No fim de julho, Jair Bolsonaro e seu ministro da Justiça, o ex-juiz Sergio Moro, foram ao Twitter comemorar que três paraguaios radicados no Brasil desde 2003 haviam perdido oficialmente a condição de refugiados, abrindo caminho para o trio ser extraditado. Juan Arrom, Anuncio Martí e Victor Colmán são acusados pelo governo do Paraguai de serem guerrilheiros de esquerda – perfil ideal para serem exibidos como “troféus” do bolsonarismo no combate a imigrantes, refugiados e esquerdistas. Para o governo, eles são terroristas.
A versão dos paraguaios, no entanto, é a de que eles são perseguidos políticos — que chegaram a ser sequestrados e torturados por policiais e agentes de inteligência do governo do Paraguai. A revisão do refúgio, que teve participação de Moro em seu ato final, deixa indícios de que o caso teve um caráter muito mais político do que técnico — inclusive com articulação pública entre Bolsonaro e o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, o Marito. Enquanto discutiam abertamente o caso do trio, Bolsonaro e Marito negociavam em segredo um novo acordo sobre Itaipu que traria prejuízo ao Paraguai – um escândalo denunciado por mensagens vazadas que derrubou o chanceler paraguaio e quase rendeu um impeachment para Marito por traição.
Quando Bolsonaro se tornou o novo presidente do Brasil, Marito sabia que teria um aliado – e Martí, Arrom e Colmán seriam uma das razões dessa aproximação. No dia seguinte ao segundo turno da eleição no Paraguai, em 29 de outubro do ano passado, instantes depois de atender a uma ligação do brasileiro recém-eleito, Marito anunciou pelo Twitter que pediria a Bolsonaro a revogação do refúgio e a consequente extradição dos paraguaios para que prestassem conta de seus atos à justiça do Paraguai.
Eleito pelo Partido Colorado, Marito é filho de Mario Abdo Benítez (sim, o mesmo nome), que, por anos a fio, foi secretário pessoal de Alfredo Stroessner, longevo ditador paraguaio — a quem Bolsonaro posteriormente classificaria como “grande estadista”. Para muito além da troca de afagos em redes sociais, Marito foi um dos poucos chefes de estado que prestigiaram a posse do brasileiro. O caso dos refugiados foi, desde então, um tema recorrente entre os dois.
Em janeiro, o governo do Paraguai voltou a dizer publicamente que pediria a extradição de Arrom, Martí e Colmán. Em 12 de março, durante a primeira visita oficial do presidente paraguaio ao Brasil, Marito e Bolsonaro trataram pessoalmente do caso. Ao fim da reunião, o brasileiro disse que não daria “asilo a terroristas ou a qualquer outro bandido escondido no manto de preso ou refugiado político”. É como se a decisão em relação a Arrom, Martí e Colmán já tivesse sido tomada. Menos de dez dias depois, o processo de revisão do refúgio foi instaurado e tramitou rápido. O refúgio dos três foi oficialmente cancelado pelo governo brasileiro quatro meses depois de iniciado. A portaria final foi assinada por Moro, que celebrou a medida no Twitter – o Brasil “não é terra sem lei”. Enfim, ele e Bolsonaro exibiam seus troféus.
Contradições de um sequestro
No Brasil, os três refugiados viveram no Paraná. Martí, de 57 anos, é jornalista, escritor e poeta, casado com uma refugiada paraguaia e tem dois filhos — a mais nova é uma menina de sete anos nascida no Brasil. Arrom, também de 57 anos, é cientista político e faz mestrado na Universidade Federal do Paraná. É casado com uma paraguaia e tem três filhos — entre eles, uma adolescente brasileira de 14 anos. Colmán, 54 anos, é dono de uma pequena confecção. Mora em Curitiba, com a mulher, uma enteada e um sobrinho.
No passado paraguaio, os três eram líderes do Patria Libre, o PPL, partido de esquerda fundado em 1990 e ligado a movimentos estudantis. Eles são acusados pelo governo paraguaio de terem participado do sequestro de Maria Edith de Debernardi, ocorrido em 16 de novembro de 2001. Nora de um ex-diretor da Itaipu Binacional, a refém foi libertada após o pagamento do resgate de US$ 1 milhão, segundo informações repassadas pela família e que constam do processo. Ela deixou o cativeiro após 64 dias de sequestro, em 19 de janeiro de 2002.
Em liberdade, Debernardi disse, em juízo, que não seria capaz de reconhecer os sequestradores, já que os integrantes do bando usavam capuzes. Quinze dias depois, no entanto, quando o governo do Paraguai já atribuía publicamente o crime a membros do Patria Libre, ela voltou e “reconheceu” Arrom e Martí como dois dos bandidos que a mantiveram em cativeiro. Segundo Debernardi, Martí seria, aliás, “o guarda mau”, que a ameaçava com uma metralhadora.
Arrom e Martí negam participação no sequestro. E apresentaram um álibi: dois dias antes de a refém ser libertada, em 17 de janeiro de 2002, a dupla também estava em cativeiro. Os dois dizem que foram sequestrados, depois de terem sido atraídos a uma falsa reunião agendada por um assessor do Ministério do Trabalho do Paraguai. O álibi foi analisado pelo Comitê Nacional para Refugiados, o Conare, do Ministério da Justiça brasileiro. No pedido que embasou o refúgio para o Brasil, o comitê atestou que ambos foram “barbaramente torturados” para que assumissem o sequestro de Debernardi e que dissessem publicamente que estavam associados às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc. Eles permaneceram em cárcere privado por 14 dias, de acordo com o relato dos paraguaios feito ao Conare.
O relatório aponta que, no mesmo dia em que Debernardi foi libertada, a casa de Colmán foi invadida por 26 policiais armados. O militante do Patria Libre teria sido torturado física e psicologicamente por 45 minutos. Em seguida, ele, sua mulher e seu cunhado seriam presos pelos próximos seis meses. Conforme o processo, “na prisão, [Colmán] recebeu a informação de que permaneceria no cárcere por 25 anos, porém, poderia reduzir este tempo para cinco anos se confessasse a sua participação no sequestro [de Debernardi]”.
O Intercept teve acesso com exclusividade aos exames de saúde realizados assim que Arrom e Martí foram libertados do cativeiro. Com pequenas variações, ambos foram diagnosticados com “ferimentos na cabeça, abdômen, genitais externos e membros inferiores”. O laudo dos dois é documentado com fotos, que mostram feridas profundas, abertas nos pulsos (provocadas por objetos contundentes, provavelmente algemas) e hematomas no tórax, costas e nádegas (no caso de Arrom) e no rosto (no caso de Martí).
Eles relataram aos médicos terem sido submetidos a sessões de espancamento (chutes, murros, coronhadas ou golpes com cassetetes), asfixia ou afogamento “em água contaminada”, além de terem sofrido constantes ameaças de morte. Segundo os exames, Arrom e Martí apresentavam também traumas psicológicos, como crises de choro e desorientação espaço-temporal. Outro laudo que consta do processo, datado de janeiro deste ano, revela que, ainda hoje, os dois sofrem de terror, angústia, elevados níveis de estresse e sensações contínuas de flashback, situação em que a pessoa rememora o trauma que experienciou.
Arrom e Martí só foram libertados depois que vizinhos do cativeiro desconfiaram da movimentação e avisaram familiares dos então desaparecidos. O resgate foi acompanhado ao vivo pela imprensa, que noticiou amplamente a libertação dos militantes.
O episódio deflagrou uma crise interna no governo do então presidente Luis Ángel González Macchi, do Partido Colorado. Policiais e o chefe do Ministério Público chegaram a ser presos, enquanto o governo se viu obrigado a destituir dois ministros. Pouco depois, sobraria para o próprio presidente: González Macchi e o procurador-chefe da República, Oscar Latorre, enfrentaram processos de impeachment por causa do episódio e denúncias de corrupção, escapando por poucos votos.
Entre as autoridades paraguaias diretamente envolvidas nas denúncias de tortura está o procurador Hugo Velázquez, hoje vice-presidente do Paraguai. No documento do Conare, conta que Velázquez era o agente fiscal que analisava os documentos da investigação. Neste ano, ele classificou as acusações de tortura contra que recebeu como “mentiras payasescas [relativas a palhaços]”.
O refúgio
À época, Arrom, Martí e Colmán também pagaram seu preço. Mesmo acossado pelas denúncias de tortura, o governo paraguaio manteve as acusações contra os três militantes, sustentando a narrativa de que eles teriam participado do sequestro de Debernardi. Segundo a defesa, após ter sido libertado do cativeiro, mesmo com toda proporção que as denúncias de tortura ganharam, Arrom voltou a ser preso. Passou um mês na cadeia. Colmán, por sua vez, ficou detido por seis meses.
A defesa dos paraguaios diz que, em 2003, quando conseguiram a liberdade por meio de um habeas corpus, Arrom e Colmán se juntaram a Martí, mudaram-se para o Brasil e entraram com um pedido de refúgio. Justificaram risco de vida, liberdade e segurança “devido à sistemática perseguição de que somos objeto no Paraguai, por motivos ideológicos e políticos”. O Conare, vinculado ao Ministério da Justiça, acolheu o pedido. Com isso, o processo criminal que tramitava no Paraguai contra os três — em razão da acusação de terem participado do sequestro de Debernardi — foi suspenso.
Ao longo dos anos seguintes, o Paraguai — tanto no período governado pelo Partido Colorado quando pela oposição — ignorou as evidências apresentadas pelo trio e não desistiu da caçada aos ativistas. Arrom, Martí e Colmán tiveram as cabeças postas a prêmio, com a oferta de uma recompensa de 500 milhões de guaranis (cerca de R$ 325 mil) por informações que levassem à captura dos militantes de esquerda. Cartazes com fotos dos três, ao lado de outros “procurados”, foram distribuídos pelo país vizinho.
O Paraguai pediu três vezes a revisão do status de refugiado dos militantes do Patria Libre: em 2004 e 2006 (quando a presidência estava nas mãos do conservador e quase hegemônico Partido Colorado) e em 2010 (com o governo sob a Frente Guasú, de centro-esquerda). Em todas, o governo paraguaio insistia na tese de que eles seriam “terroristas” e ligados ao Ejército del Pueblo Paraguayo, o EPP, grupo guerrilheiro de extrema esquerda, e que teriam relações com as Farc. Como provas, o Paraguai apresentava recortes de matérias de jornais — que mencionavam como fontes membros do próprio governo — e supostos e-mails trocados entre os três refugiados e integrantes da guerrilha colombiana.
Todas essas investidas do governo paraguaio, no entanto, foram rejeitadas pelo Conare, que nem sequer chegou a instaurar procedimento de revisão da concessão de refúgio. Além de considerar que a segurança de Arrom, Martí e Colmán estaria comprometida casos eles fossem extraditados, o conselho apontou que nunca houve provas de que eles atuaram junto a grupos guerrilheiros. Os tais e-mails anexados ao processo consistiam em um arquivo aberto (em formato de Word), que poderia ter sido manipulado ou forjado. Pela mesma razão, os e-mails já tinham sido declarados nulos para efeito de prova pela Suprema Corte da Colômbia.
Em setembro de 2017, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a CIDH, denunciou o Paraguai por violar direitos jurídicos e pessoais de Arrom, Martí e Colmán e por descumprir tratados internacionais sobre tortura. “Os elementos probatórios que constam deste expediente são consistentes entre si e demonstram que Juam Arrom e Anuncio Marti tiveram um intenso sofrimento físico e mental”, diz o relatório. A conclusão foi de que as investigações conduzidas pelo Ministério Público paraguaio foram parciais, com participação de agentes de estado.
Em 45 páginas, o relatório da CIDH recomendava ao Paraguai que reparasse integralmente as violações sofridas pelo trio “tanto no aspecto material quanto no imaterial”, que incluía o pagamento de serviços médicos para “atenção médica e mental necessárias” para a reabilitação dos, então, refugiados.
Neste ano, no entanto, o jogo virou.
O novo pedido
Quando Marito e Bolsonaro começaram as conversas e sinalizaram a aproximação ideológica, Arrom, Martí e Cólman já sabiam que seu status de refugiados corria risco. Suas advogadas, Caroline Godoi e Fabiola Colle, entravam em fevereiro com um mandado de segurança junto à Justiça Federal, em Brasília, tentando impedir que o Conare cancelasse o refúgio. Perderam.
O Conare instaurou em 21 de março um processo para a cessação do abrigo de Arrom, Martí e Cólman. Além das acusações de que os três seriam terroristas e que respondiam a um processo por sequestro, o Paraguai apresentou um único argumento novo: o fato de, em outubro de 2018, o trio ter ajuizado um habeas corpus na justiça paraguaia, pedindo o arquivamento do processo, em razão de prescrição. Para o governo paraguaio, o fato de os refugiados terem recorrido à justiça era um reconhecimento de que a “situação objetiva” do país havia mudado. Logo, não haveria mais razões para a manutenção do refúgio aos militantes. Em abril, a Corte Interamericana de Direitos Humanos deu o ok para o Paraguai solicitar o fim do refúgio.
‘No meu país os torturadores estão soltos e estão no governo.’
Em maio, Martí e Colmán apresentaram sua defesa ao Conare. Argumentaram que, conforme diretrizes nacionais e internacionais, o refúgio só poderia ser cessado se eles quisessem. As advogadas acrescentaram, ainda, que o pedido de habeas corpus foi apresentado à justiça do Paraguai como um “remédio constitucional” para tentar pôr um fim à série de perseguições que eles vinham sofrendo por parte do governo do país. Entidades de defesa dos migrantes, como a Acnure Instituto Migração e Direitos Humanos também se manifestaram pela manutenção do refúgio aos militantes do Patria Livre.
Em um vídeo gravado para ser apresentado aos membros do Conare, Martí fala sobre como os reflexos da tortura e a perseguição política afetaram toda sua família e os colocava em risco:
“O Estado paraguaio nos negou a justiça e a paz que desejamos e buscamos. Senhoras e senhores, nesses 16 anos de refúgio, eu aprendi a amar o Brasil. O Brasil de meus filhos, o Brasil no qual eu quero continuar vivendo com minha família, pois no meu país os torturadores estão soltos e estão no governo e na impunidade. Ali não temos segurança alguma. Minha vida e a de minha família correm riscos no meu país, na atual conjuntura”, disse.
Em maio, o relatório da CIDH foi apreciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que se reuniu em Buenos Aires. Marito Abdo Benítez foi ao julgamento e, antes da sessão, publicou uma foto no Twitter, em que aparece sorridente, ao lado de membros da Corte. Desta vez, os ativistas paraguaios foram derrotados: os juízes arquivaram o processo e, por unanimidade, absolveram o Paraguai das denúncias de participação no sequestro e torturas do trio.
En minutos inicia audiencia en la @CorteIDH pic.twitter.com/4BYrULUnSZ
— Marito Abdo (@MaritoAbdo) February 7, 2019
Dez dias depois, por cinco votos favoráveis e uma abstenção, o Conare determinou o fim do refúgio de Arrom, Martí e Cólman, acatando o parecer do coordenador do conselho, Bernardo de Almeida Tannuri Laferté, que é subordinado ao Ministério da Justiça. Em sua argumentação, Laferté apontou que o Paraguai seria, hoje, um Estado de Direito, com Poder Judiciário independente e em que as instituições funcionam. Os demais membros não se manifestaram nem justificaram à adesão ao parecer do coordenador.
“Parece-nos estar diante de uma situação onde não mais a proteção internacional, conferida por intermédio do instituto do refúgio, se faz presente, tendo em vista a atual ausência de fundado temor de perseguição – elemento este que objetivamente não mais se configura no presente caso”, escreveu Laferté.
A defesa dos militantes diz que a absolvição do Paraguai não interfere na condição de refugiados do trio. “A sentença não questionou as torturas e desaparecimentos forçados sofridos pelos refugiados”, escreveram Caroline Godoi e Fabiola Colle, por e-mail. “Para ser cabível a proteção do refúgio, o agente perseguidor não precisa ser, necessariamente, o Estado. A legislação fala em ‘fundado temor de perseguição’”. Elas mencionam o manual da Acnur, que considera perseguição “atos discriminatórios graves ou outros atos ofensivos cometidos pela própria sociedade”, sobretudo se forem cometidos com a anuência das autoridades.
As advogadas recorreram da decisão de Moro, mas em vez de o próprio ministro analisar o pedido, como determina o artigo 29 do Estatuto dos Refugiados brasileiro, o recurso foi novamente analisado por Laferté — que é quem já tinha redigido o parecer pela cessação do refúgio. O coordenador do Conare manteve a condenação. Em seguida, Moro acolheu a análise de Laferté e, por fim, tirou o status de refugiado dos paraguaios em 22 de julho. Com isso, Arrom, Martí e Colmán perderam oficialmente a proteção do estado brasileiro.
A polícia federal bate na porta
A defesa dos militantes paraguaios não tem dúvidas de que a condição de refúgio de Arrom, Martí e Colmán foi cessada por motivos políticos. As advogadas apontam a rápida tramitação e a atuação de Moro como elementos decisivos, que pesaram na decisão do Conare.
Elas recorreram duas vezes e ainda aguardam a decisão final. Também pediram a nulidade do processo do Conare na Justiça Federal, alegando que não há motivos para o fim do refúgio. Por fim, entraram com um pedido de habeas corpus preventivo contra qualquer ordem de prisão contra os paraguaios. Não há previsão para que o Supremo Tribunal Federal julgue o caso.
Segundo a defesa, quatro dias depois da decisão do Conare policiais federais começaram a aparecer nas casas dos paraguaios. A justificativa era notificá-los da decisão. Antes disso, no feriado de Corpus Christi, em 20 de junho, eles relatam que a polícia invadiu a casa de Arrom, em Curitiba, e de Martí, em Antonina, no Litoral do Paraná. Segundo a advogada dos paraguaios, mesmo sem mandado judicial, fez buscas, revistando armários e cômodos da casa. No caso de Martí, um agravante: policiais chegaram a apontar uma arma para um familiar dele e fotografaram documentos pessoais.
‘Quatro agentes pularam o muro e violentamente bateram à porta, e também sem mandado, fizeram uma vistoria na residência.’
“Quatro agentes pularam o muro e violentamente bateram à porta, e também sem mandado, fizeram uma vistoria na residência. Os policiais ordenaram a uma das familiares [de Martí], que ficasse sentada na sala, apontando para ela uma arma e impedindo-a que entrasse no quarto e acalmasse a filha do casal, que estava chorando e assustada com a situação; além de terem pedido uma cópia de seu documento de identificação, o qual fotografaram, e de terem dito que seria melhor para Anuncio [Martí] e sua família que ele se entregasse à polícia, em uma flagrante e descabida ameaça”, consta do relato das advogadas, que foi encaminhado ao Conare e a entidades de defesa dos migrantes, como denúncia de arbitrariedade. Elas destacam que, conforme parecer do próprio Conare, as notificações deveriam ser feitas às próprias advogadas.
Questionei a Superintendência da Polícia Federal em Curitiba a respeito das denúncias de violações cometidas pelos agentes em 31 de julho. Até a publicação desta reportagem, não houve resposta.
Após a decisão do Conare, os três paraguaios não foram encontrados em nenhuma das investidas da Polícia Federal. Alegando questões de segurança, as advogadas não dão informações que possam remeter ao paradeiro dos três, nem sequer se elas têm conseguido se comunicar com os clientes. Em 29 de julho, a revista Veja noticiou que o ministro Marco Aurélio Mello, do STF, teria determinado a prisão de Arrom, Martí e Colmán, em decisão sigilosa. Questionado por telefone e e-mail, o STF não confirmou.
Segundo a Interpol, os três estão no Uruguai. A prova seria um ofício expedido em 29 de julho pelo chefe do departamento da Interpol de Assunção, Luiz Alberto Benítez López, informando que recebeu um comunicado da Interpol de Montevidéu, que apontava que Arrom, Martí e Colmán estariam em solo uruguaio.
No dia 25 de julho, três dias depois da cassação do refúgio dos militantes paraguaios, o ministério da Justiça publicou a Portaria 666, que pode levar a novos processos contra refugiados. Assinada por Sergio Moro, ela abre caminho para a “deportação sumária” de “pessoa perigosa para a Segurança do Brasil”, de suspeitos de envolvimento em terrorismo ou grupo criminoso organizado, entre outros.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, recomendou a Moro que revogue a portaria. Na avaliação do órgão, a norma estabelecida pelo ministro incorre em “integral e flagrante ilegalidade e incompatibilidade com normas de tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Estado brasileiro”.
Por sua redação que abre margem para interpretações subjetivas – principalmente, a partir da inclusão do termo “suspeitos” –, a Portaria 666 poderia ser aplicada no caso de Arrom, Martí e Colmán. A defesa dos paraguaios lembra das manifestações públicas de Bolsonaro, Moro e Marito Abdo – que classificaram os ex-refugiados como “terroristas” – e manifesta receio de que esse tom de discurso possa ter sido usado para legitimar ações mais rápidas e duras, como os previstos pela nova portaria.
“A cessação do refúgio tem a clara finalidade de posterior devolução [dos militantes] ao Paraguai. Por isso, não me surpreenderia se fosse aplicado o rito sumário estabelecido pela Portaria 666, em vez do processamento da extradição, cujo trâmite é no STF e atende aos preceitos do devido processo legal e ampla defesa”, diz a advogada Caroline Godoi.
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