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Diário de um bombeiro: ‘voltarei a atender acidentes graves com reformas de Bolsonaro no Código de Trânsito’

Bombeiro há 22 anos pensa que Código de Trânsito promulgado em 1997 previne acidentes.

Bombeiro apaga incêndio em carro acidentado na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, em 2017.

Entrei no CBMERJ em 1997. Eu tinha 18 anos e vi que o concurso estava aberto. Como havia morado perto do quartel de Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, e meu avô havia servido nos bombeiros, eu já conhecia um pouco da profissão. Nunca quis ser militar, pensava em fazer outro concurso logo, mas acabei me apaixonando pelo trabalho. Hoje, sou 1º sargento e recém completei 22 anos de corporação.

Parece meio clichê, mas nesse tempo aprendi que ser bombeiro é se importar com o outro, e não tem como seguir na profissão sem amor ao próximo. Nós juramos salvar vidas alheias mesmo com o sacrifício da nossa própria vida. Então, ao passar por tudo o que a gente passa, nós aprendemos a amar o outro, e saber da história das pessoas faz parte disso.

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Quando vou fazer meu serviço e vejo uma mãe chorando, uma criança que ficou órfã, um pai de família que segura minha mão e pede para voltar vivo para casa, é impossível não se esforçar mais, não se emocionar com essa dor. E, ao longo dos anos, alguns dos salvamentos que mais me marcaram foram justamente no trânsito.

Ingressei nos bombeiros na época da promulgação do atual Código de Trânsito Brasileiro, quando o número de acidentes era bem maior. Essa lei rendeu muitas reclamações, mas as ocorrências foram ficando menos graves ao longo do tempo. Por exemplo, lembro que a obrigatoriedade do cinto diminuiu muito o número de vítimas ejetadas de veículos ou com traumas graves no tórax e na face.

Se até com a lei punindo há negligência, aliviar para quem comete infrações só piora.

Se depender da proposta de reforma no Código de Trânsito feita pelo governo Bolsonaro, acredito que muitos acidentes graves vão voltar a acontecer. Principalmente com a ideia de eliminar a multa para quem anda sem cadeirinha infantil ou que motoristas “não têm que cursar autoescola”. As pessoas preferem o arrependimento à prevenção. Se até com a lei punindo já há negligência, aliviar para quem comete infrações só vai piorar a situação – mesmo porque a lei ainda não é respeitada mais de 20 anos após sua promulgação.

Lembro de um caso recente que me marcou muito: uma família vinha de uma festa, um casal e quatro crianças (entre 2 e 13 anos), quando o carro deles colidiu de frente com um caminhão. O casal morreu nas ferragens, enquanto as crianças estavam soltas no carro. A filha maior, que estava com o cinto folgado e passado pelo pescoço, foi decapitada. A menor, sem cadeirinha, morreu. Por sorte, os outros dois sobreviveram, mas testemunharam a morte dos pais e irmãos. Um deles, de mais ou menos 11 anos e com as pernas quebradas, chorava e pedia para que tirássemos o cadáver de um dos irmãos de cima dele.

O uso adequado dos cintos e cadeirinhas poderia ter evitado a situação – mas não só a isso se resumem as negligências. Ano passado, por exemplo, um rapaz vinha de uma noitada bêbado e preferiu fugir da blitz a ser parado e multado. Foi perseguido até bater em outro carro – a sorte é que ninguém se feriu gravemente. É normal também socorrermos motoqueiros que levam o capacete no braço apenas para passar pela fiscalização, mas que depois caem e batem a cabeça.

Em outro caso que atendi, um casal com dois filhos viajava em um domingo de Páscoa. Apesar das crianças estarem nas cadeiras, uma delas começou a chorar. A mãe então a tirou dali e a pôs no colo, no banco da frente. Nesse intervalo, houve uma colisão e ambas estavam soltas, sem cinto. As duas morreram, enquanto o motorista e a outra nenê saíram ilesos.

Não se tinha o hábito de pensar na segurança até começarem a multar. Se não doer no bolso, ninguém se preocupa.

Ninguém se preocupa com acidentes até se envolver em um. Muita gente que conheço só usa cinto, cadeirinha e dirige na velocidade máxima da via para não ser multado. É sempre um “poxa, saí rapidinho, tão perto”, “moro logo ali, não imaginei que fosse acontecer”, “meu filho não fica na cadeirinha” etc.

Vi de perto as mudanças de comportamento quando passou a vigorar o Código de Trânsito de 1997, e não se tinha o hábito de pensar na segurança até começarem a multar. Se não doer no bolso, ninguém se preocupa. Mesmo envolvidas em acidentes com seus filhos ou parentes, as pessoas ainda dizem que vão comprar cadeirinha “por que agora estão multando, né?” Apesar disso, ainda tem jeito: segundo o Datafolha, a maioria dos brasileiros acredita que a reforma de Bolsonaro não vai deixar o trânsito mais seguro. 41% pensam que ela pode até causar mais acidentes.

Bombeiros cariocas resgatam vítimas de acidente de trânsito. Em 2013, um ônibus caiu de uma ponte de 15 metros.

Bombeiros cariocas resgatam vítimas de acidente de trânsito. Em 2013, um ônibus caiu de uma ponte de 15 metros.

Foto: Luiz Carlos/AFP/Getty Images

No começo, o bombeiro sente muito esse contato com o desastre e a dor do outro. Ao longo do tempo, a gente se acostuma a lidar com isso, fica frio, mas é porque absorvemos muita coisa. Hoje eu tenho o sono pior, memórias que gostaria de esquecer me assombram e vivo ansioso. Às vezes sonho com atendimentos e vítimas ou não consigo dormir. Problemas de saúde são normais entre bombeiros.

Mas ainda assim é uma carreira gratificante. Aprendi muito sobre união porque, na hora do resgate, eu dependo do companheiro do meu lado. Poucas coisas na vida são recompensadoras como um obrigado sincero, um abraço ou um aperto de mão de alguém, no momento mais difícil da vida daquela pessoa.

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