1980, 58 comerciantes fecharam as portas e ele resistiu porque vendeu o carro da mulher, a casa onde moravam e um sítio. “Acreditei, investi pesado, e não houve uma sequência. Cada governo que chega tem um olhar diferente para o Pelourinho e não respeita a gente.”
Centro gourmet
O lançamento do eixo Centro Histórico do Salvador 360º aconteceu em agosto de 2017 numa cerimônia no Fera Palace, na Rua Chile. Seu acionista, Antonio Mazzafera, é também conhecido como “o novo dono da Rua Chile” – nos últimos anos, ele afirma ter assumido o controle de 123 imóveis em 16 prédios nas imediações da rua onde fica o seu hotel. Ele é sócio da Fera Investimentos, que administra o Fera Palace e é sócia da Nova Bahia, empresa que comprou 75 dos imóveis adquiridos pelo grupo. Uma de suas investidoras é uma offshore sediada no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas chamada Calatrave Invest & Trade Inc.
A atuação da Nova Bahia no centro histórico de Salvador se intensificou nos últimos anos. Segundo um levantamento de compras e vendas de imóveis feito pelo Intercept, só entre 2012 e 2017, Mazzafera e suas empresas investiram pelo menos R$ 12 milhões em aquisições imobiliárias na região.
Além de o hotel ter sido beneficiado com o projeto de revitalização da prefeitura, o governo do estado também deu a sua contribuição. Só na Rua Chile, estão sendo investidos cerca de R$ 5 milhões para eliminar postes, aterrar a fiação e trocar o piso da rua do hotel. No total, o governo estadual promete investir R$ 124 milhões para recuperar mais de 270 vias de bairros centrais de Salvador.
A expectativa é que o Fera Palace, que investiu cerca de R$ 60 milhões para recuperar o prédio em estilo art déco, sirva de âncora para os comércios de luxo que o grupo planeja instalar em seus imóveis na região. Lojas, galerias de arte, bares, restaurantes e farmácias estão nos planos. Um estacionamento dos mesmos donos já funciona no entorno.
O Fera Palace garante que “emprega 80 funcionários diretos, muitos dos quais moradores das proximidades, e movimenta toda uma cadeia de fornecedores”, de acordo com nota de sua assessoria. Ressalta que adquiriu apenas “imóveis comerciais, muitos dos quais em estado de completo abandono”.
O Hotel Fasano, inaugurado em dezembro no antigo edifício do jornal A Tarde, na Praça Castro Alves, foi outro beneficiado pelo programa Revitalizar, um dos instrumentos do pacote Salvador 360º para estimular a recuperação de casarões e imóveis históricos.
A assessoria do Fasano não deu retorno, assim como a dos outros sócios da Nova Bahia. Nem a prefeitura nem os hotéis informaram os valores das isenções concedidas – entre os benefícios tributários previstos no programa, estão descontos no IPTU (por até 10 anos) e em outros impostos e taxas.
“Eles fazem um hotel e deixam o resto como casa de engorda. Compram muito, com preço de bagatela, e ficam esperando inclusive aportes do poder público no entorno”, diz Lysier Reis, professora de urbanismo da Universidade do Estado da Bahia. “Se vier, eles avançam, se não, ainda assim ganham com os imóveis.”
O desconto do IPTU dado aos hotéis cairia bem para Simone de Oliveira, de 39 anos, única mulher entre os artesãos da Ladeira da Conceição. Ela conta ter dificuldade para pagar o imposto municipal do arco número 12 desde 2014. Naquele ano, os moradores receberam uma ordem de despejo da prefeitura, exigindo a saída em 72 horas. Seriam instaladas residências artísticas, como se não fosse arte as ferramentas de Exu produzidas por Zé Diabo.
A população forçada a sair do centro é, em sua maioria, negra e pobre.
Os projetos para o Centro Antigo dos governos municipal e estadual foram desenhados a partir da lógica do mercado imobiliário na avaliação de um dos coordenadores do Movimento Sem Teto da Bahia, Pedro Cardoso. “Não há plano para reformar os imóveis que estamos, por exemplo”, critica, em referência aos seis prédios que o movimento ocupa na região. “Você não vê projeto popular para o centro, tampouco para a classe média. É um perfil para o turista e pessoas de alta renda, quando o grosso dos habitantes é de classe mais popular”, diz Cardoso.
Quem quer comprar não consegue
Moradora do número 28 da ladeira da Preguiça há 30 anos, a aposentada Cidalva de Jesus foi surpreendida em abril do ano passado por uma reintegração de posse. “Um dia tô sentada aí fora e chega uma moça e dois rapazes, saltam do carro e um diz logo: ‘sou oficial de justiça e o senhor Mario Augusto Barbosa Sacramento quer a casa dele de volta’”.
Foi assim, de supetão, que ela soube que o imóvel era alvo de uma reintegração de posse de Sacramento, o preparador físico da comissão técnica do treinador Toninho Cerezo, craque da seleção de 1982. Sacramento comprou quatro imóveis na região entre 2008 e 2015 e, de acordo com seu advogado, Pedro dos Santos Neto, “a ideia não é colocar as famílias para fora, mas remanejá-las para uma habitação digna”. Cidalva não tem a escritura – ela alega usucapião por ocupar a casa há três décadas.
Sacramento seguiu os passos do chefe, Toninho Cerezo, que investiu em 16 imóveis no bairro nos últimos anos – são terrenos, apartamentos, salas e casarões comprados às baciadas. “Não sou aplicador imobiliário”, disse o ex-jogador, garantindo que não pretende demolir as casas. Para Cerezo, falta crédito ou parceria para investir nos terrenos e sobra burocracia do Iphan por conta do tombamento.
“Eu queria ter as facilidades que algumas empresas estão tendo”, cutuca, alegando que respeita os direitos dos moradores. Após entrar com uma ação na Defensoria Pública, Cidalva de Jesus permanece no local.
No casarão número 5 da Rua da Ajuda, em meio a pequenos e médios comércios, funcionava desde 1963 o Bar Ristorante. Sua dona, Sandra Adorno, herdou o estabelecimento do sogro. Diz ter investido R$ 200 mil em uma reforma na sala alugada de 47 m². Antes do fim da obra, a Associação dos Empregados de Comércio da Bahia, a AECB, dona do imóvel, colocou todo o casarão à venda. Adorno, que alegava ter o direito de preferência, tentou comprar só a sala, mas o pedido foi negado.
Conta que reuniu, então, três sócios para comprar o casarão pelo valor oferecido: R$ 1 milhão. “Quando fomos ver as certidões, havia dívida trabalhista de R$ 3,5 milhões. E eles queriam que assumíssemos”, detalha a empresária, que foi à justiça pleitear a renovação do aluguel por conta do alto valor.
O casarão acabou sendo vendido em 2013 para a empresa D. S. A. S. Participações, que o repassou para a Nova Bahia por R$ 1.000.010 – apenas R$ 10 a mais do que os inquilinos alegam ter oferecido. “Com 30 dias da compra, veio a primeira ordem de despejo”, diz Adorno. Por causa do processo do aluguel, a ação subiu para a segunda instância. Em dezembro do ano passado, o Tribunal de Justiça da Bahia confirmou o despejo.
Parte dos imóveis adquiridos pela empresa de Mazzafera na região continuam fechados, tampados com tapumes. É o caso do Palacete, que também era da AECB e foi vendido por R$ 3,5 milhões para a mesma D. S. A. S. Participações. No local, Mazzafera planeja instalar o Palacete Gourmet, com restaurantes, centro cultural e um café-teatro.”Não pegamos nenhum centavo, foi tudo para quitar a dívida”, disse o presidente da AECB, Antônio José Cerqueira, por telefone.
‘Já perdi dinheiro com muitos negócios na minha vida. Com imóvel, eu nunca perdi.’
O 4º eixo do Salvador 360º foi lançado em 2017 na gestão do então secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Guilherme Bellintani. Atual presidente do Esporte Clube Bahia, ele também conhece bem o mercado de imóveis na cidade: é sócio de pelo menos três empresas do setor.
Com o projeto, Bellintani agradou os colegas. “É um desejo de anos do mercado, porque é uma área maravilhosa, com uma grande oportunidade de negócios de habitação”, disse em entrevista por telefone Cláudio Cunha, presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia.
“Já perdi dinheiro com muitos negócios na minha vida. Com imóvel, eu nunca perdi”, Bellintani disse em uma palestra. Apesar de ser introduzido na política por ACM Neto, ele é atualmente cotado para ser o candidato do governador petista Rui Costa à prefeitura de Salvador em 2020.
“Minha atuação empresarial foi paralisada quando entrei na prefeitura. Não tenho nada no Centro Histórico, não comprei nada lá nem antes e nem depois, e nunca requeri ou fui contemplado em qualquer benefício fiscal”, disse Bellintani ao Intercept. “Sempre tive muita atenção para não misturar minha vida empresarial com a função pública que ocupava.”
A gentrificação dos Magalhães
O processo de expulsão dos moradores do Centro Histórico não é novo. Na década de 1990, uma grande reforma iniciada pelo então governador Antônio Carlos Magalhães gerou a remoção de 2,1 mil famílias do bairro ao longo dos anos seguintes. O levantamento está documentado na tese de doutorado “O processo de gentrificação do Centro Antigo de Salvador 2000 a 2010”, defendida na Universidade Federal da Bahia pela arquiteta Laila Mourad.
Na época, o governo recuperou imóveis e os ofereceu a funcionários públicos por meio de financiamento. Em outro modelo, o governo devolveu 38 casarões para 98 famílias que moravam no local – elas, no entanto, se tornam apenas cessionárias, tendo que renovar o direito à moradia a cada cinco ou dez anos. “Foi uma cilada. Quando aceitamos sair, tínhamos a posse. Quando voltamos, viramos somente cessionários, sem poder vender ou deixar para nossos filhos”, criticou a presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico, a Amach, Jecilda Mello.
A estratégia do governo, escreveu a pesquisadora na tese, foi “expulsar os moradores pobres e substituir a função residencial por outros usos (joalheira, restaurantes e hotéis, entre outros) voltados para as classes médias e altas”. Mais ou menos o que o projeto do neto de ACM segue fazendo.
O prefeito garante, em nota enviada pela assessoria de imprensa, que nunca cogitou retirar os ferreiros e marmoristas da área. “Essa não é a política da atual gestão”, diz a nota. A prefeitura de Salvador também diz que não há conflito de interesses no fato de o plano ter sido formulado por um empresário do setor imobiliário. “As propostas foram amplamente discutidas de forma transparente, participativa e envolvendo os interessados e especialistas que pudessem contribuir”, disse a assessoria do prefeito.
Depois dos questionamentos do Intercept, a prefeitura iniciou uma conversa com os artesãos da Ladeira da Conceição para reformar os casarões em duas etapas e evitar a retirada dos trabalhadores do local.
A prefeitura diz que qualquer pessoa que tenha um imóvel degradado na região pode solicitar os benefícios do programa Revitalizar, concedidos aos hotéis – segundo a prefeitura, já foram 40 pedidos, mais da metade aceitos. Os nomes dos possíveis contemplados, no entanto, não foram divulgados, sob alegação de que os trâmites não estariam concluídos.
Correção: 22 de abril de 2019, 23h30
Uma versão anterior deste texto dizia que, em média, a renda mensal de negros e pobres forçados a sair do centro de Salvador era de R$ 912 – valor abaixo do salário mínimo. O valor é de 2010 e, na época, não era inferior a um salário mínimo. A informação foi cortada do texto.
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