Em um beco sem saída, o governador de Porto Rico, Ricardo Rosselló, anunciou sua renúncia em 24 de julho, em meio a protestos massivos na ilha e em todo o mundo. Uma manifestação na capital de Porto Rico, San Juan, na segunda-feira (22), atraiu cerca de 1 milhão de pessoas – quase um terço da população total da ilha – para protestar contra uma crise econômica que se arrasta há décadas e atingiu o auge após o furacão Maria. O órgão não eleito e nomeado por Washington que agora supervisiona as finanças da ilha – o Conselho Fiscal de Supervisão e Administração, chamado de La Junta pelos porto-riquenhos – pode usar a explosão democrática em Porto Rico para restringir ainda mais sua democracia.
Para os manifestantes, conversas vazadas do Telegram, publicadas pelo Centro de Jornalismo Investigativo no início deste mês, foram a gota d’água depois de anos de uma terrível recessão e medidas de austeridade impostas pela junta depois do furacão de 2017. Além do governador fazendo piadas com seu alto escalão sobre matar a prefeita de San Juan e candidata a governadora, Carmen Yulín Cruz, e de chamar a ex-presidente do Conselho da cidade de Nova York Melissa Mark-Viverito de puta, as conversas mostram que informações confidenciais sobre contratos e operações do governo estavam sendo compartilhadas com ex-funcionários que agora trabalham para interesses corporativos. Os protestos se manifestaram furiosamente contra o fato de que o dinheiro que deveria ter ido para a recuperação do furacão estava sendo filtrado para advogados e consultores próximos ao governo.
A secretária de Justiça Wanda Vázquez é a próxima na linha de sucessão de Rosselló quando ele deixar o cargo em 2 de agosto, embora, como funcionária não eleita, ela provavelmente não vá dispor de muito apoio popular. (A Constituição de Porto Rico não inclui nenhuma provisão para uma eleição especial, entregando o gabinete do governador aos funcionários – muitos dos quais já renunciaram em meio a escândalos). Uma das aliadas próximas de Vázquez, Valerie Rodríguez Erazo, é a mulher de Elías Sánchez, amigo de longa data de Rosselló, que vem lucrando imensamente durante o tempo do governador no cargo.
“As pessoas estão se manifestando, dizendo que querem ter poder para tomar suas próprias decisões.”
Agora, muitos temem que a junta use essas frequentes crises de legitimação como munição em um esforço contínuo para que Washington altere a legislação de supervisão, concedendo-lhes uma autoridade mais ampla, como a capacidade de vetar medidas aprovadas pela legislatura da ilha. Recentemente, o conselho editorial do Washington Post pediu justamente isso, escrevendo que a “eficácia da junta foi dificultada” e que “o Congresso deve tomar medidas para fortalecer o conselho”. Até o momento, a juíza Laura Taylor Swain, que está supervisionando o processo de falência, não acomodou pedidos da diretoria por mais poder, como sobre a governança do dia-a-dia. E, em 24 de julho, a pedido, entre outros, de 60 organizações da sociedade civil, Swain determinou que o processo fique suspenso pelos próximos três meses, até que a situação na ilha seja mais estável.
“Este é um momento em que as pessoas estão se manifestando, dizendo que querem ter poder para tomar suas próprias decisões”, disse-me Julio López Varona, advogado de San Juan, organizador do Construyamos Otro Acuerdo e do Centro para a Democracia Popular. “As pessoas não estão nas ruas por quererem mais controle federal. Eles estão nas ruas porque querem ter poder em relação ao próprio futuro.”
Como diz um grito de guerra: “¡Ricky renuncia y llévate a la junta!”, ou “Ricky, renuncie e leve a junta com você!”
Como Porto Rico, diferentemente de outros municípios, não pode declarar falência, em 2016, o Congresso aprovou a Lei de Supervisão, Gestão e Estabilidade Econômica de Porto Rico, ou Promesa (Puerto Rico Oversight, Management, and Economic Stability Act), para estabelecer um procedimento semelhante à falência para a ilha, que está em curso no Tribunal Distrital dos EUA para o distrito sul de Nova York. A Promesa também deu ampla autoridade sobre o orçamento e as finanças da ilha à junta, um grupo nomeado pelo governo federal anterior. O conselho inclui Andrew Biggs (um pesquisador do think tank conservador American Enterprise Institute, ex-funcionário do governo George W. Bush e defensor de longa data da privatização da Seguridade Social) e Carlos García, que, na gestão do banco de desenvolvimento do governo de Porto Rico, ajudou a projetar a dívida que agora está encarregado de refrear. Os negócios do banco são subscritos pelo Santander, onde ele costumava atuar como executivo de alto nível.
Outro membro do conselho, o advogado David Skeel Jr., da Filadélfia, é um dos principais arquitetos de regimes de controle de emergência como o que existe atualmente em Porto Rico, conforme Simon Davis-Cohen apontou em artigo no The Nation. Esses arranjos – que costumam envolver a capacitação de superintendentes designados que comandam as finanças municipais, arrancando o poder de instituições como conselhos municipais – foram testados sobre os residentes predominantemente não-brancos de Michigan e Atlantic City, em Nova Jersey, resultando em disputas por serviços públicos, aposentadorias, pensões e contratos sindicais que nomeados externos consideram gastos excessivos. Em um influente artigo publicado em 2016 no Yale Law Journal, Skeel e o co-autor Clayton Gillette afirmam que “dificuldades financeiras profundas são emblemáticas do fracasso dos processos democráticos de uma cidade. O deslocamento desses processos em um esforço para restaurar a estabilidade financeira que deve ser perseguida por uma democracia funcionando bem”, eles acrescentam, “é indiscutivelmente muito menos problemático do que poderia ser com uma cidade que já esteja provendo os bens públicos locais que as localidades são criadas para fornecer.”
Embora a junta e seus partidários tenham constantemente pintado os governos porto-riquenhos do passado e do presente como financeiramente irresponsáveis, o próprio conselho não é um modelo de contenção fiscal.
La Junta pode estar silenciosamente tentando argumentar que a democracia de Porto Rico precisa ser deslocada. Apesar de ter ficado relativamente em silêncio sobre eventos recentes, o grupo divulgou em 23 de julho uma declaração observando que “protestos públicos de moradores de Porto Rico nas últimas duas semanas refletem uma crise justificada de confiança nas instituições governamentais”. O conselho não respondeu ao pedido do Intercept para comentários.
“Creio que eles estejam procurando uma abertura para assumir um papel maior em termos de como Porto Rico é administrado”, diz Sergio Marxuach, diretor de políticas do Centro para uma Nova Economia, sobre o conselho de supervisão. Mas, ele observa: “Eles também sofrem com um problema de legitimidade. … O povo de Porto Rico vem enfrentando três anos muito difíceis” desde a promulgação da Promesa. “Houve medidas de austeridade, programas foram cortados, e escolas foram fechadas. Pessoas perderam empregos. Há muito ressentimento contra o conselho agora, mas acho que a maior parte dessa raiva está sendo canalizada para o governador.”
Embora a junta e seus partidários tenham constantemente pintado os governos porto-riquenhos do passado e do presente como financeiramente irresponsáveis, esbanjando dinheiro com consultores externos e gastando além de suas possibilidades, o próprio conselho não é um modelo de contenção fiscal. Um advogado supervisionando negociações de falência do Título III enviou faturas de US$ 1,3 milhão ao conselho em apenas um ano. Em janeiro, a McKinsey and Co. cobrou US$ 72 milhões do conselho por seu papel no processo de reestruturação, e mais de US$ 1 bilhão será destinado a advogados, banqueiros e consultores nos próximos anos. Se o conselho obtiver mais autoridade – como, por exemplo, para supervisionar o já fracassado desembolso dos dólares federais de para recuperação –, esse número pode aumentar, com os contribuintes porto-riquenhos pagando a conta.
‘A intervenção contínua dos EUA não melhorou a vida cotidiana dos porto-riquenhos. Ela melhorou a vida para as pessoas ricas que podem vir a Porto Rico sem pagar impostos.’
O Comitê de Recursos Naturais da Câmara tem jurisdição sobre a Promesa, e a liderança democrata do comitê tem sido clara quanto a não apoiar que a junta explore a situação em benefício próprio. Como afirma um vídeo divulgado semana passada pela comissão, “O presidente [Raúl] Grijalva declarou que [la junta] não deveria ver isso como uma oportunidade para acumular mais poder não eleito sobre as vidas dos residentes de Porto Rico. A comissão falará mais a respeito de seus planos para alterar a Promesa em um futuro muito próximo.”
Em meio a rumores da renúncia de Rosselló (agora confirmada), Grijalva disse em um comunicado na manhã de quarta-feira que o “povo porto-riquenho, não o conselho de supervisão ou uma administração hostil de Trump, deve assumir a liderança para determinar o que vem a seguir”. (Grijalva juntou-se às deputadas Nydia Velázquez, Alexandria Ocasio-Cortez e Tulsi Gabbard nos pedidos para que o governador renunciasse). Um deputado da minoria republicana não respondeu a um pedido de comentário.
Questionado sobre as tentativas do comitê de expandir a autoridade do conselho da Promesa, Grijalva disse: “Não da nossa parte”.
“Estamos circulando uma minuta do que achamos que são reformas básicas e mudanças na Promesa”, continuou ele, pedindo maior responsabilização. “A última coisa que desejamos fazer é tornar isso uma desculpa para dar mais poder ao conselho de controle.”
O deputado republicano de Utah Rob Bishop confirmou que havia esforços no comitê para expandir a autoridade do conselho. “O conselho da Promesa tem autoridade suficiente agora. Ele apenas precisa que o governo de Porto Rico trabalhe em conjunto, não contra ele. Isso é tudo o que precisamos fazer.”
Para Bishop, expandir a autoridade do conselho seria “supérfluo”.
“Eles têm autoridade suficiente para fazer o que precisam fazer agora. O único problema que o conselho teve foi a incapacidade do governo territorial de realmente trabalhar em conjunto”, disse ele. “Se simplesmente trabalharem em conjunto, e isso é o que mais me irrita, porque Porto Rico ainda tem uma enorme quantidade de potencial. Eles têm todo tipo de habilidade. Isso precisa ser desenvolvido. … O governo nunca terá dinheiro suficiente para simplesmente salvar Porto Rico. Precisamos fazer com que Porto Rico volte a atrair financiamento do setor privado. E é por isso que o conselho é tão fundamental.”
Para os manifestantes, é uma linha complicada, especialmente para ser comunicada além da ilha. “Nós tivemos governos corruptos, e isso é verdade. Mas não se pode avaliar o governo porto-riquenho sem olhar para a constante e contínua presença e intervenção dos EUA em Porto Rico”, disse López Varona. A intervenção contínua dos EUA não melhorou a vida cotidiana dos porto-riquenhos. Ela melhorou a vida para as pessoas ricas que podem vir a Porto Rico sem pagar impostos.”
“O que queremos fazer”, acrescentou López Varona, “é usar a energia do momento para apresentar demandas que realmente criem um Porto Rico que seja para os porto-riquenhos”, incluindo a proteção dos serviços públicos, a auditoria da dívida e a declaração de um estado de emergência sobre a violência de gênero. Nos próximos meses, também é possível que os membros do conselho da Promesa precisem se submeter a confirmações do Senado, seguindo uma determinação de que eles tenham sido nomeados incorretamente. López Varona e outros esperam alavancar o apoio na diáspora para usar quaisquer audiências em potencial para chamar a atenção para a ilegitimidade do conselho como um todo, e não apenas para membros individuais.
“Não estamos pedindo um conselho de controle melhor”, ele me diz. “Estamos pedindo investimentos em Porto Rico. Nós precisamos é de um Plano Marshall que invista dinheiro na ilha e de programas iniciados pela comunidade que sejam supervisionados em Porto Rico – um verdadeiro processo de autodeterminação que possa ajudar Porto Rico a abrir caminho para o que quiser.”
Tradução: Cássia Zanon
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