A maioria das pessoas negras no Brasil não conhece suas origens. É comum um neto não conhecer quem são seus antepassados para além dos avós. Desconhecem de onde vieram, como chegaram ao Brasil e as dificuldades enfrentadas, invariavelmente as mais terríveis possíveis.
A falta de recordações do passado está ligada ao modo como essas famílias chegaram ao Brasil. “Negros não vieram como família, mas como coisa. Eram objeto, mercadoria”, explica o advogado Silvio de Almeida, autor do livro “O que é racismo estrutural”, em entrevista ao Intercept.
Conhecer suas origens é ainda um direito para poucos. Para a aluna de Saúde Pública da USP Franciele Nascimento, não conhecer sua história era normal. “Quando eu estudava sobre escravidão na escola, tudo me parecia muito distante. Eu mal conseguia perceber que fazia parte daquilo. Era assim e pronto. Eu não me questionava sobre isso. Nem meus pais”, disse.
A convite do Intercept, Franciele fez um teste de DNA para, finalmente, conhecer sua história. Aos 21 anos, ela sabia muito pouco sobre o passado da família e escrever sua própria história tinha um peso diferente, que até então ela não entendia por quê. Parte das respostas que Francielle sequer sabia que procurava chegaram ao abrir um envelope com o resultado do exame no final do ano passado. A seguir, ela conta como o impacto da revelação na sua vida.
Em dezembro de 2018, recebi num enorme envelope o resultado do teste de DNA que mapeou a minha ancestralidade. Eu estava ansiosa e curiosa. Abri com cuidado e, dentro, encontrei uma série de textos e mapas sobre a minha origem materna. A análise genética informou algo que eu desconhecia: eu era descendente de um povo – o povo Mende, que hoje vive em Serra Leoa.
“Prezada Srta. Nascimento,
É com grande prazer que informamos que nossa análise Matriclan identificou sua ancestralidade genética materna. Analisando a sequência Mitocondrial (mtDNA) de seu DNA, nós conseguimos determinar que você compartilha ancestralidade maternal genética com o povo Mende, hoje em Serra Leoa.”
Fiquei surpresa com a existência de uma tecnologia para a gente saber de onde veio. Fazer o exame de DNA ancestral mudou a perspectiva que eu tinha de mim como uma pessoa no mundo e como eu pensava a história do meu núcleo familiar. O teste materializou a minha origem africana, especificou o povo que faço parte e concretizou a informação de que sou descendente de pessoas que foram escravizadas. Fico pensando no processo doloroso, brutal, da trazida dos negros para o Brasil e o desenrolar até chegar a mim. Em como a escravidão impactou negativamente a vida das gerações seguintes.
É curioso, mas quando eu estudava sobre escravidão na escola, tudo me parecia muito distante. Eu mal conseguia perceber que fazia parte daquilo. Eu já tinha pensado sobre os meus antepassados, mas sabia muito pouco sobre o passado da minha família e aceitava não saber sobre nossa história. Era assim e pronto. Eu não me questionava sobre isso. Nem meus pais.
Escrever para o Intercept sobre essa experiência do teste e sobre a minha vida era o gancho que faltava para reunir a minha família e perguntar sobre a vida deles, suas origens, remexer o passado. Mas não foi fácil.
Eu estava animada em ouvir tudo, mas, no início, acabei me sentindo mal, impotente. Tocar no assunto deixava os meus familiares tristes e desconfortáveis. E me fez mal perceber que eu nunca soube a história da minha família.
Acredito que meus pais não falem do passado por questões sentimentais e pelas dificuldades vividas. E também pelo simples fato de conhecerem muito pouco sobre suas origens. Eles, como eu, descobriram que nossa história começou em Serra Leoa.
Minha avó Hilda, mãe do meu pai, foi a única ligação que eu tive com meus antepassados. Quando nasci, meu avô por parte de pai já havia falecido, assim como os pais da minha mãe.
Vó Hilda sempre foi muito calada e tinha dificuldade em demonstrar sentimentos. Em 2018, ela veio morar com a gente. Isso foi muito bom porque parecia a chance de saber um pouco mais sobre as minhas raízes. Mas ela, assim como meus pais, quase não falou sobre o passado.
Não tive tempo de saber muito porque minha avó, que já andava debilitada, faleceu em janeiro de 2019. A impressão que eu tive é de que ela queria deixar o passado no passado. Foi um período doloroso que ela preferiu não detalhar.
Nas conversas com a minha avó, ela não deixava claro se era descendente de escravizados, mas, acredito, era por falta de informação mesmo. O que eu sei é que ela não teve acesso à educação formal, à saúde, à qualquer plataforma cultural. Minha avó não conseguiu ter acesso nem aos bens do marido falecido, tudo lhe foi tirado. Meu avô se mudou para Rondônia e contou ter terras por lá. Mas não conseguimos sequer ir quando ele morreu porque não tínhamos dinheiro. Suas terras ficaram para o estado.
Meu pai nasceu em São João Evangelista, Minas Gerais, numa família que tinha casos de bebida e abandono. A minha avó Hilda criou os cinco filhos sozinha. Meu pai trabalhou na roça até completar 22 anos e veio para São Paulo, em 1988, tentar algo melhor em Campinas. Chegando aqui conseguiu um emprego na construção civil.
Ninguém nunca me falou sobre universidades públicas, nem quais os caminhos e alternativas eu teria para chegar lá.
Minha mãe nasceu no interior de São Paulo, numa cidade chamada Castilho. Depois foi para Cosmópolis, ainda no interior e, já adulta, para Campinas. O pai da minha mãe, meu avô, tinha problemas mentais e, para lidar com isso, a minha avó bebia. Não passou muito tempo, meu avô morreu e uma história semelhante a do meu pai surgiu: a minha avó criou minha mãe e mais dois filhos sozinha. Minha mãe era empregada doméstica. Meus pais trabalharam (e ainda trabalham) muito.
Meus pais se conheceram em 1989, em uma pracinha perto da rodoviária de Campinas. Eles foram apresentados, gostaram um do outro e nunca mais se separaram. Em 1993, eles se casaram e foram morar num terreno invadido na Vila Independência (hoje, Vila Sete de Setembro). Meu pai tinha 25 anos e minha mãe tinha 30.
Depois de alguns anos, conseguiram comprar um terreno no Parque Via Norte, onde nasci, e há 20 anos, constroem e reformam a casa. Sempre aos pouquinhos e com muita dificuldade.
Estudei a vida toda em escolas públicas e me formei assim: sem saber como funciona o ingresso no ensino superior, com um aprendizado defasado e sem nenhuma perspectiva do que eu faria no futuro. Em toda a vida escolar, tenho a lembrança de me sentir muito sozinha. E a cada etapa da vida, essa solidão teve diferentes conotações.
Eu me percebia negra e diferente das outras crianças já na pré-escola, não sei se essa diferenciação vinha do olhar dos professores, mas certamente vinha do olhar dos colegas. Eu sempre estava sozinha no recreio, não tinha com quem brincar e isso não acontecia com os meus colegas de escola que eram brancos. Com o tempo, fui me retraindo cada vez mais.
Fiquei um ano a mais na escola porque eu não sabia escrever o meu nome. A professora disse para a minha mãe que eu não queria escrever. Repetir de ano foi uma experiência traumática, que me deixou insegura por muito tempo, pensando se eu iria conseguir escrever um dia. Aos sete anos tive que fazer meu RG e na hora de assinar esqueci de colocar a letra “s” do meu sobrenome Nascimento. Carreguei o RG com a minha assinatura errada até completar 18 anos e trocar. Isso me marcou.
Nunca faltei às aulas, a minha mãe nunca me deixou faltar. Meus pais não acompanhavam minhas lições de casa, eles estudaram pouco, mas sempre me incentivaram a estudar e seguir estudando. Apesar da falta de motivação em sala de aula, sempre tive o total apoio dos meus pais, o que foi essencial.
Eu tenho um irmão mais velho que estuda numa universidade privada com bolsa de 100% porque trabalha nela. Eu nunca cogitei estudar numa faculdade particular por questões pessoais mesmo. Uma das coisas que mais me magoa é ser campineira, ter estudado a vida toda nas escolas públicas de Campinas e ter passado todo o processo escolar sem ouvir falar da Unicamp. Ninguém nunca me falou sobre universidades públicas, nem quais os caminhos e alternativas eu teria para chegar lá.
Fui conhecer a Unicamp só quando entrei num cursinho comunitário para vestibular chamado Proceu Conhecimento, que fica lá dentro da universidade. Foi no cursinho comunitário que eu comecei a saber das coisas. O desapontamento em relação ao ensino que eu tive ficou ainda maior quando entrei no ensino médio.
Comecei a trabalhar com 14 anos, fiz estágios, fui menor aprendiz, trabalhei com o meu pai nos finais de semana, e então passei a estudar à noite no segundo semestre do primeiro ano. Eu estudava à noite na mesma escola de sempre. Mas, imagine, se o ensino na parte da manhã já era fraco, à noite era ainda pior. A diferença era enorme.
Eu sentava na sala de aula e me angustiava pelo tempo perdido, não aguentava mais aquela escola. Era muita aula perdida porque não havia professor, mas tínhamos de ficar lá para pegar presença. Muitas aulas vagas, e eu perdendo o tempo da minha vida. O Enem chegou e eu ainda nem sabia da existência dos outros vestibulares.
Quando comecei a fazer o Enem, em 2014, vi questões na prova que eu nunca tinha estudado, fiquei muito revoltada. Lembro de olhar em volta na sala de aula e perceber que só eu estava preocupada, todo mundo conversando, bagunçando. Que desespero!
A pressão na minha cabeça era constante: como vai ser a prova, como estudar se eu não tenho material didático, onde ir atrás de tudo?
Comecei a pesquisar cursinhos e vi que nunca conseguiria pagar. O valor do cursinho era quase o valor de uma graduação. Depois de um tempo de procura, no final do terceiro ano do ensino médio, descobri o cursinho comunitário da moradia da Unicamp, me matriculei e foi a melhor coisa que eu fiz.
Foi maravilhoso saber que existia cursinho comunitário! Aprendi muito no Proceu Conhecimento, não só conteúdo para o vestibular, aprendi muita coisa para levar para a vida também. Estudar lá foi super importante pra mim.
“Sinto que perdi 18 anos da minha vida”
Foi no cursinho que percebi o quanto fui prejudicada em anos e mais anos de estudo defasado. Vi o quanto eu seria obrigada a correr atrás, a deixar de ter um tempo de descanso, lazer etc. Eu precisava sacrificar várias horas do meu dia para estudar para um dos vestibulares mais importantes do país. Sem o cursinho a minha bagagem era quase zero. Ninguém nunca me deu a estrutura para prestar vestibular na rede pública de ensino.
Esta é uma dor que carrego, sinto que perdi 18 anos da minha vida. Tive que correr muito para aprender coisas que eu deveria ter aprendido no decorrer da vida, na escola.
Desde o 8ª ano, sempre tive o sonho de fazer psicologia, curso bem concorrido nas universidades públicas. Fiz dois anos de cursinho com este foco. Foi um período muito difícil, tive até que parar de trabalhar só para estudar.
Fizeram tanta questão de esconder de mim a existência da universidade pública, então significa que deve ser o melhor lugar para se estudar – e é exatamente neste lugar que estou agora.
No primeiro ano de cursinho, passei na Federal de Mato Grosso do Sul para fazer Psicologia em Corumbá, na divisa com a Bolívia. Fui lá conhecer, mas acabei não me adaptando.
O desafio que impus para mim era passar no vestibular e, então, escolhi o curso de Saúde Pública aqui em São Paulo. Entrar na universidade pública, vinda de onde eu vim, é um grande passo e o que eu estudo hoje me enriquece como pessoa, é um outro caminho.
Atualmente, estou num ritmo de estudos muito intenso, frenético. Faço graduação e cursinho para vestibular ao mesmo tempo. Estou focada e estudando muito para ter um bom desempenho nas provas de vestibular no final do ano, porque meu objetivo ainda é a psicologia. Tenho paixão por psicoterapia. Já consigo me ver formada em psicologia e trabalhando na área.
Fizeram tanta questão de esconder de mim a existência da universidade pública, então significa que deve ser o melhor lugar para se estudar – e é exatamente neste lugar que estou agora. A mesma coisa aconteceu comigo quanto a minha origem. Meus antepassados e eu nunca soubemos direito de onde viemos. Eu sei agora. Absorver tudo o que aprendi ao descobrir o meu DNA ancestral é um processo que ainda vai levar um tempo para saber o impacto dele na minha vida. Mas hoje sinto que pertenço a uma cultura, e que a minha história está aqui registrada. Eu quebrei o ciclo.
Colaborou: Pedro Borges, do Alma Preta.
Você sabia que...
O Intercept é quase inteiramente movido por seus leitores?
E quase todo esse financiamento vem de doadores mensais?
Isso nos torna completamente diferentes de todas as outras redações que você conhece. O apoio de pessoas como você nos dá a independência de que precisamos para investigar qualquer pessoa, em qualquer lugar, sem medo e sem rabo preso.
E o resultado? Centenas de investigações importantes que mudam a sociedade e as leis e impedem que abusadores poderosos continuem impunes. Impacto que chama!
O Intercept é pequeno, mas poderoso. No entanto, o número de apoiadores mensais caiu 15% este ano e isso está ameaçando nossa capacidade de fazer o trabalho importante que você espera – como o que você acabou de ler.
Precisamos de 1.000 novos doadores mensais até o final do mês para manter nossa operação sustentável.
Podemos contar com você por R$ 20 por mês?