Conheci Houssam Nour em uma viagem de Uber. Logo que entrei no carro, identifiquei que ele era imigrante ao ler uma mensagem colada no painel do veículo pedindo ajuda para trazer os seus pais da Síria para o Brasil. O trajeto até o meu destino não era tão longo, mas foi suficiente para marcarmos uma entrevista. Eu queria entender como um sírio, formado em engenharia civil, havia se tornado um motorista no Mato Grosso do Sul.
De acordo com a ONU, 5,6 milhões de sírios estão refugiados. Houssam é um deles. O engenheiro vive no Brasil desde 2015 e batalha desde então para trazer o resto da família para cá, longe da guerra que já dura oito anos. Ele me contou sua caminhada.
Quando a guerra começou em 2011, eu queria sair da Síria, mas também queria muito o meu diploma. Eu comecei a faculdade em 2009, estudava em Damasco, capital do país. Cursei engenharia civil em meio aos muitos bombardeios. Ser engenheiro civil era o meu sonho. Batalhei muito por isso. Seguir em frente teve um custo alto: tinha dias que eu estava em sala de aula, em outros eu ajudava feridos e carregava corpos.
Teve uma vez que uma bomba caiu em um restaurante dentro da faculdade de arquitetura, morreram muitos colegas que estavam tomando café. Foi horrível, as pessoas sagravam, corriam, eu tentava ajudar. Às vezes, só depois que as coisas acalmavam, eu me dava conta que estava todo sujo de sangue. Apesar de tudo, eu era o 9º melhor aluno entre os 600 matriculados na Damascus University.
Apesar da guerra, consegui me formar em 2014. No mesmo ano, me casei e minha esposa engravidou. Ela se chama Dima Mely, se formou em arquitetura seis meses antes de mim. Fizemos algumas economias com a pretensão de partir para os Estados Unidos, Europa, Austrália, para qualquer país desenvolvido que nos desse condições de viver bem, mas todos eles fecharam as portas para nós. A gente tinha a possibilidade de pegar um barco como muitos refugiados ainda fazem e cruzar o mar a fim de chegar em algum país europeu, mas eu não queria isso. Era muito arriscado. E eu só conseguia pensar em uma prima de 37 anos e suas filhas de 8 e 10 anos que morreram em uma dessas travessias.
A notícia de que o Brasil estava recebendo bem refugiados sírios já havia se espalhado. Eu e minha família sempre gostamos do futebol brasileiro, mas não tínhamos ideia de como seria a vida por aqui. Resolvi tentar e deu certo. Desembarcamos em São Paulo, em maio de 2015, e ficamos lá cerca de cinco meses. Alugamos uma casa na Mooca. Achei que chegaria e encontraria emprego, mas não foi assim. O dinheiro que juntamos na Síria dando aulas particulares de inglês e matemática durou cerca de um semestre.
As coisas começaram a ficar difíceis e se complicaram ainda mais com o nascimento da Salma, minha filha. Foi quando um sírio que mora em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, chamou Dima e eu para cá. Ele conseguiu um lugar onde ficamos um ano sem precisar pagar aluguel. Nesse período, consegui um trabalho de auxiliar de engenharia, e o salário era dividido entre nós e nossos familiares na Síria. Fiquei neste trabalho por quase dois anos.
Um passo arriscado
Na ânsia de ajudar o restante da minha família a sair de lá tomei uma decisão arriscada: pedi para a empresa me demitir. Com o dinheiro da rescisão, achei que conseguiria abrir um restaurante e, com isso, conseguiria trazer meus pais e irmãos para o Brasil para trabalhar comigo. A guerra te obriga a ser radical, porque estar nela é sempre um risco de vida ou morte. Infelizmente, a ideia não deu certo. O valor da rescisão não era o suficiente e não consegui aprovação de crédito no banco. Além disso, eu também precisava de um fiador ou sócio, e as pessoas que conversei não se dispuseram a fazer o negócio comigo.
Eu tinha uma boa vida na Síria, cheia de sonhos. Hoje em dia só quero trazer minha família pra cá e ficar bem.
Atualmente, minha esposa ganha meio salário mínimo trabalhando 5h por dia em um escritório de arquitetura. Eu trabalho cerca de 14h por dia como motorista da Uber, com o carro que financei quando estava na empresa e que ainda estou pagando as parcelas. Dima está feliz no escritório, porque está tendo a possibilidade de aprender a usar ferramentas de trabalho que ela ainda não conhecia. Eu não vejo a hora de conseguir algo onde eu possa exercer minha profissão de verdade. Infelizmente, por hora, tanto eu quanto ela tivemos que abandonar esse sonho, por falta de recursos para validar nossos diplomas.
Eu tinha uma boa vida na Síria, cheia de sonhos. Hoje em dia, só quero trazer minha família pra cá e ficar bem. Nossa moeda está tão desvalorizada, e a crise é tamanha, que meu pai, que deveria ter uma boa aposentadoria, ganha o equivalente a R$ 300 por mês. Isso, hoje em dia, compra 4 a 5 quilos de carne nos mercados do país. Além disso, minha irmã e meu irmão tiveram que desistir da faculdade. Ela fazia farmácia, e ele estava decidindo entre odontologia ou medicina – lá os cursos são unificados, em determinado período os alunos escolhem o que querem fazer. Esse é o futuro deles, e a guerra está roubando isso.
Todos ignoram que, por causa das sanções impostas ao meu país, as pessoas estão morrendo de fome e frio.
A impotência é um sentimento que machuca. Queria poder fazer mais, mas o que posso fazer agora é dirigir. Levo muitas pessoas aos seus destinos. Pensei que elas poderiam me ajudar com a viagem da minha família. Escrevi em uma folha de caderno: “Com R$ 1 a mais você me ajuda a trazer meus pais da Síria”, e colei no painel do meu carro. Pode parecer loucura, mas a cada passageiro que ajuda, me aproximo do objetivo de viver bem com eles no Brasil. A ideia é trazer primeiro o meu pai. Para isso, preciso juntar cerca de R$ 6,5 mil. Combinamos de trabalhar juntos, eu e ele, para reunir todo mundo.
O lugar das minhas lembranças
Minha mãe sempre trabalhou em casa, e meu pai é professor de geografia aposentado. Ele sempre se esforçou para termos uma vida tranquila. No dia em que ele me ligou pra dizer que venderia a nossa casa para ter dinheiro para comprar comida, foi um golpe pra mim. Insisti para que ele não fizesse isso, mas fui incapaz de impedi-lo. As pessoas falam da guerra hoje em dia, os jornais noticiam, mas todos ignoram que, por causa das sanções impostas ao meu país, pessoas estão morrendo de fome e frio.
A guerra te obrigada a escolher entre o seu lar ou a comida de amanhã.
É difícil falar dessa casa. Eu cresci ali, me emociono só de lembrar. Era um lugar lindo, espaçoso. Meu pai trabalhou um ano em Dubai para poder comprá-la. A gente construiu cada detalhe dela. Tinha um jardim bonito, com cerejeiras, videiras, oliveiras, e tantas outras coisas que plantamos. Não era uma casa luxuosa, mas tínhamos tudo o que precisávamos. Toda casa árabe tem um lugar chamado Madafa, a nossa sala de estar. É ali que recebemos os visitantes. Era o lugar que eu mais gostava de ficar. A sala tinha cortinas verdes – escolhemos essa cor porque as janelas davam para o jardim. Era como um convite pra você ficar à vontade. Sempre dávamos um jeito de deixar aquele lugar cheio de gente. A felicidade era palpável.
Agora meus pais vivem de aluguel na casa de um tio, temporariamente. Ainda não tem uma data de saída definida, mas o lugar também será vendido. Afinal, meu tio também precisa buscar um meio de viver na loucura que está a Síria. É triste, porque os valores são sempre muito abaixo do que valem os imóveis. Mas a guerra te obrigada a escolher entre o seu lar ou a comida de amanhã. Nessas horas, por mais que ter uma casa seja um sonho realizado, você negocia.
Dima e eu amamos nosso país, quem dera pudéssemos voltar. Queria tanto que a Salma conhecesse o jardim que agora mora em minhas lembranças. Espero conseguir mostrar pra ela o valor de uma sala de estar cheia de amigos e familiares. Neste dia, quero que ela olhe para esse cômodo especial da casa e escolha entre o colo de seus pais, avós ou tios, enquanto mastiga alguma comida disponível na mesa.
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