Apesar de frequentemente ser apresentado como “comunista”, Flavio Dino, governador do Maranhão, está em uma batalha na direção oposta ao radicalismo. Ele quer o centro. Único governador eleito do PC do B e visto como uma das lideranças mais promissoras da esquerda, Dino defende uma “união ampla” com o centro democrático como única maneira de enfrentar o autoritarismo de Jair Bolsonaro.
Foi uma ampla coalizão – que juntou, no total, 16 partidos – que possibilitou que o ex-juiz federal se tornasse governador do Maranhão. A vitória de Flávio Dino nas eleições de 2014 colocou fim aos 56 anos da dinastia dos Sarney no Maranhão – e foi uma das poucas conquistas eleitorais da esquerda, que tem amargado sucessivas derrotas.
Mas Dino não rompeu com os oponentes. Pelo contrário: os tem chamado para conversar. Na final de junho, ele se reuniu com o ex-opositor José Sarney para discutir os rumos da democracia brasileira – encontro que também já fez com os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula, que visitou na prisão.
No comando do estado com o segundo pior IDH do Brasil, Flávio Dino aumentou o investimento estatal em segurança e educação e aumentou o piso salarial dos professores para R$ 5.750 – é mais do que o dobro do valor pago em São Paulo, estado mais rico do Brasil. Na contramão da crise econômica, o Maranhão também teve um crescimento do PIB de 9,7% em 2017 e, no ano passado, de 2,8% – acima da média nacional. Em 2018, Dino foi reeleito no primeiro turno com 59% dos votos válidos – mais ou menos o mesmo índice de aprovação de seu governo naquele ano.
Por causa da rápida ascensão e a capacidade de articular apoio – em 2018 sua coalizão juntou nada menos do que PCdoB, PDT, PRB, PPS, PTB, DEM, PP, PR, PTC, PPL, PROS, AVANTE, PEN, PT, PSB e Solidariedade – há quem especule que Dino estaria de olho na disputa presidencial de 2022. O próprio Lula o aponta como liderança importante na esquerda. Mas ele desconversa: “Estamos muito longe deste momento”, me disse.
Os autodenominados “agentes da lei” dizem que seus críticos são defensores da corrupção. Isso é o auge da prepotência e do autoritarismo. Além de, aí sim, ser ridículo. Minha solidariedade aos jornalistas, de vários veículos de comunicação, injustamente agredidos em sua honra.
— Flávio Dino 🇧🇷 (@FlavioDino) July 16, 2019
Conversei com Flávio Dino no final de maio. Alto, corpulento e de voz forte, o governador me recebeu na sala de reuniões do Palácio dos Leões, no centro histórico de São Luís, sede do governo estadual. Em 1h10 de conversa, só tomou água e recusou o café. Embora a conversa tenha ocorrido dias antes das primeiras reportagens da série Vaza Jato, o governador e ex-juiz federal criticou duramente a atuação de Sergio Moro que, assim como ele, trocou a magistratura pela política. Dino foi juiz federal no Maranhão por 12 anos e chegou a presidir a Associação dos Juízes Federais do Brasil, a Ajufe, entre 2000 e 2002. Abriu mão da toga para se filiar ao PC do B em 2006, mesmo ano em que se elegeu deputado federal.
Para o governador e ex-juiz, a operação Lava Jato se transformou em instrumento de luta política, responsável por danos econômicos – no caso da Petrobras – e prisões injustas, como a de Lula. Ele crê que a legitimidade da atuação de Moro, que já era frágil, foi jogada por terra no momento em que ele aceitou ser ministro de Bolsonaro. “Tão absurdo que jamais esperava que isso fosse acontecer”, ele me disse. Mas Dino não considera a operação “totalmente errada. “Acho até que a maioria das sentenças da Lava Jato eu assinaria.”
Leia, a seguir, a entrevista com o governador – editada para melhor compreensão.
Intercept – O senhor tem dito que a esquerda perdeu a batalha política da classe média, que por sua vez aceitou a pauta da corrupção como a fonte de todas as tragédias sociais e políticas brasileiras. Qual a saída para isso?
Flavio Dino – A corrupção de fato é um tema essencial, não há dúvida, portanto superá-la é importante para o Brasil. Porém, temos que fazer isso com autenticidade, com seriedade. Por isso mesmo, a corrupção não pode ser utilizada como arma de luta política e nem pode ser reduzida a determinados aspectos da vida brasileira, uma vez que as corrupções são variadas e a principal delas acabou sendo ocultada nos últimos anos, que é a corrupção da desigualdade social.
Nada corrompe mais o Brasil do que a desigualdade, a concentração de renda, poder e conhecimento nas mãos de poucas pessoas. Então, a esquerda não deve fugir do tema da corrupção. Esse tema é nosso, na verdade. Nós não podemos permitir que esse tema seja apropriado e ao mesmo tempo manipulado para ocultar outros problemas da sociedade brasileira. A principal saída é nós retomarmos essa bandeira, que nos pertence, na medida em que somos nós que defendemos a justiça social, que os recursos públicos sejam aplicados em favor da maioria do povo.
Em 2018, assistimos ao ex-presidente Lula tentando sustentar uma candidatura que todo o mundo político sabia ser inviável por causa da Lei da Ficha Limpa. Enquanto isso, o PT tratou de ceifar apoios do outro candidato de esquerda, Ciro Gomes – em Pernambuco, ao custo da candidatura de Marília Arraes em troca da adesão do PSB. Lula errou na estratégia?
Acho que ele fez a estratégia adequada num momento de grande ofensiva sobre ele. Acho que é inexigível e chega a ser, eu diria, quase que desumano imaginar que uma pessoa sob o cerco que ele sofreu pudesse ter adotado outras atitudes que não a defesa da idoneidade e da seriedade, denunciando as perseguições que sofreu. Considero que [Lula] sustentou a candidatura até o limite, até o mês de setembro, com a visão de que se mantendo no jogo político ele manteria a voz e a tribuna para se defender. Portanto, eu diria que foi o exercício de um direito, que tinha que ser respeitado.
‘A esquerda não deve fugir do tema da corrupção. Esse tema é nosso, na verdade.’
Eu próprio, no primeiro semestre de 2018, cheguei a dar uma entrevista defendendo a união ampla de todos em torno do Ciro Gomes. Mas, quando logo em seguida o ex-presidente Lula declarou que manteria sua candidatura, naquelas condições a meu ver para conseguir defender sua história e sua biografia, eu respeitei, tanto que o nosso partido manteve desde então um alinhamento à perspectiva de nos coligamos à chapa de Lula presidente e Haddad vice. [Com] O ex-presidente Lula cercado, atacado, perseguido e vilipendiado, [eu] considerava que essa é uma estratégia de defesa justa. Nós somos solidários e, portanto, hoje não faço nenhuma crítica a essa atitude, acho que ela é compreensível e que atacar o presidente Lula hoje atrapalha o caminho da esquerda. É claro que ele, como qualquer ator político, qualquer ser humano, cometeu, comete e cometerá erros, mas não ao ponto de colocá-lo como culpado do resultado eleitoral. Isso realmente é uma imensa injustiça, e algo que dificulta a unidade futura.
Acredita que Lula teria sido eleito?
Eu tenho certeza de que seria. Isso torna ainda mais repugnante o fato de ele ter sofrido uma condenação política, apartada de qualquer técnica jurídica, exatamente com o objetivo de torná-lo inelegível. É um dano irreparável o que foi imposto a ele. E, na minha visão, claro, à sociedade brasileira.
É consenso entre analistas que Lula é muito maior que o PT, por sua vez o maior partido de esquerda do Brasil. A esquerda brasileira é refém dele? Lula se tornou algo como Vargas, como Perón?
Ao longo da história, as grandes transformações foram conduzidas por sujeitos coletivos mais representados por líderes. Um autor marxista russo chamado Plekhanov que tem um livro, do qual gosto muito, chamado “O papel do indivíduo na História“. Ele ressalta exatamente isso. Olha, os marxistas olham [para] muitos processos objetivos, mas a gente não pode esquecer que quem materializa, corporifica os processos objetivos são pessoas. Nesse caso, pessoas que têm determinados atributos que o Lula tem, que o Getúlio tinha, que outros têm. Então, o fato de existirem grandes líderes de massas não é algo ruim, datado ou tampouco brasileiro. É normal e é bom que exista um líder com a extensão, a densidade, a profundidade do presidente Lula. Eu acho que, se nós olharmos no longo arco da história, daqui a 30, 40, 50 anos, vai ser reconhecido ainda mais que esse grande líder histórico do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, tem muito mais virtudes que defeitos e muito mais ajudou o Brasil do que eventualmente tenha cometido equívocos. Você mencionou o Getúlio Vargas, ele cometeu gravíssimos erros. Mas, se você faz um julgamento histórico, no período em que ele exerceu uma liderança o Brasil avançou em conquistas econômicas e sociais. Então, não acho negativo que haja essa força da liderança do presidente Lula, que vai continuar a existir nos próximos anos. Ele vai continuar a ser o principal líder político do Brasil nos próximos anos.
Em entrevista recente ao Intercept, Lula atribuiu a ascensão mundial da direita ao “fracasso do neoliberalismo”. É tão simples assim?
O capitalismo vive de fato uma crise, desde a crise mundial de 2008, e por isso certos parâmetros institucionais que dirigiram o mundo no pós-guerra, sobretudo os do chamado welfare state, que já haviam sido parcialmente atingidos nos anos 1980 e 1990 com a hegemonia do pensamento neoliberal, foram mais agudamente atingidos, com algumas marcas novas, sobretudo um desemprego aparentemente estrutural e infelizmente muito duradouro. Ou seja, tivemos a agudização da crise social nos países capitalistas, de modo geral. Nós aprendemos com a história que numa época de medos e de ódios o pensamento político da direita encontra terreno fértil para crescer. Não é à toa que nós tenhamos visto a ascensão do nazi-fascismo exatamente nos anos 1920 e 1930, cujo marco simbólico é a crise de 1929. Mas, se você olhar, a primeira guerra imperialista, a Primeira Guerra Mundial, já era sinal de crise de um modelo do colonialismo do século 19. O trânsito da humanidade da Primeira à Segunda Guerra, com crise econômica profunda, desemprego, hiperinflação e desilusão nas instituições democráticas acabou conduzindo a caminhos autoritários, sobretudo a ascensão de Mussolini na Itália e de Hitler na Alemanha. Então, é uma conjuntura bastante parecida nesse sentido, uma grande crise econômica cujo marco é 2008, uma crise social muito profunda, e isso abre espaço para que haja uma desinstitucionalização da política derivada de medo, de ódios, em que se busca uma saída aparentemente mais eficaz. Infelizmente, são momentos como nesse aqui que perspectivas autoritárias encontram um terreno fértil para se consolidar, como vimos inclusive no caso brasileiro.
Voltaremos a falar sobre a ascensão da direita, mas ainda sobre economia: está correto dizer que a política econômica de Lula, ao menos até 2008, seguiu a mesma cartilha da de Fernando Henrique Cardoso?
Estamos falando de uma grande economia capitalista do mundo, que tem constituição e leis que têm que ser cumpridas. Então, é óbvio que havia muita continuidade, dado esse marco institucional que tem que ser respeitado. Mas havia uma diferença de ênfase principal, que era o papel do mercado interno. Havia uma preocupação especial, que não havia nos anos Fernando Henrique, com o mercado interno de massas, um mercado que sustentasse o dinamismo econômico. Isso desde 2003, quando você lembra, por exemplo, da extensão das políticas de microcrédito, e mesmo políticas sociais compensatórias, como o Bolsa Família, a política de crescimento do valor real do salário-mínimo. Todas tinham essa amarração estratégica de crescimento do mercado interno. Isso era substancialmente diferente do que se tinha antes e também do que se tem hoje. Então, realmente não concordo com essa crítica de que era mais do mesmo.
No Sul e no Sudeste, é comum ouvir que o eleitor nordestino vota no PT “porque foi comprado pelo Bolsa Família”. O que o senhor, que governa um dos estados mais pobres e socialmente problemáticos do país, responderia a quem diz isso?
Primeiro, que obviamente isso é um preconceito condenável. E, se você reconhece que o eleitorado do Nordeste vota no PT ou na esquerda em reconhecimento a políticas sociais, a conquistas como o Bolsa Família, isso longe de ser errado é profundamente certo. Significa, portanto, não uma prova de ignorância, e, sim, uma prova de inteligência. Não uma prova de que não sabe votar, mas de que sabe, porque sabe distinguir onde está seu interesse, sua perspectiva e seu projeto. Graças a Deus, isso se materializou em mais uma eleição. Se pega as mil cidades mais pobres do Brasil, praticamente cem por cento deram a vitória [em 2018] para o Haddad. Então, é um prova de sabedoria.
Acha que foram as políticas sociais que fizeram com que o Nordeste e as cidades mais pobres majoritariamente seguissem fiéis ao PT em 2018?
Políticas que beneficiavam o Nordeste, de um modo geral, beneficiavam os mais pobres do Brasil. Quando se fala de política social, se pensa muito nas políticas compensatórias. Eu falaria em visão social. Porque houve também conquistas econômicas e de investimentos públicos e privados em infraestrutura, a transposição do São Francisco, por exemplo, obras do PAC. É um conjunto de coisas. Então, a visão social, de combate às desigualdades regionais e sociais é que determinou esse resultado.
Voltando para a política: o ex-presidente Lula colocou o senhor como uma das novas lideranças da esquerda brasileira. Pretende ser candidato a presidente em 2022?
Na verdade, em primeiro lugar, estamos muito longe deste momento. Em segundo lugar, [a candidatura presidencial] não é algo que possa ser construído individualmente, pelo contrário. Em terceiro lugar, acho que nós temos que buscar a união, a unidade. Esse é o critério de ação, destensionar o ambiente da esquerda, superar todos os impasses e com isso botar todo mundo na mesa para resistir ao governo Bolsonaro, fazer lutas sociais e ganhar as eleições municipais de 2020 no maior número possível de capitais e grandes cidades. Então, esse é o meu foco. Se eu me coloco hoje como pré-candidato a presidente, eu estou negando o que eu considero principal, porque se você senta à mesa dizendo que você é candidato a isso ou aquilo, obviamente você não está aceitando a hipótese de transigir. Eu acho que a gente precisa hoje desse tipo de união.
Como fazer essa distensão? Ciro Gomes tem dado seguidas mostras de hostilidade ao PT. Outro dia, disse que nem se fosse convidado iria visitar o Lula.
Eu lamento muito que o meu amigo Ciro Gomes esteja dizendo palavras tão ásperas e desnecessárias. Ainda assim, acho que devemos perseverar no diálogo com ele, porque é uma liderança política de gigantesca importância, provou em três eleições presidenciais pelo seu desempenho, e compõe um partido que integra a história brasileira, que é o PDT. E, apesar das declarações, o PDT, representado pelo presidente Carlos Lupi, continua participando dos fóruns dos partidos [de esquerda] que se reúnem periodicamente em Brasília. Ele próprio foi visitar Lula, então acho que, não obstante essas palavras mais duras por parte do Ciro, acho que não é um obstáculo intransponível. No processo, consegue-se resolver.
Na entrevista ao Intercept, Lula atacou duramente a Lava Jato, que para ele nada mais é que uma manobra para evitar que ele disputasse a presidência e o PT voltasse ao poder. O senhor concorda? Dá pra dizer que a operação se resume a isso?
A operação Lava Jato é bem complexa, não há dúvida, portanto multifacetada nas suas origens e nos seus resultados. Ela foi derivada, sim, de graves casos de corrupção. Mas também de interesses políticos e econômicos inclusive internacionais. Havia múltiplos determinantes que levaram à Lava Jato, e, portanto, múltiplos resultados. Você tem resultados justos e tem resultados injustos. Você tem resultados necessários e positivos e resultados negativos, perniciosos ao país, como por exemplo prisões injustas – a do Lula é a mais evidente de todas – e resultados econômicos terríveis, atinentes à nossa soberania energética. Porque, a partir da visão de criminalização de tudo e de todos, a Petrobras perdeu sua energia vital, algo que nenhum país do mundo faz. Você pega os escândalos, os casos gravíssimos de corrupção do sistema financeiro dos Estados Unidos em 2008, na crise do subprime: houve uma atitude de todas as autoridades norte-americanas, tanto políticas como judiciais, de separar o que eram atitudes pessoais individuais que deveriam ser punidas e preservar o funcionamento das empresas, os empregos. No Brasil, não houve isto. Por exemplo: autoridades brasileiras participaram escandalosamente de um acordo nos Estados Unidos para tirar dinheiro da Petrobras e portanto atrapalhar que ela possa investir e gerar empregos. Então, houve uma ideia de destruição de tudo, de todos, com prejuízo para a nação.
‘A partir da visão de criminalização de tudo e de todos, a Petrobras perdeu sua energia vital, algo que nenhum país do mundo faz.’
Eu não diria que a Lava Jato foi totalmente errada, acho até que a maioria das sentenças da Lava Jato eu assinaria (Dino foi juiz federal entre 1994 e 2006). Mas seguramente não concordaria nem com a destruição de uma parte importante da economia e da soberania do país nem que ela [a Lava Jato] fosse transformada em instrumento de luta política, como é evidentemente se transformou, sobretudo em relação às atitudes disparatadas que foram tomadas em torno do ex-presidente Lula. E eu me refiro ao conjunto da obra, desde a condução coercitiva sem nenhuma razão jurídica – depois, o próprio Supremo [Tribunal Federal] disse isso – e um processo penal conduzido de modo atipicamente célere apenas para levar à inelegibilidade.
Provas inexistentes, delações premiadas que foram extraídas sem legalidade alguma, por exemplo mediante recompensa financeira, não têm o atributo da voluntariedade, nem capacidade e aptidão de sustentar uma condenação. Quem diz isso é a lei, não sou eu – a lei que trata da doação premiada. Depois, um desembargador concede um habeas corpus, e essa ordem é descumprida, coisa nunca vista na história da Polícia Federal. Só há um caso na história brasileira em que um habeas corpus foi dado por um magistrado federal e não foi cumprido [pela Polícia Federal]: o do presidente Lula. Ele foi anulado, por telefone, por um juiz que estava fora do país (Sergio Moro estava em férias, à época, mas sua assessoria negou então que ele estivesse fora do país), que depois virou ministro do governo que foi vencedor [da eleição em 2018] em razão da inelegibilidade do candidato que ele mesmo condenou. Eu fico imaginando um juiz apitar Corinthians e Palmeiras e quando a partida termina, aos 45 minutos do segundo tempo, ele tira a camisa de árbitro e por baixo tem a de um dos times que jogou. Isso realmente iria revoltar o mundo do futebol, e essa é uma notícia mundial. Foi exatamente isso que aconteceu no caso do ex-presidente.
O juiz que condenou Lula, Sergio Moro, abriu mão da carreira e abraçou a política, aceitando ser o fiador moral do governo Bolsonaro. Qual sua avaliação desse movimento dele? O surpreendeu? Ou era esperado?
Eu acho tão absurdo que jamais esperava que isso fosse acontecer. Quando circulou a primeira notícia de que ele seria ministro do Bolsonaro, um colega seu me ligou e perguntou se eu sabia do fato. Eu respondi: olha, isso jamais vai acontecer. Esse repórter até hoje me cobra pelo “isso jamais vai acontecer”. Porque é tão absurdo, ele vai jogar por terra toda a legitimidade do que fez, que já é frágil, do ponto de vista jurídico, o que ele tinha feito sobre o triplex. Eu disse: ele não vai fragilizar mais ainda o que já é frágil. Pois, para minha surpresa, aconteceu. Então realmente algo incompreensível e inaceitável e escandaloso, certamente escandaloso (a entrevista foi concedida alguns dias antes do Intercept começar a publicar as reportagens sobre as conversas secretas da Lava Jato).
A ascensão de Moro de juiz de primeira instância a herói nacional inspirou seguidores, como o juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato do Rio, e Wilson Witzel, que largou a beca para ser governador. O senhor também largou a magistratura para entrar na política. O procurador Deltan Dallagnol, por sua vez, é um defensor quase monotemático, em redes sociais e campanhas de coletas de assinaturas, do combate à corrupção como a mãe de todas as batalhas. A Lava Jato virou um partido político?
Virou um bloco de poder, no sentido sociológico da palavra. Portanto, um partido político. Com projeto, com forma de atuar, com um certo programa acertado nessa ideia de corrupção como o maior de todos os males, e com líderes. Sergio Moro é o principal líder desse bloco de poder. Até onde ele vai, realmente não sei dizer, porque acho que a ida do Moro ao ministério do Bolsonaro enfraqueceu um pouco esse bloco de poder. E tende a enfraquecer, por conta exatamente da minha avaliação de que o governo Bolsonaro vai mal, mas de todo jeito é um bloco no poder assentado com alguns conceitos e muitas ligações internacionais. Basta lembrar que medidas importantes da Lava Jato, mesmo esse acordo da Fundação Lava Jato, foram adotados sob intensa direção do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
Há provas disso?
Está escrito no termo das petições do termo de acordo. Foi parte do acordo de que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos participou, formalmente, e é daí que resultou essa inusitada história de uma fundação privada com dinheiro público, sem prestar contas a ninguém. Felizmente, o Supremo em boa hora conteve isso.
A gente viu várias vezes o supremo meio que constrangido pela Lava Jato pelas decisões do Moro. O Teori, mesmo quando era vivo, algumas vezes parece ter tomado decisões muito incomodado de contrariar a Lava Jato. Há uma pressão social muito forte contra o Supremo Tribunal Federal hoje em dia. O que o senhor acha que causou isso tudo um desgaste tão grande a Suprema Corte a ponto de ela se vê inibida por um juiz de primeira instância?
Nós temos, nas instituições de um modo geral, nas últimas décadas, uma pressão muito grande da chamada civilização do espetáculo. Há uma tendência de transformação de instituições e agentes dessas instituições em artefatos midiáticos. No caso do Judiciário, isso é especialmente desastroso, porque ele só se justifica pelo fato de haver uma crença de que aquele juiz é um terceiro acima das partes. E, portanto, julga com imparcialidade e independência, a única razão pela qual o Judiciário é legítimo, uma vez que ele nao é eleito, se legitima pelo pelo procedimento, pela atitude.
‘Bolsonaro precisaria se inspirar em bons exemplos, inclusive da direita, e procurar desarmar um pouco o governo dele.’
Ora, na medida em que um magistrado de qualquer lugar, de qualquer instância, se transforma num artefato midiático, ele perdeu independência, porque passa a julgar não de acordo com a sua convicção, a lei e os autos, e sim de acordo com o que vai agradar ou desagradar a opinião pública. E isso implica em um grave questionamento em relação ao sistema de Justiça como um todo, não só em relação a um tribunal determinado. Porque, se o Judiciário não serve para julgar contra a opinião pública, eventualmente ele não serve para nada. Se o Judiciário não serve para proteger aqueles que estão em minoria, ele não serve para nada. Se o Judiciário não serve para proteger a pessoa que é execrada, não serve para nada. Ele só serve se tiver independência para proteger inclusive a pessoa que por alguma razão seja execrada pela maioria, para ser contra o majoritário, não pode ser artefato midiático.
Há um incômodo externado por magistrados, eu já ouvi isso de vários, sobre essa ideia de julgar de olho no Jornal Nacional. Isso infelizmente acontece, e tem acontecido com muita intensidade em várias instâncias judiciais. Isso é péssimo para a democracia e é péssimo para o próprio Judiciário.
Ainda que tenha havido excessos e que o PT jure que está fazendo autocrítica internamente, e não para a mídia ou a direita, como disse Gleisi Hoffmann, não falta ao PT fazer um pedido público de desculpas ao eleitor?
Porque é que isso foi cobrado apenas do PT, na medida em que, infelizmente, vários partidos e vários políticos incorreram no mesmo pecado de relações indevidas com empresas, por exemplo? Há uma ideia de que autocrítica é uma espécie de flagelação em praça pública. É isso que é cobrado do PT, e eu considero que autocrítica se faz na prática. Portanto, mais importante do que se cobrar do PT ou de qualquer outra força política autoflagelação em praça pública é cobrar a mudança de atitudes, de práticas, de atuação. Isso é o mais importante, e acho que o sistema político já fez isso, na medida em que, depois de muita luta da esquerda, se aprovou o financiamento público de campanha. A principal mudança que o Brasil viveu nos últimos anos, mudança positiva, claro, foi exatamente a instituição dos fundos de financiamento das campanhas, o que portanto funcionou como uma poderosa autocrítica de todo o sistema político, que reconheceu que aquele modelo de financiamento baseado em poucas grandes empresas estava levando a uma série de práticas indevidas.
Estamos vivendo sob um governo autoritário?
O governo é marcadamente autoritário, não há dúvida. Evidente, como disse há pouco, é um governo multifacetado, há pessoas boas no governo, pessoas que têm uma atitude correta, por exemplo, comigo, um governador de oposição. Tenho sido muito bem tratado por alguns ministros. O governo é ruim para todo mundo, unanimemente. Não há um tratamento pior ou melhor para A ou B. Então, tem pessoas boas, educadas, gentis, no governo. A questão não é julgar o ministro A, B ou C. Mas o que prevalece é essa atitude de conflituosidade, de beligerância. Isso está presente também nessa política externa atípica que o Brasil atravessa, nessa visão armamentista. Mas mesmo o governo Bolsonaro tem matizes, tem pessoas que estão tocando a vida, tentando tocar os seus programas, e têm sido corretos nesse trato, inclusive conosco.
O problema que fica no primeiro plano, porque é chancelado pelo presidente da República e pelos seus filhos, diretamente, é essa ideia de colocar todo mundo para sair dando tiro. É por isso que as taxas de violência letalidade policial cresceram. Por isso que a taxa de feminicídio em São Paulo cresceu. Essa ideia de perseguir pai, professor, aluno, de fechar a escola. É isso que lamentavelmente tem prevalecido. Não é o que faria mesmo um governo à direita, e temos casos no mundo. O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, um homem de direita, assumidamente, convive com um primeiro ministro e um gabinete ministerial à esquerda e procura o tempo todo dialogar. O presidente é um cara de direita, um homem conservador, mas tem a visão de que o papel dele como presidente da República é tentar dialogar e unir o país, impulsioná-lo para a frente. Ou seja, acho que o presidente Bolsonaro precisaria se inspirar em bons exemplos, inclusive da direita, e procurar desarmar um pouco o governo dele, e os que o cercam, dessa visão belicista, para poder impulsionar o país para frente.
Parece que a estratégia é ser belicista. Existe a leitura de este é um governo que só sobrevive no confronto. É a sua leitura?
Aparentemente esta leitura, que é errada, é a que está prevalecendo. Porque seria possível sim ao Bolsonaro governar sem o belicismo, e acho até que ele teria mais facilidades de aprovar sua agenda econômica, por exemplo, de reunir maioria parlamentar da Câmara e do Senado sem a visão belicista do que com a visão belicista.
O senhor falou de dificuldades, de um governo que tropeça todo dia. Mas a oposição até agora criou pouco problema pra esse governo. Tem algo de errado com a oposição? Ela está tão quieta, ela nem precisa agir? Que avaliação o senhor faz da oposição?
Eu acho que nós sofremos cinco anos de derrotas consecutivas, de 2013 a 2018, derrotas profundas. Não me refiro apenas a derrotas eleitorais. Porque nós ganhamos a eleição de 2014, com a Dilma. Eu digo derrotas simbólicas, ideológicas. E a prisão do Lula, a prisão de quadros importantes, impeachment, reforma trabalhista, vitória do Bolsonaro. A esquerda vem de um período na defensiva, nós perdemos a hegemonia política e, em larga medida, também a hegemonia social. Então, naturalmente, o momento é de retomada de fôlego. Acho que em parte é isso que nós vivemos. Em segundo lugar, nós tivemos, fruto do processo [eleitoral] de 2018, muitas sequelas. Já falamos aqui, por exemplo, desse acirramento das posições do Ciro em relação ao PT, de parte a parte. Em terceiro lugar, acho que nós temos hoje carência de algumas ferramentas. Por exemplo, nossas bancadas parlamentares são pequenas. Você paga a soma de PT, PC do B, PSB, PDT, PSOL, Rede, tá dando cento e poucos deputados, de um total de 500. Então a gente não tem essa facilidade toda. Chegamos a ter 200 [deputados], quase, a esquerda, no sentido amplo da palavra.
‘Nós temos uma carência de uma força política que sempre compôs conosco e se perdeu, que é o chamado centro democrático.’
Finalmente, nós temos uma carência, com a polarização que se produziu no Brasil, de uma força política que sempre compôs conosco e se perdeu, que é o chamado centro democrático. Nós não teríamos tido anistia, diretas-já e constituinte sem Ulysses Guimarães, sem Franco Montoro e Tancredo Neves, sem Mário Covas. E isso se perdeu.
Hoje, quem ocupa o lugar do centro democrático é o Rodrigo Maia, como sucedâneo desse buraco que ficou na política brasileira. Então, também não é um problema só da esquerda. O problema é nosso também, mas mesmo as forças mais ao centro também perderam sua energia vital e foram para a direita, caso do PSDB, que sempre foi uma força progressista no Brasil, com todos seus problemas, a adesão ao neoliberalismo econômico. Mas você não encontrou o PSDB dos anos 1980 ou 1990 defendendo fechar escola, defendendo o militarismo, defendendo que se matem pessoas. E hoje o PSDB, com a hegemonia do [governador de São Paulo João] Doria, está sendo puxado para uma agenda de direita. Então, não é uma conjuntura simples para se achar que vamos rapidamente retomar a ofensiva. Não vamos. Nós estamos tateando, nesse momento, para encontrar qual a estratégia adequada para retomar a ofensiva política. Vivemos praticamente das greves do ABC [paulista] em 1979 até julho de 2013 um período de ascensão das forças progressistas democráticas no Brasil, continuadamente. É uma novidade que, nos últimos cinco anos, a gente viva um momento e de retrocesso. Nós perdemos força, desacumulamos, pela primeira vez desde 79. Retomar não é tão simples quanto parece. Mas retomaremos, não tenho nenhuma dúvida disso. Mas para isso nós precisamos de algumas coisas, e a mais importante hoje é, sem dúvida, a união ampla, porque essa união vai permitir que a gente retome a ofensiva política e possa chegar em 2022 em condições de disputar e vencer as eleições.
Numa entrevista ao Intercept, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães apostou que Jair Bolsonaro não terminará seu mandato e que não se deve temer uma eventual presidência do general Hamilton Mourão. Ele não vê riscos de um regresso a um regime de exceção numa eventual presidência do militar. O senhor concorda com ambas as leituras?
Se o Bolsonaro e a economia continuarem do jeito que estão, muito dificilmente ele termina o mandato. Tem essa premissa, que eu faço questão de sublinhar. Nesse aspecto eu concordo, como uma possibilidade. Mas tenho uma discordância em relação a essa ideia de que a democracia não corre riscos. A meu ver, corre. A vida, a história brasileira, não autorizam que se confie no espírito legalista dos militares, infelizmente. Hoje, o espírito legalista é absolutamente dominante, ou seja, hoje não há nenhuma voz importante das Forças Armadas defendendo qualquer tipo de golpismo. Porém, sublinho, hoje. Porque é que eu sublinho? Porque, em março de 1964, havia um sentimento legalista majoritário das Forças Armadas. O que nós vimos na hora decisiva: militares legalistas como Amaury Kruel rapidamente foram polarizados para posições golpistas, por várias razões, entre as quais o espírito corporativista. Então, eu não apostaria todas as minhas fichas na ideia de que os militares sempre serão fiadores da democracia política no Brasil, porque o passado os condena.
‘Não apostaria todas as minhas fichas na ideia de que os militares sempre serão fiadores da democracia política no Brasil, porque o passado os condena.’
Hoje há um golpismo nas Forças Armadas? Não. Mas amanhã pode haver por isso. Eu diria até que a tradição militar brasileira não tem muito apreço à Constituição. Tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek; não conseguiram porque o marechal Henrique Lott foi lá e bancou a posse. Tentaram impedir a abertura democrática (no final dos anos 1970 e início dos 80), quando Sylvio Frota tentou depor o [ditador militar Ernesto] Geisel, fizeram o atentado do Riocentro. Acho que ninguém deve dizer que os militares brasileiros serão sempre legalistas. Eu espero que continuem, tenho respeito pelas Forças Armadas e espero que elas continuem assim, mas enxergo infelizmente o risco de que eles possam, num aprofundamento da crise política econômica, e social aderirem a outras visões.
Alguns analistas veem nesse clima constante conflagração do bolsonarismo uma tentativa de se sobrepor aos outros dois poderes, o Legislativo e o Judiciário. O presidente distribuiu um texto dizendo que “o Brasil é ingovernável”. O senhor vê algum risco de Bolsonaro eventualmente ser bem sucedido numa estratégia como essa?
Infelizmente, eu acho que há a possibilidade dele tentar. Infelizmente, lamentavelmente. Porque ele diz isso o tempo todo ao longo da sua vida pública. E há manifestações de rua, do bolsonarismo hard, raiz, profundamente antidemocráticas, contra o Congresso, contra o Supremo. Pela primeira vez tivemos uma manifestação exclusivamente desses segmentos, porque as jornadas de junho de 2013 tinham isso, mas tinham também outras agendas. É uma razão a mais para acender a luz amarela. Não chega a ser uma luz vermelha, mas de atenção. É exatamente onde acho que nós estamos.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
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