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‘Eu sou cristã, mas minha filha precisa da maconha’: as mães que vivem sob efeito da guerra às drogas

Documentário conta a história de mulheres que dependem da cannabis para o tratamento de seus filhos – ou perderam eles para a violência causada pela repressão.

"Eu não falo 'canabidiol'. Eu falo 'a maconha' porque é a maconha."

O Intercept traz, com exclusividade, cenas do documentário ‘Estado de Proibição’, que será lançado nesta quarta-feira às 16h20.

Ao completar quatro anos, a filha de Rosineide da Silva foi diagnosticada com autismo. Sem saber nada sobre essa condição e sem ter com quem dividir os cuidados, a mãe largou o emprego de copeira no hospital em que trabalhava em Pernambuco para cuidar da filha. A menina passou a usar antipsicóticos e tranquilizantes o tempo todo. A criança, no entanto, não melhorou. Ela vivia agitada e agressiva – por causa disso, não comia – e tinha crises epilépticas com frequência.

Tudo mudou há três anos, quando Silva viu um anúncio de extrato de maconha em um grupo de mães de crianças especiais no WhatsApp. Sem pensar duas vezes, ela fechou negócio e passou a dar o remédio para filha mesmo sem prescrição médica. Os benefícios foram imediatos.

“Minha filha vivia dopada, se arrastando pelo chão, por conta dos remédios fortes que tomava. Cada médico falava uma coisa e receitava um remédio diferente. Foi tudo muito difícil para mim”, a mãe me disse. “Agora, ela não tem mais convulsões, ela come e dorme bem, aprendeu a ler e escrever, suspendeu o uso de todos aqueles outros remédios e tem qualidade de vida.”

Mas hoje, mesmo com o aval médico e os documentos necessários para a importação, a ex-copeira não consegue comprar o extrato por causa do preço – é caríssimo. Em um ato de desespero, Silva, que hoje recorre a um fabricante artesanal, já chegou a comprar maconha na boca de fumo para tentar produzir o óleo em casa. “Eu não recomendo a nenhuma mãe nas minhas condições a fazer o que eu fiz. Os ricos fumam nos seus apartamentos, nos seus carros e não são punidos. Mas o pobre e negro quando vai na boca, como eu fui, tem risco de morrer. A perseguição é com os pobres e periféricos.”

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A história de Silva é um dos casos contados no documentário “Estado de Proibição”, que estreia nesta quarta. Produzido pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas, rede de ONGs e pesquisadores que defendem a legalização das drogas, o documentário mostra de perto como é a vida de mães que precisam lidar, diariamente, com o modelo proibicionista do uso da maconha no Brasil. Não são apenas mães que precisam de maconha medicinal para seus filhos que são afetadas pela atual política de drogas – mas, também, mulheres que perderam seus filhos pela violência associada à proibição das drogas, inclusive policiais.

“A gente fez um documentário que fala dos efeitos da proibição para todos os lados”, me explicou Harumi Visconti, uma das idealizadoras do projeto. Para ela, as mães que militam pelo uso medicinal, que puxam a discussão, podem aproveitar para debater o uso recreativo e as consequências da guerra às drogas.

Nos últimos anos, o Brasil tem avançado no debate sobre o uso medicinal de maconha. Apesar de o tema ainda não ter sido regulamentado por uma lei, o judiciário tem se antecipado e garantido que famílias de pacientes, com diferentes diagnósticos, possam plantar maconha para garantir o tratamento. Há um caso, inclusive, de uma paciente com depressão que conseguiu autorização da justiça para usar o extrato da droga.

Na semana passada, a deputada conservadora Carla Zambelli, do PSL paulista, surpreendeu e anunciou que apresentará um projeto para a regulamentação do plantio para uso terapêutico, seguindo o modelo aplicado em Israel, onde o cultivo é feito por agricultores e laboratórios fabricam o medicamento. Em novembro do ano passado, a Comissão de Assuntos Sociais do Senado aprovou outro projeto de lei, que permite o plantio de maconha para uso pessoal terapêutico, desde que haja prescrição médica. O PL será avaliado pela Comissão de Cidadania e Justiça da Câmara.

‘Há coisas que a sociedade pode achar ruins, mas elas não são ilícitas, disse o ministro Barroso ao votar pela descriminalização.

No dia 5 de junho, é a vez do STF voltar a discutir o tema – desta vez, o uso recreativo da erva. Os ministros decidirão se o porte de drogas para uso pessoal é crime, discutindo a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Hoje, a lei define como crime “comprar, portar ou transportar drogas para consumo pessoal”. O julgamento começou em 2015, quando três dos 11 ministros votaram a favor da descriminalização, mas a discussão foi interrompida porque o então ministro Teori Zavascki, que morreu em 2017, pediu vista. Desta vez, o caso está com Alexandre de Moraes, aquele mesmo que foi fotografado, enquanto ministro, cortando pés de maconha com um facão no Paraguai.

Quando avaliou o tema, em 2015, o ministro Luís Carlos Barroso foi categórico em seu voto: “é preciso não confundir moral com o direito. Há coisas que a sociedade pode achar ruins, mas elas não são ilícitas”, disse. “Se o indivíduo na solidão de suas noites beber até cair desmaiado em sua cama, pode ser ruim, mas não é ilícito. (…) Pois digo eu: o mesmo deve valer se ele fumar um baseado entre o jantar e a hora de ir dormir. Não estou dizendo que é bom, mas apenas que o Estado não deve invadir essa esfera da vida dele para dizer se ele pode ou não.”

Por causa da filha, Rosineide da Silva concorda. Hoje ela se tornou uma ativista da maconha. “Vou à marcha. Eu sou cristã, mas minha filha precisa da maconha”, disse, deixando claro que também defende o uso recreativo. “Entendo que é só uma planta. Aguardo o dia em que vou poder plantar e produzir o extrato em casa.”

Correção: 29 de maio de 2019, 15h40

Ao contrário do que o texto afirmava, o autismo não é uma doença – mas, sim, uma condição neurológica. O texto foi corrigido.

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