Qualquer pessoa que saia do Nordeste para a parte de baixo do mapa sente a força do preconceito regional. Nós também sentimos. “O povo do Nordeste é preguiçoso, só vive na rede”, “O que essa pessoa lá do Nordeste quer se metendo nas coisas daqui?” etc. Quantas vezes não ouvimos conhecidos usarem as derivações de “baiano” para expressar algo errado, ruim ou inapropriado, e ficamos constrangidos ao perceber que, indiretamente, era de nós que eles estavam falando.
É por isso que as declarações xenófobas de Bolsonaro não nos surpreendem. Ele só reforça a realidade que conhecemos bem: existe um forte e arraigado preconceito regional no Brasil. Não há diferença alguma entre o que Bolsonaro diz e o que qualquer tio do pavê falaria em um churrasco de domingo. Preconceitos, não esqueçamos disso, que Bolsonaro também destila contra mulheres, negros, LGBTs, indígenas, pobres.
A diferença é que Bolsonaro é o presidente da República, e seus preconceitos interferem na economia e no desenvolvimento do Brasil e, claro, do Nordeste, que já vê o crédito minguar. Um levantamento do Estadão revelou que a Caixa Econômica Federal já reduziu a concessão de novos empréstimos para o Nordeste neste ano. Até julho, os estados da região receberam apenas 2,2% do total de novos empréstimos autorizados pelo banco, um percentual muito menor do que os 21,6% em 2018 e do que os 18,6% em 2017.
Bolsonaro também ignorou dados do Tesouro Nacional, alegando que o baixo volume de financiamentos se deve à alta inadimplência dos municípios nordestinos. Mas as informações do Tesouro provam que não há diferenças regionais nos débitos e nem impedimento legal para que os repasses ocorram.
A explicação verdadeira pode ser outra. Em um evento recente na Bahia, Bolsonaro condicionou a liberação de recursos ao apoio dos governadores do Nordeste: “não vou negar nada para esses Estados, mas se eles quiserem realmente que isso tudo seja atendido, eles vão ter que falar que estão trabalhando com o presidente Jair Bolsonaro.”
Bolsonaro nunca engoliu o fato de que, se dependesse do Nordeste, ele não estaria no Palácio do Planalto.
Novo mapa da votação do Bolsonaro no segundo turno (2018).
Refeito a partir das sugestões de @vmpeixoto e @fbizzarroneto .
Ficou melhor de ver as tendências. Em laranja, as cidades onde o PT venceu. pic.twitter.com/k8EtHKMENs— Jairo Nicolau (@JairoNicolau1) August 10, 2019
Quando o presidente deixa evidente o preconceito que tem pelos nordestinos, a mensagem que está passando é que, no seu governo, a população de nove estados do Brasil será ignorada. Não só ignorada, como punida. Ao dizer para o seu ministro que “tem que ter nada com esse cara”, referindo-se ao governador do Maranhão, chamado pejorativamente de paraíba, o presidente está falando de uma parte dos brasileiros que será tratada com desprezo.
Fim de um ciclo
O governo Bolsonaro não é adepto das pesquisas científicas e, com frequência, nega a história. Mas ambas mostram que muitos fatores atrapalharam a ascensão dos nordestinos na economia brasileira. O principal, do passado até hoje, é a falta de políticas públicas de educação, saúde e alimentação.
Foi a partir da segunda metade do século 19 que o fosso regional começou a se abrir. E se mantém largo desde então. Em 2010, a renda média do Nordeste equivalia a 55% da renda sudestina. Mas isso não tem nada a ver com a alegada preguiça dos nordestinos de trabalhar. A questão é econômica.
Em meados da primeira metade do século 19, açúcar e algodão, produtos tradicionais da economia nordestina, iam perdendo fôlego. Na década de 1820, eles respondiam por 50% do valor das exportações brasileiras, mas desabaram para 9% em 1890. Surgia, então, o café como principal produto de exportação do Brasil. Produzido principalmente no Rio, Minas e São Paulo, mas atingindo também o Paraná e o Espírito Santo, o café responderia de 50% a até 70% de todo o valor das exportações brasileiras de 1830 até 1960.
A segunda metade do século 19 marca também o aumento no fluxo de mercadorias, capitais e trabalhadores por todo o mundo. É quando ocorre a segunda revolução industrial, que transformou de forma profunda os transportes, as comunicações e a produção. Com a pujança do café, a região sudeste atrairia a maior parte dos frutos dessa modernização que se dirigiam ao país.
Mas a coisa não se deu de forma repentina. Em 1872, o Rio de Janeiro era a maior cidade do Brasil, com 275 mil habitantes. Em seguida, vinham Salvador e Recife, com 120 mil habitantes, aproximadamente. São Paulo, por outro lado, tinha apenas 31 mil habitantes, sendo menor que São Luís, Fortaleza e Cuiabá. Isso mudou após cerca de três décadas. Em 1900, as duas maiores cidades do Brasil eram Rio, com 811 mil, e São Paulo, com 240 mil pessoas. Consolidava-se, assim, o poderio econômico da região sudeste, e o fosso regional começava a se alargar com maior velocidade.
A explicação para o aumento súbito da população de São Paulo é a imigração europeia, atraída por causa da economia em expansão. Entre 1884 e 1940, desembarcaram no Brasil milhões de italianos e portugueses e milhares de espanhóis, japoneses e alemães. Todos países mais avançados que o Brasil.
Dotados de maior grau de educação (ou “capital humano”, no linguajar dos economistas), essa mão de obra mais qualificada foi crucial para o desenvolvimento do sul e do sudeste do Brasil. Não que houvesse algo de especial nos genes de italianos e alemães. Mas em 1900, enquanto a taxa de alfabetização no Brasil era de 35% da população maior de 15 anos, na Itália era de mais de 50%, e na Alemanha, de quase 80%.
Com o Nordeste em decadência, e com o Sul e o Sudeste em expansão, esses imigrantes – e seus descendentes, com o próprio presidente Jair Bolsonaro, de ascendência italiana – ainda hoje se concentram nas duas regiões mais ricas.
Segundo o censo de 2010, 78% da região sul e 55% da região sudeste se declarava branca, enquanto no Nordeste esse valor é de 29%. Já os pardos – isto é, os mestiços – são 60% dos nordestinos, 36% dos sudestinos e 16% dos sulistas.
Racismo científico
Desde do final do século 19 estava na moda aquilo que ficou conhecido como “racismo científico”. Isso é, um conjunto de teorias que pregavam a existência de um ranking entre as “raças”, com os brancos europeus ocupando o topo da pirâmide, enquanto as populações pretas e mestiças ocupavam a base.
Brancos europeus são vistos pela sociedade racista da época como mais inteligentes e mais trabalhadores. Os não brancos (pretos, pardos, indígenas), por sua vez, como inferiores, preguiçosos, malandros. Havia até autores como o italiano Cesare Lombroso que davam estofo “científico” às ideias de que pretos e pardos eram inclinados ao crime.
Esses preconceitos facilitavam a ascensão social dos europeus e de seus descendentes, enquanto criavam mais obstáculos para a superação da pobreza das populações não brancas. Logo, o sul-sudeste passa a ser composto em sua maioria pelas “raças superiores”, enquanto os nordestinos, em sua maioria, eram formados por elementos decaídos na visão da elite brasileira.
A decadência do Nordeste era ainda mais violenta para as populações do semi-árido, cuja economia havia se especializado na produção de carne para atender as cidades litorâneas. Já no início do século 19, essa atividade entra em declínio, incapaz de competir com o charque (carne salgada) produzido pelo Rio Grande do Sul. Além dessa queda estrutural, o sertanejo era atingido pelas secas periódicas.
Em 1877 e 1879, ocorre a chamada “grande seca”, que atinge com violência particular o estado do Ceará, provocando a morte de 500 mil sertanejos. Muitos foram os que, ao tentarem fugir da fome, se retiravam para as cidades litorâneas, bem como para a região norte do país, que começava a experimentar o boom da borracha.
Rodolpho Theóphilo em sua “História da seca no Ceará” relata como os retirantes comiam plantas e raízes venenosas, que lhes custavam a vida, como também faziam uso de “carnes repugnantes de cães, gatos, morcegos, répteis e urubus”.
Essa massa de gente esfomeada e doente, que esmolava, se prostituía e cometia pequenos crimes nas cidades – muitas vezes para não morrer – passa a ser vista com pavor também pelas gentes das cidades grandes do Nordeste. Na seca de 1915, no Ceará, chegou-se mesmo a criar verdadeiros campos de concentração de retirantes, buscando evitar que eles chegassem à capital Fortaleza.
De 1950 até 1980, por conta do forte crescimento econômico do Sudeste, legiões de nordestinos saem em busca de uma vida melhor no Rio e em São Paulo. Após longas viagens em caminhões pau-de-arara, esses nordestinos pobres, mestiços, com baixa escolaridade (a maioria era mesmo analfabeta) encontravam sustento em profissões de baixa qualificação e reduzido prestígio social. As mulheres, via de regra, se tornavam empregadas domésticas, lavadeiras. Os homens, pedreiros, trabalhadores braçais.
Sem salários que lhes garantissem dignidade, esses nordestinos iam morar nas favelas que se agigantavam pelas grandes cidades brasileiras. Com pouca educação formal, falando um português com um sotaque característico, passam a ser um alvo fácil do preconceito, do ódio e também do humor – um modo socialmente palatável de destilar xenofobia e ódio.
O preconceito já foi até mais ostensivo e desavergonhado, como nos tempos em que não havia preocupação com o “politicamente correto”, que tanto irrita nosso presidente e nossos humoristas medíocres.
Paulo Francis, por exemplo, vez por outra saudado como um grande jornalista brasileiro, em colunas publicadas em grandes jornais sentia-se confortável o bastante para comparar os nordestinos a uma “sub-raça”. Eugênio Gudin, dos mais respeitados economistas no Brasil, também escrevia no jornal O Globo comparando os sertanejos nordestinos a animais, intocados pela civilização.
Hoje não cai bem escrever essas coisas n’O Globo ou na Folha de S. Paulo, mas no mundo sem leis da internet o preconceito contra nordestinos sempre ressurge. Nas eleições presidenciais, por exemplo, a polarização sul antipetista e norte petista fez ebulir o ódio aos nordestinos.
O presidente Jair Bolsonaro, da posição privilegiada do mais alto cargo da República, está constantemente reafirmando e chancelando a xenofobia, mais ou menos evidente, que existe em parte não desprezível de seu eleitorado. Ele consolida um preconceito baseado nessa construção histórica, de origem econômica, social e racial, que são marca do “racismo científico” e que ainda hoje se mantém no inconsciente de muita gente.
Nós, nordestinos, não somos indivíduos aos olhos do presidente – aos olhos de vários brasileiros também não.
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