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Dandara e Luisa Mahin são consideradas heroínas do Brasil – o problema é que elas nunca existiram

Inclusão das guerreiras negras no Panteão da Pátria pode aliviar a consciência racista, mas não muda a história. Em um país em que o presidente duvida da verdade, isso é perigoso.

Panteão da Pátria, em Brasília.

Este texto é uma resposta a Ale Santos. O escritor considera a inclusão das guerreiras no Panteão da Pátria uma reparação ao racismo na história que ignora a importância da tradição oral. O projeto, aprovado pelo Senado, ainda depende da apreciação do presidente. 

O BRASIL É O PAÍS com a mais longa história de escravização nas Américas, mas ainda hoje lida com dificuldade com esse passado trágico. Último país do continente americano a abolir a escravidão em 1888, o Brasil importou cerca de 5 milhões de africanos escravizados. Ainda nos anos 1850, navios escravistas continuaram a desembarcar cativos trazidos da África ilegalmente em praias brasileiras. Ainda assim, desde a abolição da escravidão, um grande número de brasileiros recusa reconhecer que os africanos trazidos acorrentados nos porões de navios e seus descendentes foram aqueles que construíram o país.

Uma das ilustrações mais claras e estapafúrdias dessa negação do passado luso-brasileiro foi quando durante sua campanha eleitoral em 2018, o atual presidente da república Jair Bolsonaro declarou que os portugueses nem pisaram na África. Felizmente essa narrativa rocambolesca não resiste aos fatos.

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Com o final da ditadura militar em 1985 e as atividades que comemoraram o centenário da abolição da escravidão no Brasil em 1988, esse cenário que negava o passado escravista lentamente começou a mudar. Em 1995, ano do tricentenário do assassinato de Zumbi, líder do quilombo dos Palmares destruído pelos portugueses em 1695, organizações negras brasileiras conseguiram consolidar em cidades de todo o país a comemoração do 20 de novembro como dia da consciência negra. No dia 21 de março de 1997, o nome de Zumbi foi incorporado ao Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves.

Dandara e Luisa Mahin são consideradas heroínas do Brasil – o problema é que elas nunca existiram

Zumbi e Dandara dos Palmares.

Ilustração: Agência Tribuna União.

O Panteão é um memorial de autoria de Oscar Niemeyer, inaugurado na Praça dos Três Poderes em Brasília em 1986. O objetivo da iniciativa, que de várias maneiras se inspira de memoriais similares como o Panthéon francês em Paris, é comemorar a democracia homenageando o então recém-falecido presidente Tancredo Neves e outros indivíduos designados pelos poderes oficiais como sendo heróis brasileiros.

Lembrando a forma de uma pomba e evocando a ideia de liberdade, o memorial de três andares abriga uma exposição permanente sobre Tancredo Neves. No terceiro andar, em uma sala escurecida, fica exposto o livro de aço onde os nomes dos heróis e heroínas do Brasil são inscritos. Zumbi dos Palmares foi o segundo nome incorporado ao Panteão, seguindo o do líder da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes, inscrito no livro em 1992.

Outros nomes masculinos, acrescentados ao livro de aço do Panteão da Pátria ao longo dos anos, incluem o seringueiro e ativista político Chico Mendes, assassinado em 1988 no Acre, o líder guarani missioneiro Sepé Tiaraju, o ex-presidente da República Getúlio Vargas, os maestros Heitor Villa-Lobos e Carlos Gomes, o escritor Machado de Assis e o advogado, intelectual e abolicionista negro Luís Gama. Apenas em 2009, o panteão recebeu sua primeira figura feminina, Ana Néri, enfermeira e heroína da guerra do Paraguai.

Dandara e Luísa: duas figuras legendárias

Até o ano de 2018, nenhuma mulher negra havia sido inscrita no livro de aço do Panteão da Pátria. Mas no dia 27 de março de 2019, o Senado Federal aprovou o projeto de lei 55/2017 inscrevendo no livro de aço dos heróis da pátria os nomes de Dandara dos Palmares e Luísa Mahin. Dandara dos Palmares é descrita como sendo “noiva” de Zumbi dos Palmares. Em matéria recente, referem-se a ela como tendo lutado “junto do esposo, Zumbi, no Quilombo dos Palmares.” Luísa Mahin, descrita como sendo a mãe de Luis Gama, “liderou os escravos malês na Bahia, tendo participação decisiva na Sabinada.”

Pelo que se tem notícia, o projeto de autoria da atual secretária de políticas para as mulheres Tia Eron foi elaborado sem consultar nenhum historiador da escravidão. Ainda assim, a inclusão das duas figuras legendárias no Panteão da Pátria foi aplaudida por políticos de todos os espectros políticos, inclusive pelos senadores petistas Paulo Paim e Jacques Wagner.

Ao contrário de todas as figuras inscritas no livro até aqui, nenhum historiador corrobora a existência de Dandara dos Palmares e Luísa Mahin. Como bem coloca Nei Lopes, o grande escritor, compositor e estudioso das culturas africanas e afro-brasileiras, Dandara emergiu como um personagem literário no romance Ganga-Zumba de João Felício dos Santos, publicado pela editora Civilização Brasileira em 1962, dois anos antes do início da ditadura militar no Brasil. Em sua preciosa “Enciclopédia brasileira da diáspora africana“, Lopes é claro quando afirma que Dandara é uma “personagem lendária da história de Palmares. Celebrada como a grande liderança feminina da epopeia quilombola, teria morrido quando da destruição da cidadela de Macaco. Contudo sua real existência está ainda envolta em uma aura de lenda.”

Luísa Mahin também é um personagem fictício. Sua aparição em registros escritos data do final do século 19 quando o abolicionista Luís Gama escreveu uma carta a seu amigo Lúcio Mendonça onde descreve sua mãe como sendo uma africana escravizada nascida no Golfo do Benim, que teria participado da Revolta dos Malês de 1835 e na Sabinada (1837-1838). Luísa Mahin também foi recentemente imortalizada como personagem principal do romance épico “Um Defeito de Cor” da escritora Ana Maria Gonçalves. Mesmo assim, Luísa Mahin não aparece na documentação conhecida sobre a Revolta dos Malês. O historiador João José Reis, até hoje a maior estudioso dessa rebelião, afirma categoricamente na edição revisada e ampliada de seu livro “Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835“, que “O personagem Luísa Mahin, então, resulta de um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito libertário.”

Apesar de serem há muito reconhecidas como personagens legendárias e não como figuras históricas, a chegada da internet tornou Dandara e Luísa Mahin ainda mais populares no imaginário brasileiro. Pesquisas mostram como artigos na internet fornecem detalhes sobre seus papéis na resistência escrava seja no Quilombo dos Palmares, na Revolta dos Malês ou na Sabinada. Seus nomes também se destacaram no desfile da Mangueira, campeã do carnaval de 2019. Depois de anos circulando na memória popular, os nomes de Dandara e Luísa Mahin continuam fazendo parte do reino da ficção. Mas mesmo assim foram se juntar a nomes de personagens de carne e osso (embora a atuação heroica de vários deles seja bastante duvidosa) no livro de aço do Panteão da Pátria em Brasília.

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O Panteão é um memorial de autoria de Oscar Niemeyer, inaugurado na Praça dos Três Poderes em Brasília em 1986. O seu objetivo é comemorar a democracia homenageando o então recém-falecido presidente Tancredo Neves e outros indivíduos designados pelos poderes oficiais como sendo heróis brasileiros.

Foto: Rubens Chaves/Folhapress

Esquecimento deliberado

Mas por que conferir a figuras legendárias o estatuto de personagens históricos em um país onde existiram milhões de escravizados e onde ainda hoje homens e mulheres negras constituem a maior parte da população? Na verdade, o Brasil não é o primeiro país das Américas a colocar uma figura legendária em um panteão de heróis nacionais. Em 1975, a Jamaica, antiga colônia britânica no Caribe, colocou a Nanny of the Maroons (em tradução literal “babá dos quilombolas”) na lista dos heróis nacionais do país. Em 1994, uma imagem representando o rosto da Nanny of the Maroons passou a ilustrar uma nota de 500 dólares. Em 2018, seu busto foi inaugurado no Parque da Emancipação, em Kingston.

Descrita como líder dos quilombolas Windward e como sendo uma sacerdotisa do Obeah (religião de matriz africana praticada na Jamaica), pouco se sabe sobre sua existência. Mas apesar da documentação escassa, ao contrário dos casos de Dandara e Luísa Mahin, acadêmicos reconhecem claramente a existência da Nanny of the Maroons, referida em fontes escritas e orais como uma poderosa liderança feminina. Além disso, do século 18, uma das aldeias ocupada pelos quilombolas de Windward leva o nome de aldeia Nanny.

Os arquivos da escravidão foram construídos e estruturados para apagar a existência de atores negros.

É claro que os arquivos da escravidão foram construídos e estruturados para deliberadamente apagar a existência de atores negros, tornando praticamente invisíveis as atividades de mulheres negras que lutaram contra a escravidão. As figuras de Dandara dos Palmares e de Luísa Mahin não derivam de um discurso histórico baseado em fatos e provas. São fruto de um trabalho de memória construído no tempo presente para satisfazer a necessidade de grupos e atores sociais que tem sede de ver no espaço público figuras de mulheres negras e lutadoras.

Nesse sentido, as duas personagens são uma amálgama de vários elementos. Em primeiro lugar, foram mulheres escravizadas. Segundo, lutaram e lideraram movimentos que abalaram a sociedade escravista brasileira. Apesar de não terem existência comprovada, cidadãos comuns, ativistas e políticos acreditam piamente na existência real dessas duas mulheres. E aí que mora o perigo.

Heroínas negras são o que não falta

Apesar dessa necessidade de memória, abandonar o discurso histórico em prol de um discurso que mistura realidade e ficção para satisfazer as necessidades do tempo presente é uma empreitada muito arriscada. Tal procedimento é ainda mais perigoso em tempos em que o próprio presidente da República se torna o porta-voz dessa visão revisionista da história, qualificando o golpe militar de 1964 como uma revolução que tinha como objetivo impedir o Brasil de ser tornar um país comunista, ou quando o ministro das Relações Exteriores declara que o nazismo foi um movimento de esquerda.

Nas últimas duas décadas, o trabalho de historiadores tem resgatado um grande número de atores negros que lutaram contra a escravidão. Lisa Earl Castillo, já nos mostrou que Iyá Nassô, uma das fundadoras do terreiro de Candomblé Casa Branca em Salvador, deixou o Brasil para escapar a perseguição contra os africanos depois da Revolta dos Malês. O papel de Maria Firmina dos Reis, mulher negra e livre que publicou o romance Úrsula (1859), considerado como o primeiro romance abolicionista brasileiro, também tem sido resgatado. Onde está o monumento homenageando a jornalista e professora Antonieta de Barros, a primeira mulher parlamentar brasileira eleita? Por que não homenageamos heróis de carne e osso, como Carolina de Jesus, Clementina de Jesus, Mãe Menininha do Gantois, Lélia Gonzalez, Mãe Stella e Luiza Bairros?

Homenagear oficialmente personagens de ficção, mesmo sendo elas negras e mulheres, é um sintoma explícito do quanto a sociedade brasileira continua a negar o passado escravista e a se recusar a enfrentar o racismo e a supremacia branca envoltos em suas entranhas.

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