Ele vem sendo chamado de Conversador Silencioso. O agente de polícia virtual foi projetado com o objetivo de endurecer as fronteiras europeias, submetendo os viajantes a um detector de mentiras para só depois permitir que passem pela imigração.
Antes de chegar ao aeroporto, você deve usar seu próprio computador para se conectar a um site, onde faz upload de uma foto do seu passaporte. O avatar de um homem de cabelos castanhos vestindo um uniforme azul-marinho recebe os viajantes.
“Qual é o seu sobrenome?”, ele pergunta. “Qual é a sua nacionalidade e qual o objetivo da sua viagem?” Você responde verbalmente a essas e a outras perguntas, e o agente virtual usa a webcam para fazer uma varredura do seu rosto e dos seus movimentos oculares, em busca de sinais de que possa estar mentindo.
No final da entrevista, você recebe do sistema um QR code, que precisa mostrar a um guarda quando chega à fronteira. O guarda escaneia o código usando um dispositivo portátil, colhe suas impressões digitais e verifica se a imagem facial capturada pelo avatar corresponde com o seu passaporte. O tablet do guarda mostra uma nota até 100, que revela se a máquina considerou que você estava dizendo a verdade, ou não.
Caso se considere que a pessoa tentou enganar o sistema, ela é classificada como “alto risco” ou “médio risco”, a depender do número de perguntas em que as respostas falsas tenham sido detectadas. Nosso repórter – o primeiro jornalista a testar o sistema, antes de atravessar a fronteira entre Sérvia e Hungria no começo deste ano – deu respostas sinceras a todas as perguntas, mas foi considerado mentiroso pela máquina, que lhe atribuiu quatro respostas falsas em 16 e uma nota 48. O policial húngaro que avaliou os resultados do detector de mentiras informou que o sistema tinha sugerido que o jornalista fosse submetido a outras verificações – o que, no entanto, não foi feito.
A entrada pode ser negada aos viajantes considerados perigosos. Na maior parte dos casos, porém, eles sequer saberão que um teste conduzido por um agente virtual teria contribuído para a decisão. Em regra, os resultados do teste não são revelados ao viajante. O Intercept só conseguiu obter uma cópia por meio de um requerimento de acesso à informação, usando a legislação europeia de proteção à privacidade.
O agente de polícia virtual é o resultado de um projeto chamado iBorderCtrl, que envolve agências de segurança da Hungria, da Letônia e da Grécia. Atualmente o teste no detector de mentiras é voluntário, e o esquema-piloto está previsto para terminar no final de agosto. Porém, caso seja bem-sucedido, deve ser ampliado para outros países da União Europeia (UE), um potencial desdobramento que tem gerado controvérsia e ocupado bastante espaço na cobertura jornalística do Velho Continente.
O sistema de detecção de mentiras do iBorderCtrl foi desenvolvido na Inglaterra por pesquisadores da Universidade Metropolitana de Manchester, que alegam que a tecnologia consegue capturar os “microgestos” que uma pessoa faz enquanto responde às perguntas em seu computador, por meio de análise das expressões faciais, do olhar, e da postura.
Um programa europeu de pesquisa injetou 4,5 milhões de euros no projeto, administrado por um consórcio de 13 parceiros que inclui o Centro de Estudos de Segurança da Grécia, a Universidade de Hanôver, na Alemanha, e empresas de tecnologia e segurança, como a BioSec, húngara, e a polonesa JAS.
Os pesquisadores da Universidade Metropolitana de Manchester consideram que o sistema poderia representar o futuro da segurança de fronteira. Eles alegam, em um artigo acadêmico publicado em junho de 2018, que avatares como o agente de polícia virtual “serão adequados para detectar fraudes em entrevistas de travessia de fronteira, por serem eficientes como extratores de informação de seres humanos”.
Alguns estudiosos, porém, estão questionando o valor do sistema, que, segundo eles, se baseia em pseudociência para tomar decisões quanto à honestidade dos viajantes.
Ray Bull, professor de investigação criminal na Universidade de Derby, já auxiliou a polícia britânica com técnicas de entrevista e é especialista em métodos de detecção de fraude. Ele disse ao Intercept que o projeto iBorderCtrl “não é confiável” porque não existem provas de que monitorar microgestos nos rostos das pessoas é uma forma precisa de mensurar o comportamento de mentir.
“Eles estão se enganando com a ideia de que isso em algum momento será substancialmente eficaz, e estão desperdiçando muito dinheiro”, declarou Bull. “A tecnologia se baseia num erro fundamental de compreensão do que os seres humanos fazem quando estão sendo sinceros ou dissimulados.”
Nos últimos anos, na sequência da crise de refugiados e de uma série de ataques terroristas na França, na Bélgica, na Espanha e na Alemanha, as forças policiais e agências de segurança europeias vêm sofrendo cada vez mais pressão política para rastrear melhor a movimentação dos imigrantes. Agentes de segurança de fronteira do continente informam que estão tentando encontrar formas mais rápidas e eficientes, com uso de inteligência artificial, para conferir os documentos e dados biométricos das mais de 700 milhões de pessoas que ingressam anualmente na UE.
“Estão desperdiçando muito dinheiro.”
A Comissão Europeia – o braço executivo da UE – propôs destinar um valor de 34,9 bilhões de euros para controle de fronteira e gestão de imigração entre 2021 e 2027. Ao mesmo tempo, em setembro do ano passado, os legisladores europeus concordaram em estabelecer um novo sistema automatizado que irá avaliar os cidadãos de países isentos de visto – incluindo os EUA – para determinar se seu ingresso no território da UE deve ou não ser permitido.
No futuro, um viajante isento de visto que, por qualquer razão, não tenha conseguido apresentar um requerimento antecipadamente não receberá permissão para entrar na zona Schengen, uma área que cobre 26 países da Europa, onde os viajantes podem se mover livremente entre as fronteiras sem controle de passaporte.
O iBorderCtrl é uma tecnologia desenvolvida para reforçar o processo de verificação prévia. Ativistas em prol da transparência, no entanto, dizem que o projeto não deveria ser implementado até que sejam oferecidas mais informações sobre a tecnologia, tais como os algoritmos usados na tomada de decisões.
No começo do ano, pesquisadores do Centro Hermes de Transparência e Direitos Humanos Digitais, em Milão, usaram as leis de acesso à informação para obter documentos internos sobre o sistema. As centenas de páginas que receberam, porém, estavam intensamente editadas, e muitas delas estavam completamente obscurecidas.
“A tentativa de suprimir o debate por meio da sonegação dos documentos que tratam dessas questões é realmente assustadora”, disse Riccardo Coluccini, um dos pesquisadores do Centro Hermes. “É absolutamente necessário entender o raciocínio por trás do processo de financiamento. O que está escrito nesses documentos? Como o consórcio justifica o uso de uma tecnologia tão pseudocientífica?”
Um estudo produzido pelos pesquisadores de Manchester testou o iBorderCtrl com 32 pessoas, e concluiu que os resultados demonstravam uma precisão de 75%. Os pesquisadores observaram, no entanto, que o grupo de participantes não estava equilibrado em termos de gênero e etnia, pois havia menos mulheres do que homens, e menos participantes de origem asiática ou árabe do que brancos de origem europeia.
Giovanni Buttarelli, chefe do serviço de proteção de dados da UE, relatou ao Intercept a preocupação de que o sistema iBorderCtrl possa discriminar pessoas com base em sua origem étnica.
“Estamos apenas avaliando possíveis mentiras com relação à identidade, ou estamos também tentando analisar alguns traços somáticos da pessoa, os contornos da face, a cor da pele, o formato dos olhos?”, disse Buttarelli. “Quem estabelece os parâmetros para determinar se uma pessoa está ou não mentindo?”
Um representante do iBorderCtrl se recusou a responder perguntas para esta matéria. Um site do projeto reconhece que o sistema de detecção de mentiras terá “impacto sobre os direitos fundamentais dos viajantes”, mas afirma que, uma vez que o teste é voluntário atualmente, “questões relativas à discriminação, dignidade humana, etc, portanto, não podem acontecer”.
Esta matéria foi produzida com o apoio da bolsa de Jornalismo Investigativo para a Europa (IJ4EU) e da Fundação Otto Brenner.
Tradução: Deborah Leão.
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