Maria da Luz teve sua primeira escova de dentes aos 15 anos. Antes disso, usava folhas para limpar os dentes, como era de praxe em Mulungu do Morro, interior da Bahia, onde nasceu. Aos 14, sentiu uma dor forte no dente da frente e seu avô a levou ao farmacêutico, ordenando que extraísse todos os dentes da frente de uma vez só — sem anestesia — para que não voltasse a incomodar. Aos 17 anos, depois de muito trabalhar na roça, ela conseguiu juntar dinheiro para comprar uma dentadura, com a qual nunca se adaptou.
Maria migrou para São Paulo com os três filhos, priorizando dar o melhor de saúde e educação para eles com as suadas economias do salário de auxiliar de serviços gerais. Ela nunca tirava foto. Dizia que era infeliz com sorriso e que seu sonho era fazer um tratamento dentário. Em 2015, conseguiu fazer implantes com a poupança de muitos anos. Hoje, não coloca mais a mão na boca para sorrir.
A história de Maria, contada a mim por sua filha Maya, é um pouco da história de dezenas de milhões de brasileiros que têm suas vidas atravessadas por dores de dente e falta de autoestima — quadro que só muda quando as famílias experimentam alguma mobilidade social.
Mas o desfecho positivo do caso de Maria, hoje com 47 anos, é incomum. Os problemas relacionados à saúde bucal tornam miserável o cotidiano de pessoas pobres. A dor física latejante e constante se soma à dor moral – o sentimento de vergonha, a humilhação e o trauma por não conseguir sorrir.
Apesar da onipresença desse sofrimento do cotidiano brasileiro, surpreende o quão invisível é o apartheid bucal que divide o país.
Este texto começou há dez anos, quando vi um estudante rico debochar de um porteiro que se queixava de dor de dente. “Que coisa mais jurássica! Isso ainda existe?”, ele disse. Naqueles dias, eu e a antropóloga Lucia Scalco começávamos nossa pesquisa etnográfica sobre consumo e política na periferia do Morro da Cruz, Porto Alegre. Recém havíamos conhecido Juremir, hoje com 52 anos, que não teve dinheiro para pagar um dentista, e a solução encontrada foi colocar álcool na boca para lidar com a dor até o nervo necrosar.
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, quatro a cada dez brasileiros perdem todos os dentes depois dos 60 anos. O país que tem mais dentistas no mundo é também o país dos banguelas. Na terra em que ricos pagam o preço de um apartamento para colocarem facetas reluzentes, milhões de pessoas ainda praticam métodos da Idade Média para lidar com a dor. Como afirmam os pesquisadores Thiago Moreira, Marilyn Nations e Maria do Socorro Alves, nesse mundo de abismos, a questão dentária é chave para compreender a desigualdade social e a pobreza no Brasil.
O país que tem mais dentistas no mundo é também o país dos banguelas.
A pobreza é constituída multidimensionalmente por meio de uma combinação de renda e acesso à educação e à saúde. A condição dental precária é exemplar da pobreza porque é resultado de uma falência de uma série de eixos, como a condição financeira, o local de residência e o acesso à informação e à odontologia.
Se a saúde bucal é um fato social por excelência, não é raro escutar profissionais da saúde culparem as vítimas por sua situação. Durante a apuração que fiz para a elaboração deste texto, ouvi coisas como “pobre é acomodado”, “eles têm valores errados, preferem pagar por um tênis a ir ao dentista”, “hoje em dia qualquer pessoa consegue escova de dente de graça em uma universidade”. Individualizar a responsabilidade é uma falácia conveniente.
É difícil pensar a longo prazo quem tem que viver com o imediatismo da sobrevivência. Muitos sujeitos quando conseguem dinheiro precisam comprar comida. Outras vezes, optam por se dar a um pequeno luxo.
Em nossa pesquisa, coletamos infindáveis casos de pessoas que disseram que, em meio a uma existência precária marcada pela dor e sofrimento, permitir-se um pequeno ato hedonista significava uma espécie de “último desejo”– um prazer que será lembrado na memória para sempre. Podia ser um estrogonofe com batata palha, um book fotográfico ou um tênis de marca. Curiosamente todos esses auto-presentinhos foram comprados por pessoas que, aos 40 anos, já não tinham mais nenhum dente na boca.
Muitas crianças crescem em ambientes onde é comum o compartilhamento de escova de dentes. “Meu sonho é ter uma só para mim e não ter que dividir com meus sete irmãos”, escreveu uma menina em uma cartinha ao Programa Papai Noel dos Correios.
Adolescentes pobres saem da infância acumulando histórias dramáticas, que os prejudicam na socialização. Wellington, oito anos, morador do Morro da Cruz, tinha oito cáries em dentes de leite. “Podre” foi como a a dentista definiu a boca do menino. Ele não comia e não tinha mais alegria de viver. Ainda que existam serviços baratos e até gratuitos oferecidos por universidades e ONGs, famílias como de Wellington não sabem sequer como encontrar esses serviços. Minha colega Lúcia fez a mediação e agora ele está recebendo tratamento.
William Estevesom, 34 anos, trabalha como técnico bucal do bairro mais pobre do município de Alvorada, um dos mais violentos e estigmatizados da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ele relata que, nas segundas-feiras de manhã, os pacientes chegam no posto para pegar ficha no SUS depois de um final de semana de tormenta em que já tentaram de tudo para passar a dor, como passar perfume e creolina nos dentes.
As técnicas para lidar com a dor que eu e Lúcia ouvimos nos últimos anos são muitas. Álcool, sal, cravo, pomada de procedência duvidosa e até “sangria”: furar o própria gengiva com uma faca para sangrar e deixar a infecção vazar. Também é comum que as pessoas extraiam seus próprios dentes, pois pensam que, em última instância, é isso que muitos postos de saúde irão fazer. Na comunidade de Dendê, em Fortaleza, os recursos são rezar pelo dente para Santa Apolônia, além de cachaça, óleo de coco e líquido de bateria para diminuir a dor. Muitas dessas técnicas trazem riscos graves à saúde. São fruto do desespero. Como disse Juremir: “não é dor, é uma tormenta, uma angústia”.
Com a ajuda pessoal de Lúcia, Juremir conseguiu colocar uma prótese nos dentes. Voltou a sorrir depois de muitos anos e não parava de postar fotos no Facebook. Mas após cinco anos, o dente que segurava a prótese infeccionou, sua cara inchou e ele recorreu a quase todos os caminhos acima.
Essas experiências vividas vão deixando marcas que deterioram a identidade do sujeito. O processo pode ser encarado como parte da vida: a “sofrência do pobre”. Para muitos, o sofrimento bucal atravessa a vida toda. É uma “sina, um karma de outra vida”, como disse uma interlocutora. Isso porque, mesmo depois de colocar prótese, a alegria pode durar pouco. Sem acompanhamento, muitos não se adaptam e voltam a ser desdentados. “Essa desgraça fica solta, caindo, me machuca gengiva. Só coloco para tirar selfie,” brincou Rosi, 56 anos, também do Morro da Cruz.
Ter os dentes da frente é um requisito estético exigido pela maioria dos empregadores.
Colocar a mão na boca para sorrir é uma cena cotidiana que revela a vergonha sentida por quem tem uma falha na dentição. Por outro lado, percebemos o orgulho que as pessoas têm de mostrar os dentes saudáveis que restam: “esse e esse são bons”.
O técnico do SUS William Estevesom também narrou que, há poucos dias, uma senhora chegou no posto implorando para colocar um dente na frente, alegando que precisava trabalhar já que o inverno estava chegando. Ter os dentes da frente é um requisito estético exigido pela maioria dos empregadores.
Uma amiga, quando soube que eu ia escrever esta coluna, pediu-me para contar a história de sua mãe. Rosana, uma psicóloga que teve uma trajetória de sucesso e ascensão social no norte do país, passou a vida se escondendo das filhas para escovar os dentes. Minha amiga só descobriu que a mãe usava prótese quando tinha 12 anos. Demorou muito tempo para que a mãe se sentisse à vontade para comprar Corega na frente dela. Quando ela faleceu, as filhas tiveram o cuidado de colocar a prótese para velar seu corpo: “ela não gostaria de ser vista de outra forma”.
As filhas de Rosana passaram a vida cuidando excessivamente dos dentes – algo que escutei de muitas pessoas cujas famílias ascendem socialmente. O trauma da dor e a vergonha social de não poder sorrir é uma ferida que deixa marcas familiares profundas. Portanto, o cuidado com a saúde bucal passa a ser uma questão de dignidade, uma herança que essas mães, como Maria e Rosana, deixam para seus filhos.
A estética e a saúde dos dentes dizem muito sobre mobilidade social. Uma das primeiras medidas que muitas pessoas tomam quando conseguem um emprego é colocar aparelho nos dentes. Quando eu a Lúcia pesquisávamos os jovens que davam “rolezinhos” nos shoppings, percebíamos que eles sonhavam em usar aparelho: era uma marca de distinção tal como um tênis da Nike. Eles nos contaram que aparelhos dentários falsos eram vendidos na comunidade para eles irem “bonitos ao baile funk”. Nunca encontramos esses tais aparelhos falsificados, mas a existência dessa história já diz muito sobre as aspirações e desejo de status social da juventude das periferias.
Apesar do cenário dramático, não são poucas as conquistas individuais e coletivas dos últimos anos. Houve uma significativa expansão das universidades do Brasil — que oferecem serviços a preço muito baixo à comunidade — e a proliferação de clínicas populares que foram impulsionadas pela inclusão financeira da Era Lula. A criação do Programa Brasil Sorridente, que chega a 90% dos municípios brasileiros, já atingiu 100 milhões de pessoas pelo atendimento básico do SUS. Há também, por todos os lados, profissionais que fazem trabalhos na ponta do sistema, superando a falta de recursos de norte a sul do país, em comunidades ribeirinhas ou em favelas.
Se as conquistas sociais aconteceram a duras penas, o cenário de cortes públicos do atual governo alerta para uma situação de calamidade. Quem começou a sorrir nos últimos anos pode voltar a se esconder.
Mastigar, gargalhar e ter uma vida sem dor são direitos humanos fundamentais. Sorrir é o gesto que expressa a felicidade. Por isso, a inclusão bucal, associada a um projeto de transformação social, deve ser uma pauta prioritária em qualquer projeto de reconstrução do campo progressista.
*Os nomes dos personagens deste texto foram omitidos para preservar sua identidade.
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