Leia também o depoimento de Franciele Nascimento, que descobriu sua origem através de um teste de DNA.
Para a esmagadora maioria dos 54% de brasileiros negros, origem dos seus antepassados é ainda um mistério. Uma África difusa, envolta na névoa do desconhecimento, do apagamento, dos preconceitos e estereótipos, é a única coisa que resta para grande parte da população que, por isso mesmo, dela tenta se afastar sistemática e profundamente. Não eu.
Faço parte da parcela, ainda minoritária, de negros que conhece grande parte do seu passado familiar e ancestral. Uma descoberta que transforma a vida em antes e depois. Mas olhar a verdade de frente exige coragem que nem todos estão dispostos a encarar. Neste ano em que ideias ultra-direitistas e excludentes estão em voga e ascenderam ao poder máximo da nação, considero de máxima importância falar da falta que faz o conhecimento sobre si mesmo.
O preenchimento desta lacuna é sempre um desejo que poucos confessam, mas muitos almejam. Foi este o caminho que busquei refazer quando iniciei minha carreira como escritora. Apesar de todo o esforço secular para que não tivéssemos nenhum orgulho das nossas origens, há cerca de oito anos comecei um caminho de volta ao passado. Somei histórias orais deixadas por avós e bisavós com entrevistas, imagens, documentos familiares e oficiais.
Depois de cinco anos terminei um livro, “Água de barrela”, que vai de 1849 até nossos dias. Em setembro de 2015, quando pus o ponto final na história, passei a ser uma rara brasileira negra que sabe com relativa exatidão de onde partiram alguns de seus antepassados.
Uma das coisas mais emocionantes foi o reencontro com o meu nome próprio verdadeiro. Quem me abriu essa porta para o passado foi uma tia-avó muito idosa e diagnosticada com esquizofrenia. Dona Nunu me disse: “Nosso nome é o daquele que ajoelha para Xangô, que Xangô preenche a casa”, termo que, em iorubá, é algo como Sangonkunle.
A consulta aos organizadores do Yoruba names dictionary – uma página que surgiu como tese universitária na Nigéria, em 2005, e que congrega hoje mais de 6.368 nomes – confirmou o que minha tia dissera. Ela, a exemplo da poeta Stela do Patrocínio que aparece em questão do Enem 2018, esteve internada na clínica psiquiátrica Juliano Moreira, mas em Salvador. Ela sofreu com o adoecimento mental tão conhecido de nossa população e com raízes na opressão. No entanto, tem uma espantosa memória preservada. Consegue descrever locais e fatos históricos com uma precisão quase cirúrgica. Um conhecimento negado, ocultado e sobretudo desprezado por milhões de pessoas que nem ao menos tentaram descobrir seus locais de origem.
Não se trata de questão de fé, mas de história. Ninguém é obrigado, obviamente, a crer em religiões de matriz africana apenas pelo fato de ser negro, mas saber sua origem ensina sobre respeito e valorização de percepções de vidas diversas. O racismo, somado ao preconceito religioso e à misoginia, é o motivo por trás do apagamento da história negra no Brasil, uma nação que tanto precisa encontrar o brilho e o valor de seu sofrido, mas rico passado. Os conhecimentos filosóficos, medicinais, artísticos e linguísticos africanos estão em cada esquina brasileira, mesmo naquelas poucas em que predominam a imigração europeia.
Não foi fácil ver em inventários de senhores o nome de antepassados com preços ao lado.
A beleza só se agigantou aos meus olhos quando percebi que é da mulher negra o mérito da preservação de culturas e saberes milenares que sobreviveram à diáspora mais cruel da história da humanidade, a do tráfico transatlântico. Muitos dos que lerão este texto sabem que “bater barrela” é sinônimo de trabalho muito pesado, pois a “barrela” era o alvejante caseiro com que lavadeiras dos séculos passados branqueavam as roupas. Desta forma, quis fazer uma metáfora não apenas com o esforço do trabalho duro, e muitas vezes forçado, mas com a tentativa incessante de branqueamento do Brasil.
Não foi uma viagem tranquila. Não foi fácil ver em inventários de senhores, misturados aos objetos dos engenhos, o nome de antepassados com preços ao lado. Não foi fácil encontrar e ouvir os relatos de abuso sexual, torturas, exploração da força de trabalho e manipulação de vidas inteiras. Não foi fácil descobrir minha origem, ao mesmo tempo em que via emergir no país um projeto educacional que não permite que professores condenem a escravidão em sala de aula.
A vinda de imigrantes europeus para o país foi incentivada pelo governo brasileiro não apenas como reposição de mão de obra, mas como mudança de paradigma para a formação do povo. Um documento, publicado pela Diretoria Geral de Estatística e assinado por Oliveira Vianna, avalia o resultado do censo de 1920 da seguinte maneira: “[constata-se] uma tendência que está se tornando mais visível e definida: (…) a progressiva arianização de nossos grupos regionais, ou seja, o coeficiente da raça branca está se tornando cada vez maior em nossa população.”
Vemos então que a imigração foi um projeto de estado e, como tal, acompanhada de políticas públicas para dar as condições mínimas de subsistência a esse grupo. Os imigrantes europeus que aqui desembarcaram foram os primeiros cotistas da nação – não há como iniciar uma vida partindo do nada, sem algum incentivo, ainda que mínimo.
Mas foi exatamente isso que ocorreu com os escravizados. A imensa maioria dos negros teve de recomeçar a vida no dia 14 de maio de 1888 sem direito a nada. Sem enxadas, pás, passagens pagas e muito menos terras. O abolicionista negro André Rebouças, conterrâneo dos meus antepassados no Recôncavo Baiano, muito antes de Martin Luther King no norte da América, tinha um sonho.
No final do século 19, o engenheiro que dá nome a um túnel no Rio de Janeiro acreditava que uma nação inclusiva só poderia ser construída a partir de dois pontos: 1) pela abolição completa da escravidão e 2) pela reforma do sistema de propriedade da terra. A primeira, abolimos no papel, mas não na prática para parte significativa dos trabalhadores deste país. A segunda, a reforma agrária, é uma luta sangrenta ainda pelos campos afora.
O total desconhecimento sobre si e a falta de acesso a oportunidades de emprego e renda empurraram gerações para as periferias e, em muitos casos, para a marginalidade. Uma realidade dolorosa com reflexos ainda hoje e que a sociedade brasileira insiste em atenuar, relativizar e diminuir enquanto assiste a escalada vertiginosa dos efeitos nocivos que ela carrega.
O local onde minha família se originou e viveu nos primeiros tempos, chamado de Outeiro redondo, na Bahia, é hoje local de quilombo. Foi lá que, nos dias após a abolição, eles sobreviveram ao grande nada que foi a Lei Áurea.
Saber nome, lugar de partida e de resistência me faz saber onde quero chegar e o país que almejo não apenas para os meus, mas para todos: uma nação que, antes de exigir amor para si, saiba distribuí-lo para que ninguém precise desejar deixá-la. Longe de me comparar com Rebouças ou com o reverendo Luther King, mas eu também tenho um sonho.
O Enem 2018 foi sábio ao trazer os versos de Conceição:
“Na face do velho, as rugas são letras […]
O que os livros escondem, as palavras ditas libertam.
E não há quem ponha um ponto final na história.”
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