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Com tiroteios até dentro do presídio, Pernambuco apela para apagão e censura para disfarçar insegurança

Detentos estão se matando com armas de fogo – e o governo de Pernambuco não sabe como elas foram parar nos presídios

Com tiroteios até dentro do presídio, Pernambuco apela para apagão e censura para disfarçar insegurança

Foi “um conflito individual, mas preocupante”. Assim o secretário de Justiça de Pernambuco, Pedro Eurico, justificou o fato de um detento do Complexo do Curado, na região metropolitana de Recife, ter matado a tiros uma pessoa e ferido outras dez na semana passada. A arma usada foi uma pistola .40, modelo que até dias atrás – antes do decreto de flexibilização do posse e porte de armas ser aprovado – era de uso restrito das forças de segurança.

Só neste ano, outros “incidentes individuais” já deixaram quatro mortos e 12 feridos por arma de fogo dentro de presídios da região. E esse fenômeno não começou agora. Dos 15 assassinatos registrados dentro de unidades prisionais do estado em 2018, quatro foram por arma de fogo. Dos 17 mortos em 2017, quatro foram a tiros. E 2016 foi ainda mais crítico: dos 43 mortos sob responsabilidade do estado de Pernambuco, 15 foram por armas de fogo.

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Mas, questionado sobre como essas armas foram parar nas mãos dos detentos, quais os modelos utilizados nos crimes e se houve investigação – exatamente para saber como foram parar ali – o governo me ignorou. Nem a Secretaria Executiva de Ressocialização, a Seres, e nem a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, a SJDH, se deram ao trabalho de responder às minhas perguntas.

Logo após o “incidente isolado” de quinta feira, uma operação na unidade do Complexo Penitenciário do Curado apreendeu quatro armas – dois revólveres e duas pistolas – e quase 92 munições. Só neste ano, foram apreendidas 24 armas no Curado. No ano passado, foram 55.

Em nota, a SJDH disse que “o Governo de Pernambuco também vem reforçando a segurança das unidades prisionais do Estado com a aquisição de sistemas de inspeção de bagagens por raio x, portais detectores de metal, banquetas de inspeção, detectores de metal manual, scanners corporais e coletes balísticos”. Questionados se há algum destes equipamentos que pudesse impedir a entrada de armas no Complexo do Curado, a secretaria – mais uma vez – ignorou a pergunta.

Sem inspeção e sem transparência

O Complexo do Curado tem um problema crônico de superlotação e insegurança. Cerca de 5.500 detentos dividem, atualmente, um espaço construído para 1.819 pessoas, de acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo G1. No fim de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos pediu que fosse proibida a entrada de de novos detentos na prisão – entre os problemas apontados, além do grande número de presos, estava a entrada de armas no presídio. Três anos antes a Organização dos Estados Americanos, a OEA, já havia pedido que o Brasil investigasse, entre outros pontos, a entrada de armas nos presídios do estado e as denúncias de corrupção envolvendo agentes penitenciários. Perguntamos ao governo estadual sobre as ações tomadas, desde então, para solucionar o problema. Silêncio.

Em Pernambuco, a lei prevê que membros do Conselho Estadual de Direitos Humanos podem acompanhar vistorias, inspeções e exames em todos os presídios do estado. Mas, no Curado, eles foram impedidos de entrar na semana passada por “questões de segurança”. “É muito facilitada a entrada de armas de fogo e é muito dificultada a entrada de órgãos de controle externo e direitos humanos para fazer as inspeções”, diz Edna Jatobá, conselheira estadual de direitos humanos e parceira local da plataforma Fogo Cruzado, que mapeia violência armada no Grande Recife. Representantes da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e Defensoria Pública também foram barrados.

Segundo o Monitor da Violência, Pernambuco tem maior superlotação carcerária do Brasil, com quase três presos para cada vaga. E lá no Curado, quem manda são os presos, que comercializam de espaços para visitas íntimas a celas particulares, uma espécie de condomínio privado – sob os olhos do estado.

Esse tipo de descontrole, decorrente da superlotação, é uma das possíveis causas do alto número de armas de fogo nas mãos dos detentos, avalia Bruno Langeani, gerente de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz. “Em presídios superlotados é comum que os agentes deixem a gestão interna das chaves a cargo dos próprios presos, impedindo uma disciplina e revistas surpresa que auxiliam na apreensão de armas”, diz, como é o caso do Curado.

Pernambuco às cegas

O que o estado escolhe não ver, ele (finge que) não sente. Pernambuco não apenas não sabe como as armas foram parar dentro da cadeia – mas, também, não tem ideia de quantas foram apreendidas pelas forças de segurança estaduais.

A pesquisa De onde vem as armas apreendidas no nordeste, de 2018, do Instituto Sou da Paz, mostrou que Pernambuco tem um problema crônico para contabilizar a apreensão de armamentos. Não há o perfil das armas apreendidas em 2015 e nem os números de 2016. Em abril do ano passado, o estado divulgou a quantidade de armas apreendidas no trimestre anterior – mas não há série histórica.

Em 2012, lembra Langeani, o estado tinha, por exemplo, um controle restrito das armas apreendidas, classificadas por tipo e calibre. Hoje esse controle não existe. “A falta de planejamento e gestão sobre indicadores estratégicos [como os indicadores relacionados à segurança] é tanto sintoma quanto contribuição para alimentar a gravidade da segurança pública”, diz Langeani.

Em 2017, a divulgação diária dos números de homicídios, informações como os nomes, idades e cor da pele das vítimas no estado, saiu do ar. Desde então é divulgado apenas um boletim mensal com o número de mortes por cidade. O Ministério Público está investigando a falta de transparência.

Na mesma época, o estado passou a restringir o trabalho da imprensa. Funcionários são orientados a repassar apenas “informações positivas”, segundo o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Pernambuco.

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Trecho do relatório “De Onde Vêm as Armas do Crime Apreendidas no Nordeste” feito pelo Instituto Sou da Paz.

A falta de informação parece ser uma estratégia política. Desde março de 2018, funcionários do Instituto de Medicina Legal, peritos e até delegados receberam avisos de que não podem dar entrevistas em locais de crimes, nem repassar informações à imprensa sobre homicídios em tempo real.

Raphael Guerra, jornalista que cobre segurança em um dos maiores jornais de Pernambuco, destacou em seu blog no ano passado que “assessores não confirmam informações, não respondem demandas e, quando fazem, é com bastante atraso – numa clara tentativa de dificultar o trabalho da imprensa”. Na época, policiais ouvidos pelo jornalista admitiram que se tratava de censura, em uma tentativa de diminuir a sensação de insegurança durante o período eleitoral.

Em fevereiro deste ano, veio outra denúncia: jornalistas que publicam reportagens com críticas à atual gestão “estão sendo proibidos pela assessoria de imprensa da Polícia Civil de participarem do grupo de WhatsApp onde são divulgadas informações e fotos oficiais de prisões efetuadas pelo órgão”.

O cumprimento de uma profecia

Há pouco mais de dois anos, membros do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e Cidadania encaminharam um pedido de renúncia coletiva ao então ministro da Justiça Alexandre de Moraes. Era a primeira vez que algo desta magnitude acontecia na história no Conselho, criado em 1980.

Na carta, “de caráter definitivo e irretratável”, os sete membros que compunham o conselho apontaram 13 razões para renunciarem – todas relativas à crise no sistema penitenciário.

“A atual política criminal capitaneada pelo Ministério da Justiça, a seguir como está, sem diálogo e pautada na força pública, tenderá, ainda mais, a produzir tensões no âmago de nosso sistema prisional, com o risco da radicalização dos últimos acontecimentos trágicos a que assistiu, estarrecida, a sociedade brasileira”. Como uma profecia, o que era temido se cumpriu.

O ano de 2017 havia começado com uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas. Em 17 horas, 56 presos foram mortos e mais de uma centena fugiu. Dias depois, uma rebelião que durou 14 horas deixou 26 mortos na penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte.

De lá pra cá, outras rebeliões – de maior ou menor porte – vêm acontecendo país afora. Este ano houve outros 57 mortos em Manaus, motim no Espírito Santo e a Força Nacional foi enviada para o Rio Grande do Norte para evitar rebelião do PCC.

O grande projeto de segurança pública apresentado pelo atual governo é o pacote “anti crime” de Moro. No capítulo 17, chamado “Medidas para alterar o regime jurídico dos presídios federais”, há humildes cinco artigos. A maior parte trata de comunicação dos presos, seu acesso e contato com o mundo externo. Muito pouco para um país que chegou a 700 mil presos, a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA e da China. A única menção a presos provisórios – que são quase 40% dos detentos hoje – é uma previsão de que eles, mesmo sem condenação, sejam incluídos em um banco de DNA. O que se tem de fato previsto para o campo até agora é o de sempre: mais vagas.

Correção: 17 de junho de 2019, 17h25
O texto informava que as armas .40 eram de uso exclusivo das forças armadas. Na verdade, elas são de uso exclusivo das forças de segurança. O texto foi corrigido.

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