Rosana Pinheiro-Machado

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A lição dos chineses sobre como protestar em tempos autoritários

Com 2 mil greves por ano, as condições de trabalho na China só melhoraram porque os trabalhadores foram para as ruas – e para as redes.

Protestantes participam de manifestação do Dia do Trabalho em Hong Kong, em primeiro de maio de 2018.

Protestantes participam de manifestação do Dia do Trabalho em Hong Kong, em primeiro de maio de 2018.

Protestantes participam de manifestação do Dia do Trabalho em Hong Kong, em primeiro de maio de 2018.

Foto: Anthony Wallace/AFP/Getty Images

Prestes a completar 30 anos do massacre da Praça da Paz Celestial, que ocorreu em 4 de junho de 1989 em Beijing, a China confirma ter um das mais antigas e robustas tradições de protesto no mundo – como disse a professora de Harvard, Elizabeth Perry. Se hoje observamos uma linha ascendente no avanço da legislação trabalhista chinesa, isso se deve, em grande medida, à excepcional mobilização dos trabalhadores.

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A primeira vez que entrei em uma fábrica na China para fazer trabalho de campo, em 2006, encontrei todos os estereótipos sobre precariedade: crianças trabalhando em regime intensivo, instalações imundas, pessoas exauridas na linha de montagem de bugigangas baratas para ganhar um salário que equivalia a US$ 100 dólares mensais. Junto aos trabalhadores, comi alimento estragado e dormi em camas sem colchão em dormitórios cheios de baratas (uma delas carinhosamente apelidada de Meimei, que significa irmã mais nova).

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O que eu observava em campo era apenas uma amostra minúscula de uma imensidão de abusos trabalhistas que ajudavam a criar o imbatível preço chinês, o qual foi responsável pelo boom econômico da China na virada do milênio, especialmente na região do Delta do Rio das Pérolas na Província de Guangdong.

Os números dos abusos contra os 270 milhões de imigrantes internos, os liudong renkou –a maioria sem licença de moradia (hukou) e, portanto, trabalhadores ilegais no próprio país – são sempre escandalosos. Como apontei em meu livro, Counterfeit Itineraries in the Global South, de 1989 a 2004, 2,5 milhões de pessoas foram registradas com pneumonia de respirar poeira tóxica somente em Guangdong (sendo que a maioria dos adoecidos não registram ocorrência porque não tem hukou). Em 2007, 40 mil dedos foram perdidos em linhas de produção. Somente em 2013, 46.653 incêndios ocorreram em fábricas, matando 400 pessoas. De 2017 até o presente momento, o mapa do China Labor Bulletin (CLB) já registrou 1.107 acidentes de trabalho, muitos deles com dezenas de mortes.

Hoje, no coração fabril da China, o salário mínimo já é maior do que no Brasil.

Os setores mais vulneráveis são as mulheres e as crianças. Como mostrou o livro da socióloga Ngai Pun, Made in China, as trabalhadoras fabris chamadas de dagongmei vão para a cidade ainda muito jovens para escapar do casamento forçado por suas famílias. O resultado é a superexploração físicas dessas meninas que são abusadas sexualmente por seus patrões.

Mas as coisas estão mudando. No início dos anos 2000, os empresários que eu entrevistava, por exemplo, já mencionavam que precisavam melhorar as condições de trabalho e, com o tempo, fui conhecendo fábricas mais modernas, com instalações melhores e opções de lazer e entretenimento. Hoje, no coração fabril da China, o salário mínimo em Shenzhen é de RMB 2,130, aproximadamente R$ 1.243 –mais do que o salário mínimo brasileiro, hoje em R$ 998. A situação ainda está longe de ser ideal, mas há um avanço no cumprimento da legislação trabalhista.

É evidente que os planos de governo, estipulados em diversas metas, como o Made in China 2025 e Inteligência Artificial 2030, tiveram um papel decisivo nas melhorias das condições de trabalho dos últimos anos e na tão almejada transição para a inovação tecnológica. Mas, sem dúvida, a pressão exercida pelo ativismo trabalhista tem sido crucial para essa melhora.

Resistência e novo ativismo

Ao contrário da imagem de um povo passivo que aceita o que vem de cima, os trabalhadores precarizados chineses são conscientes de seus direitos, estão organizados e são responsáveis por uma “revolução legal” no mundo do trabalho nas últimas décadas, garantindo o direito a uma jornada de 40 horas semanais, por exemplo. Para a socióloga Anita Chan, os trabalhadores não são mais dóceis como no passado e estão emergindo como uma força ativa que cada vez mais deseja confrontar os empregadores.

O direito à greve foi removido da constituição de 1982 sob o governo de modernização de Deng Xiaoping, mas isso não implica intimidação, nem para os ativistas presos por desordem pública diariamente. O mapa das greves do CLB contabilizou que, de 2015 até o presente momento, ocorerram 8.862 greves trabalhistas (grande parte do que ocorre está fora do radar). O Ministério da Segurança Pública calcula que, na China, há de 80 a 100 mil atos de desobediência civil por ano (número que vem crescendo exponencialmente), os quais são caracterizados como “incidentes de massa” pelo governo. Por causa da repressão estatal e má caracterização dos protestos, é impossível precisar este dado, mas ao menos temos uma ideia da escala do caldeirão ativista do país.

Em seu livro Against the Law, Chiang Lee mostra que, ao contrário dos trabalhadores do norte decadente (em função da des-coletivização das fábricas da era maoísta) cuja identidade de classe é comunista, o novo precariado do sul do país é marcado pela emergência de jovens trabalhadoras que saem do campo para melhorar suas vidas, sonham em estudar e empreender. As dangongmei querem deixar a fome para trás e, ainda que exploradas, fazem parte de uma onda de aspiração e mobilidade social. Essas trabalhadoras estão cada vez mais organizadas em paralisações, greves de fome, boicotes, motins e demais táticas de ação direta.

Para burlar a repressão, a criatividade marca os protestos on e offline.

Os mais recentes trabalhos sobre ação coletiva na China, como os de Ya-Wen Lei, Mary Gallagher e Diana Fu, sugerem que há uma vibrante esfera pública emergente no país. Para Fu, o ativismo atual é formado por uma malha gigantesca, resultado da soma de muitas pequenas associações grassroots que atuam na escala microscópica no empoderamentos milhões de trabalhadores migrantes.

Quando uma trabalhadora explorada esgota todas as esferas de negociação com seus patrões e com as autoridades, elas procuram o aconselhamento dessas associações que, teclando nos chats das redes sociais, dão respaldo jurídico às mulheres, dizendo-lhes quais termos empregar na disputa. Tem funcionado.

Para burlar a repressão, a criatividade marca os protestos on e offline. Um dos tipos mais conhecidos são os protestos relâmpagos, que servem para evitar a repressão policial, tirar fotos e postar nas redes sociais chinesas como o Weibo e o WeChat. As redes chinesas são extremamente controladas, mas ainda sim possuem um papel importantíssimo para uma população que está cada vez mais acostumada a burlar a censura. Os ativistas mudam palavras para não cair na malha da vigilância e, quando detectados, são resilientes: fazem novos perfis e novas postagens. Em 2017, como reação a um incidente que ocorreu em uma fábrica em Guangdong, por exemplo, 800 grupos de protestos foram formados no WeChat.

Em relação à questão trabalhista, é via arbitragem (tentativa de acordo na justiça, sem processo, entre patrão e empregado) que o cenário do “ativismo legal” se transforma na China. Trata-se de um mecanismo legal que procura colocar em prática a legislação trabalhista. Se a nova linguagem política do autoritário governo chinês é a do fazhi (estado de direito), os trabalhadores se apropriam dessa linguagem para pleitear melhores condições.

É notório que a questão da corrupção entre empresários e autoridades locais é o fator que impede o acesso a melhores condições de trabalho na China. Mas o que é revelador é que há poucos indícios de ameaça ou questionamento da autoridade do governo central, repetindo um padrão histórico milenar da China, já apontado pelo trabalho de Elizabeth Perry: não se mexe nos de cima, só nos de baixo. A corrupção, portanto, não é vagamente dirigida ao PCC, mas a funcionários específicos que são denunciados. A base social desse precariado quer melhorar sua forma de vida, adentrar no mundo do consumo, que lhes é novo, e melhorar o sistema.

Sempre houve esse consenso na literatura acadêmica de que essa onda de insurgência não era antissistêmica, tampouco procurava desestabilizar o Partido Comunista, que incentiva uma economia de mercado no país. Hoje, os novos livros de Diana Fu e Teresa Wright já lançam algumas dúvidas sobre essa certeza. Além disso, no início de 2019, ameaça de paralisação dos taxistas, caminhoneiros e operários da construção civil gerou tensão no governo, causando maior repressão e detenção dos ativistas.

Como argumentei recentemente, a teoria política milenar chinesa nos diz que a autoridade central não é questionada desde que haja confiança nos rumos – e que não haja tirania. O presidente Xi Jinping avança no “sonho chinês”, mas a escalada autoritária de seu governo contra ativistas nos deixa muitas questões em aberto acerca da estabilidade da sua gestão.

A memória de 1989 está aí para lembrar de que nada é fixo e que tudo pode mudar a qualquer momento. Nós, brasileiros, aprendemos a duras penas que estabilidade é algo jamais garantido. A situação da China não deve ser encarada com romantismo. Não tratei aqui dos muitos problemas e contradições que existem na classe precarizada na China. Mas creio que o saldo é positivo. Em tempos de cruzada contra os direitos trabalhistas no Brasil, é a China que tem muito a nos ensinar sobre como protestar em tempos de autoritarismo.

*Correção, 30/4, 14h49: A primeira frase do texto indicava erroneamente que o Massacre da Paz Celestial ocorreu em 4 de maio de 1989. Foi em 4 de junho de 1989. A informação foi corrigida.

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